segunda-feira, 4 de julho de 2016

A literatura nos faz entender que os outros somos nós, diz Knausgård

O escritor Karl Ove Knausgård

O escritor Karl Ove Knausgård

Uma manhã de inverno em Copacabana pode ser apenas uma manhã de inverno em Copacabana. O escritor norueguês Karl Ove Knausgård, 47, porém, já transformou as impressões sobre seu primeiro amanhecer no Rio em literatura, com descrições sobre a paisagem (e provavelmente outras divagações) escritas e prontas para seu próximo livro. 

"Descrevi o cenário, as montanhas e o mar –a primeira impressão do exótico–, então haverá um pouco do Brasil no livro", diz Knausgård, autor de uma obra quase autobiográfica em que se alonga ao narrar situações triviais que intercala com temas como a morte e o amor. 

Na Flip, em Paraty, onde fala nesta sexta (1º), ele lança "Uma Temporada no Escuro" (Companhia das Letras), quarto livro da série "Minha Luta", de seis volumes, que o consagrou como um escritor comparado a Proust. 

O autor levou John, o filho de oito anos, para Paraty. Nesta quinta (30), ele deu uma entrevista coletiva, em que falou sobre a vida no vilarejo da Suécia onde vive, que tem 300 habitantes, e sobre o Brasil. 

O autor disse ter lido e gostado do livro "Diário da Queda", do escritor Michel Laub, e comentou sobre a experiência de assistir ao jogo entre Brasil e Alemanha na Copa do Mundo, que resultou no 7 a 1: "Senti que aquilo não era mais um esporte". 

Nesta entrevista concedida por telefone na terça (28), do Rio, Knausgård fala de um novo projeto sobre as quatro estações e diz ter vontade de escrever um romance não relacionado à sua vida.
Ele também reflete sobre o ataque à boate gay em Orlando, critica o Brexit e acaba comentando sobre os temas mais presentes na sua obra: o cotidiano, a vida, o nascimento e principalmente a morte.

Folha - No segundo livro da sua série, você escreve sobre como tem vergonha de dar palestras. Como se sente por ter de falar em Paraty?
Karl Ove Knausgård- Muitas coisas mudaram na minha vida desde o segundo livro. Viajo e falo sobre os livros, já estou acostumado e até gosto disso. Sou muito tímido, então não converso muito com as pessoas. Mas sinto-me completamente livre no palco e quando escrevo. 

Quais são suas primeiras impressões do Rio?
Chegamos ontem à noite. É muito estranho chegar num continente que você nunca viu antes, no escuro, sem saber como é. E é emocionante levantar no dia seguinte para ver como é –e é lindo. Há pássaros grandes, devem ser pássaros só daqui, e isso me dá a sensação de estar em outro continente, algo que eu amo. Mas não é tão diferente da Noruega –há montanhas e o mar, a diferença é que a vegetação é tropical. É exótico, mas no sentido de que se você fosse para Escandinávia, você também a acharia exótica. Trouxe meu filho comigo. É mais fácil vir porque também é por ele, para que ele possa conhecer o Brasil e ver algo que nunca viu antes. 

O que você tem escrito?
Estou escrevendo um projeto sobre as quatro estações. Três livros já foram publicados na Noruega e o quarto, sobre o verão, será publicado em agosto, mas eu ainda não o terminei. Essa manhã escrevi sobre estar no Rio, descrevi o cenário, as montanhas e o mar, a primeira impressão do exótico, então haverá um pouco do Brasil no livro. É inverno aqui, mas ainda é verão na minha cabeça. A temperatura aqui é a mesma da temperatura que estava na Suécia quando saímos.

Parte dos livros é uma carta para minha filha, que ainda não tinha nascido quando a série começou, então é como se eu estivesse mostrando o mundo para ela: "é isso que te aguarda". E é também uma enciclopédia de coisas, como o riso, a água, o carro, a grama, o sol. O terceiro livro, sobre a primavera, é um romance sobre um dia da vida dela. E o quarto livro é uma mistura de enciclopédia com diário. 

Como você mergulha nas suas memórias? Você escreve sobre coisas que a maioria de nós não lembraria, embora não saibamos o que é verdade.
É um processo. Quando você se abre, surgem coisas das quais não se lembrava. Elas vêm, você escreve sobre elas e elas despertam outras memórias. Nossa vida é tão rica e grandiosa, mas não precisamos de todas nossas memórias no dia a dia, precisamos só de algumas para manter nossa identidade em ordem. Escrever é uma forma de acessar esse mundo. Mas invento muitos detalhes. 

