sábado, 23 de julho de 2016

Eduardo Sá: ‘Bons pais precisam fazer 1 asneira a cada 8 horas’.




Eduardo Sá. “Pais que mais me preocupam são os que querem tanto não errar que se tornam assustados e inseguros, como se qualquer erro fosse um drama”
Foto: Divulgação / Divulgação
EDUARDO SÁ
Especialista diz que crianças que fazem birra ‘têm alma’

Eduardo Sá. “Pais que mais me preocupam são os que querem tanto não errar que se tornam assustados e inseguros, como se qualquer erro fosse um drama” 

Psicólogo clínico, psicanalista e professor da Universidade de Coimbra, o português Eduardo Sá, que lança este mês no Brasil o livro “Brincar faz bem à saúde”, diz que os pais de hoje confundem autoridade com autoritarismo 

Como as nossas crianças estão sendo criadas e como o senhor acredita que deveriam ser?
Somos as melhores famílias e os melhores pais que a Humanidade jamais “produziu”. Planejamos a parentalidade. Cuidamos dos nossos filhos com o coração e com a cabeça. E vamos mais vezes à escola num ano escolar do que os nossos pais terão ido em quase todo o nosso percurso educativo. No entanto, todos estes cuidados não têm sido acompanhados com um exercício de autoridade sensato. A autoridade resulta da sabedoria, do sentido de justiça e da bondade. Logo, as crianças acolhem-na, sem grandes explicações, mas me parece que os pais de hoje foram educados em famílias, escolas e numa atmosfera social tão autoritárias que confundem autoridade e autoritarismo. E, em vez de usarem o “não!” com alma e convicção, transformam-se em “pais bonzinhos”, que exercem a autoridade com medo, como se um “não!”, em vez de proteger, traumatizasse as crianças. Os pais também esquecem, por vezes, que a família é mais importante que a escola. E se a escola é um bem precioso e indispensável, a família será a enciclopédia e a gramática da vida. Em outras palavras: os pais confiam à escola funções que têm de ser suas. 

Todo pai e mãe quer acertar, acredito. Isso é bom?
Nim... Isto é: sim; e não. Mas eu explico. As mães reclamam para si um “sexto sentido”, que é uma forma de dizer aos filhos que elas os sentem. É verdade que todos os pais adivinham os filhos. E acertam milhares de vezes! Mas, em diversas circunstâncias, parecem querer muito ser perfeitos. Se já acertam tantas vezes, por que precisam ser perfeitos? Porque querem demonstrar a si próprios que são melhores, como pais, do que os pais que tiveram. Na verdade, pais humildes demonstram aos filhos, todos os dias, que os sábios não são aqueles que não erram; são, antes, aqueles que aproveitam todos os seus erros para aprender. Gosto que os pais não percam de vista que os bons pais precisam fazer uma asneira a cada oito horas. Os pais que mais me preocupam são os que querem tanto não errar que se tornam assustados e inseguros, como se qualquer erro fosse um drama.

Qual é a responsabilidade familiar no aprendizado da primeira infância?
É total. As crianças esperam ser lidas pelos pais para que, depois, consigam ler o mundo à sua volta e dentro de si. O período que vai da segunda metade da gravidez aos 2 anos da criança é precioso e indispensável. É nesse período, pela coerência e pela constância com que as crianças são estimuladas, que se forma uma rede nervosa que faz com que a mãe e o pai sejam os grandes responsáveis pelo “software” que as crianças dispõem para toda a vida. É nesse período, e pela forma como são cuidadas, que as crianças desenvolvem recursos para que seu cérebro passe a ter um “pacemaker” que as torna mais tranquilas, bondosas e saudáveis. É nesse período que as crianças desenvolvem os mais de um bilhão de micro-organismos do seu intestino e, com isso, ganham um sistema imunitário e estabilizadores emocionais que as tornam mais robustas. E é nesse período que aprendem a amar, a aprender, a sentir, a tocar, a descobrir e a se espantar.

