Luiz Felipe Pondé*
Ilustração de Ricardo Cammarota para 'Afetos Morais', texto de Luiz Felipe Pondé |
Muita gente pensa que filósofo é "racional". Tem muito filósofo assim
mesmo. Que acredita nas ideias. Mas nem sempre é assim. Para mim, as
ideias seguem as taras e as emoções, se acomodam a elas, que fazem o que
podem para sobreviver num mundo muitas vezes hostil aos sentimentos.
Penso, como os românticos, que o centro da vida são os afetos.
Dias atrás, uma amiga me pôs uma questão de ordem moral muito
instigante: do que eu preferiria morrer? De tristeza ou de culpa?
Proponho a você a mesma indagação. Qual seria, entre as duas, a pior
forma de morrer (ou viver)?
Caso fosse dada a você a necessidade imperativa de fazer uma escolha
desta ordem, morrer de tristeza ou morrer de culpa, qual você
escolheria? Não tenha pressa em responder. Afinal, nas duas alternativas
está a palavra "morrer", palavra esta que exige cuidado ao ser
manipulada. Nessa questão está pressuposta a escolha entre dois males
(como me dizia outra amiga dias atrás).
As duas alternativas transitam pelo que na filosofia chamaríamos de
experiência estética e moral. Estética em filosofia não significa a
priori algo a ver com a arte, mas com as sensações por conta da palavra
grega "aesthesis" ser traduzida por sensações ("anestesia" significa
perda das sensações não por acaso...). Uma experiência estética toca os
afetos, o gosto, as sensações.
Moral, por sua vez, fala do comportamento, da norma, da boa ou da má
conduta, do certo ou do errado, enfim, do que é esperado de nós no
tocante ao convívio normatizado em sociedade.
É comum imaginar-se que haveria um conflito inevitável entre uma
experiência estética e uma experiência moral, já que a segunda pressupõe
alguma forma de constrangimento da primeira, a fim de torná-la
"civilizada". Autores como os românticos alemães dos séculos 18 e 19
sonhavam com um encontro profundo entre estética e moral, no qual "o que
sentimos existiria em harmonia com nossa ação moral".
Utopia? Sim, creio ser uma utopia. Somos demasiadamente contraditórios
para termos qualquer forma de harmonia nesse nível. Harmônicos, só os
cadáveres ou os mentirosos.
Voltando a nossa questão. O que você escolheria: morrer de tristeza ou de culpa?
Tristeza é um afeto, um sentimento, um estado de alma advindo da perda
de algo que nos dá prazer, felicidade, gosto pra viver. Impossível
esgotar os sentidos da tristeza. São Tomás de Aquino (século 13) achava a
tristeza uma forma de pecado porque o mundo, segundo o Criador, é bom.
Você acredita que seja bom mesmo?
Culpa, por sua vez, é um afeto essencialmente decorrente da vida moral.
Muita gente acredita, como os filósofos ingleses dos séculos 18 e 19,
que a base da vida moral seja o afeto, portanto, haveria uma relação
profunda entre a moral e a estética. No caso, a culpa seria um afeto
moral decorrente da consciência de que fizemos sofrer alguém que não
merecia sofrer.
Mas na questão em si está o fato de você poder morrer de uma das duas,
tristeza ou culpa. Vejamos um pouco de contexto hipotético para ajudar
em sua decisão.
Imagine que essa tristeza fosse causada pela certeza de que você deve
abrir mão de algo que você ama muito ou deseja profundamente. Algo ou
alguém que você sinta ter buscado a vida inteira, mas que não pode ou
não deve ter com você, a não ser que seja às custas de muito sofrimento
para outras pessoas que não merecem tamanho e atroz sofrimento.
Você deveria abrir mão desse seu desejo em favor do que seria o esperado
em termos de normas sociais e de cuidado para com os "inocentes". Ao
fazê-lo, optaria por ser triste, mas fiel ao que é certo, daí minha
amiga falar em "morrer de tristeza". Escolheria a infelicidade em nome
do que é moralmente justo.
Por outro lado, se você optar pelo desejo, levaria a agonia para o
coração daqueles que não deveriam viver essa agonia. Daí a ideia de
"morrer de culpa". Morrer de culpa seria o preço por ter sido fiel ao
seu desejo. Abrir mão da felicidade em nome do "certo" pode lhe fazer
infeliz. Mas, a infelicidade pode ser um dos hábitos mais profundos em
nossas vidas.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/07/1794995-duvida-sobre-morrer-de-culpa-ou-tristeza-divide-estetica-e-moral.shtml
Mas se é uma tristeza consciente e embasa num valor moral, não é uma tristeza genuína, é paradoxal. Se para você a escolha pelo dever é mais importante que o utilitarismo, deve se alegrar com sua decisão. O contrário também é verdadeiro. Essa questão é mais simples do que parece.
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