O neurocirurgião inglês Henry Marsh, que também estará na Flip, diz que lhe fascina como o cérebro, algo tão material, contém em si nossa consciência. Você acompanhou algumas cirurgias que ele fez. Teve essa sensação?
O mistério se aprofundou. Escrevo muito sobre isso nesse novo livro, sobre natureza e animais e coisas biológicas –o mundo externo. O cérebro não é nada, é só uma massa, como água-viva. É tão pequeno, e contém em si todas nossas emoções, nossas experiências, tudo o que vivemos está lá. E é um mistério tão grande quanto Deus. Não dá para compreender. Como é possível? O que é? São só reações químicas nessa matéria, mas também há minha vida ali. 

Vocês dois trabalham com a morte, escrevem sobre ela. Como que a morte mudou a forma como enxerga a vida?
Só tive uma experiência com a morte e esse foi o motivo pelo qual escrevi 3.600 páginas a meu respeito. Vi meu pai morto e tentei entender o que aquilo representava. Quis expressar a intensidade da vida. O sentido da vida foi tão impactante quando confrontei a morte que tudo mudou. Era como estar no mundo de uma forma completamente diferente. E isso desapareceu e eu voltei a ter uma vida normal, com os problemas do cotidiano. E aí vem o amor, o nascimento de filhos e há o mesmo tipo de concentração de vida. É o oposto com a morte porque a vida desaparece, mas as estruturas são as mesmas. E é quase impossível viver assim, com essa intensidade. É impossível estar apaixonado mais que alguns meses, e aí outra coisa deve acontecer, e é a mesma coisa com o luto. 

Você escreve sobre acontecimentos triviais. Como se encaixam para formar uma coisa só, delicada e grandiosa?
Quando vejo meus filhos –minhas mais velhas têm 12 e 10 agora–, vejo que têm as mesmas experiências que tive, sei que se apaixonam, têm relacionamentos de uma semana. Sei como é importante para eles e como é essa sensação. Mas vivo à margem deles e não estou consciente do que acontece com eles, nesse sentido. De fora, é quase insignificante. Os livros tentam ver tudo de dentro, como é ser uma pessoa por dentro. A literatura pode fazer isso, pode humanizar os outros ao ampliar a nossa própria vida.

Quando algo como um ataque terrorista acontece, a reação que temos é desumanizar a pessoa que fez isso, fazemos dela um monstro, mas não é assim; ela pode ter sido como nós, ter tido filhos como nós, ter se apaixonado como nós. Tenho pensado sobre isso, sobre o que aconteceu em Orlando. Estava num parque há alguns dias. Uma luz encantadora incidia na água, dançava nas árvores, pássaros cantavam de forma harmônica. A sensação de estar vivo era tão boa e então eu pensei: "Como é possível estar aqui, com essa beleza, e fazer algo tão destrutivo como essa pessoa fez?" 

Você tem pensado mais sobre isso por causa dos seus filhos?
Sim. Quando algo assim acontece, pensamos: "E se fosse meu filho ou minha filha?". Ano passado sentimos os refugiados chegando como uma onda abstrata, e então a foto do menino morto na praia mudou a atmosfera porque entendemos que não era algo abstrato, era o filho ou a filha de alguém. E isso durou uma semana ou duas. Mas é possível ter essa visão e esse alcance na literatura. A literatura pode nos fazer entender que essas pessoas somos nós. Que ela sou eu, que eu sou ele. É um momento muito interessante na Europa agora. 

Sim, com a saída do Reino Unido da União Europeia, principalmente. O que acha da decisão?
É uma decisão de direita, nacionalista e isolacionista. Me parece muito, muito ruim. 

O que você tem lido?
Um livro muito antigo, de 1750 ou algo assim, de um escritor sueco, Emanuel Swedenborg. Ele é um personagem quase místico. Era um cientista que de repente teve uns sonhos que mudou completamente a forma como via vida. Ele passou a falar só sobre os mortos, os anjos e outras dimensões. Me interessei por essa mudança para o mundo dos sonhos. Tenho lido e escrito sobre isso.
lVocê sonha muito

Sim. Sou muito fascinado por isso, assim como sou fascinado por nossas memórias. Mas não analiso muito meus sonhos. Às vezes tenho sonhos que viram realidade e fico curioso como isso acontece. Não estamos conscientes, mas às vezes vemos algo, lemos ou entendemos algo e não refletimos a respeito, então não chega ao nosso estado consciente. E então sonhamos com aquilo, são sonhos honestos. É fascinante. 

Você pretende escrever outro livro depois do projeto das quatro estações?
Sim, planejo um romance. Uma ficção clássica, em que nada é verdadeiro, com seis personagens diferentes. Se você publicar isso, terei de escrever de fato. Talvez seja por isso que eu esteja te contando. 
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Reportagem por  JULIANA GRAGNANI
ENVIADA ESPECIAL a Paraty
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/06/1786731-a-literatura-nos-faz-entender-que-os-outros-somos-nos-diz-knausgrd.shtml

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