No livro o senhor defende um mundo onde as crianças façam birras, mas depois escreve que as crianças precisam de regras estabelecidas pelos pais. Como equilibrar a birra da criança e a autoridade dos pais?
As crianças que fazem birras têm alma, e seus pais devem ser considerados “produtos de qualidade”. É como se, ao fazer birra, a criança dissesse que está tão segura da sabedoria e da bondade dos pais que não hesita em ser agressiva ou expressar sua raiva. A tarefa dos pais será fazer com a agressividade dos filhos a “quadratura de um círculo”: permitir-lhes que a manifestem, claro. Mas, de acordo com as regras que os pais entendam sensatas. E, também, sem nunca os magoarem. Os pais não podem ignorar que a birra está acontecendo nem podem esperar que uma criança se canse de fazê-la: mais de dez minutos de birra é proibido. 

O que o senhor mudaria no modelo atual de escolas?
Algumas coisas. Eu gostaria de uma escola onde as aulas fossem de manhã, porque somos animais cujos ritmos biológicos nos tornam mais acutilantes e mais inteligentes de manhã; onde as aulas tivessem entre 45 e 60 minutos, e fossem participativas em vez de expositivas. Uma escola onde os recreios tivessem entre 20 e 25 minutos, e fossem cobertos e adequados — porque brincar é uma atividade de todo o ano. Uma escola onde todas as disciplinas tivessem o mesmo valor, e sem turmas de bons alunos e turmas de alunos banais. Uma escola onde nunca se sossegasse até se descobrir o que cada aluno tem de singular. Uma escola com menos alunos por sala, menos amiga dos trabalhos de casa, com mais cooperação entre professores e família. Uma escola com mais direito à dúvida e aos erros.

Como fugir do formato de avaliações na escola se, no fim da vida escolar, pelo menos no Brasil, o aluno tem que fazer um exame nacional para demonstrar seu nível de conhecimento, determinar para que universidade irá?
As avaliações ajudam a crescer, porque viver é avaliar e ser avaliado. Seja como for, não faz sentido avaliar toda a sabedoria de um aluno num único exame. E um único exame para abrir a porta do ensino universitário é muito perigoso, porque pode estragar a forma como a educação democratiza o mundo.

Por que crianças com boas notas podem virar jovens inseguros?
Primeiro porque os pais podem se preocupar demais com as notas que as crianças têm nas diferentes disciplinas da escola e muito pouco com as “notas” noutras áreas da vida. As crianças precisam ter boas notas como filhos, irmãos, netos, boas notas quando brincam, como amigos, quando jogam ou fantasiam. Só ter boas notas na escola pode esconder outras necessidades. E isso as torna inseguras, porque elas têm a noção de que uma nota ruim pode revelar suas dificuldades e fazê-las desabar. 

A escola ensina pensamento crítico?
Não. Sobretudo porque a escola esquece que todas as crianças, quando chegam às aulas, têm uma vida, têm algum mundo e são sábias. E a escola escuta mal e divide pior. Por outro lado, porque a escola lida com o conversar como se ele fosse importunar, quando é aclarar. E despreza a benção que é, para as crianças, compartilharem das histórias de vida de um professor. Um professor de rosto humano, quando divide sua sabedoria, é acolhedor e hospitaleiro e ensina quase sem querer. A escola não repara que sua função não é sobrepor uma resposta às perguntas que as crianças ainda não fizeram mas, ao contrário, acarinhar as suas perguntas difíceis e descobrir uma resposta que as ligue a todas. A escola precisa perceber que escutar é promover revoluções tranquilas. 

O senhor é a favor do ensino domiciliar? Por quê?
Não. A escola vale pelo que se aprende na sala de aula mas, também, pelo que se aprende no recreio. E vale, ainda mais, pela forma como a pluralidade e a diversidade trazem para dentro de uma criança todo o mundo. O ensino domiciliar não traz, nem de perto, todo o mundo que só a escola dá as crianças.
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REPORTAGEM por Viviane Nogueira

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