sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Transformar Amazônia em dinheiro súbito não é próprio de verdadeiros empresários e governos


 José de Souza Martins* 
 
A transformação da questão ambiental em vômito de ignorância no templo da natureza preocupa a parte humana do mundo cujo cérebro não foi corroído pelos gases tóxicos da voracidade incondicional de lucros incendiários. Os obtidos à custa do presente e do nosso futuro. Justificar a transformação da Amazônia em dinheiro súbito, porque o país se tornou um entreposto de commodities, não é próprio de verdadeiros empresários e menos ainda de competentes governos. O tempo do desenvolvimento econômico e social não é o tempo do imediato, é o tempo histórico da prudência. Sem consciência do futuro, o atual é pressa tola.

No Brasil, no entanto, não é incomum que o governo e as autoridades, que devem fiscalizar e reprimir os crimes e as atividades antissociais, tenham sempre uma desculpa para o indesculpável. É o caso em relação às queimadas destrutivas do meio ambiente. Este é um momento particularmente significativo dessa violação do dever governativo.

Quando governantes acham que consumir o meio ambiente com a motosserra e as chamas é lícito, para assegurar os ganhos dos poucos em prejuízo dos muitos, e que disso depende o PIB, confessam que o dinheiro de poucos é mais importante do que a vida de todos. Quando dizem que o trabalho escravo, um item amazônico, não é escravo, confessam que a liberdade não é um valor essencial desta sociedade. O que dessa liberdade faz mera liberdade condicional.

Quando proclamam e asseguram que possam armar-se os que quiserem, especialmente no meio rural, onde é alta a violência dos que podem contra os que não podem, revogam o princípio de que é das Forças Armadas o monopólio da violência, para cumprir as leis e assegurar os direitos de todos. E os da própria nação, como sujeito coletivo da nacionalidade.

Os problemas destes dias são apenas a ponta flamejante de um conjunto de desorientações conexas que nos põem aquém da civilização. Estamos no rumo da desordem e da barbárie. Adeus, ordem e progresso.

Bravata e ignorância não resolvem problemas sociais e problemas ambientais. Além dos prejuízos econômicos que no curto prazo acarretará, a conduta brasileira em relação à questão ambiental afetará o setor produtivo, do lucro ao emprego. A desorientação do governo indica uma inclinação que, pelas consequências possíveis, poderá ser interpretada como genocida.

A pátria está em perigo. Atualizando a palavra do botânico Saint-Hilaire, que conheceu o Brasil inteiro como ninguém antes de o Brasil ser independente: ou o Brasil acaba com a saúva da criminalidade ambiental, ou a saúva da criminalidade ambiental acaba com o Brasil.

O empresariado brasileiro, não só o do agronegócio, tem não só o direito, mas o dever de se insurgir contra os negocistas desse novo capitalismo, o neocapitalismo do prejuízo que lhes virá. Capitalismo só vale um: o do lucro com responsabilidade social. O capitalismo é um sistema político de coadjuvantes, não só quem investe e lucra, mas também quem ajuda e quem trabalha. Ao que parece, é possível ganhar muito dinheiro,
rapidamente, com a mentalidade anticapitalista desse neocapitalismo emergente, o do lucro de hoje no lugar do lucro de sempre.

A ignorância palavrosa produziu em poucas horas, nestes dias, para o capitalismo brasileiro, um retrocesso e um prejuízo cujo tamanho não será indicado pelos índices da bolsa. O liberalismo econômico de botequim gera uma democracia de bêbados, mas não supre nem sustenta a carência de inteligência e de prudência política e governativa.

Essa espécie de pacto com satanás, de que nos fala Guimarães Rosa, que disso soube como capanga de Manuelzão para aprender as coisas do sertão, como a que se esconde na ambição de dinheiro e de poder, é coisa de gente que não enxerga o que faz.

Disso, ouvi muito nos sertões do Brasil central, caboclos me demonstrando, tim-tim por tim-tim, cumaé que o coisa ruim, o pactário de encruzilhadas e cemitérios, ensina o muito do poder de ganhar em troca da alma do vivente, o prejuízo do finalmente. Mesmo quem não sabe que fez o pacto, está nele em pensamento, palavras e obras. O dinheiro existe para ser possuído e usado, e não para possuir as pessoas que o usam.

Aqueles que se omitem e debocham dos dramas do mundo, em nome do dinheiro fácil, parecem não saber dessas coisas e de seus silêncios ruidosos. Cada árvore tombada e queimada indevidamente, pensando o queimador que o que é de todos é só daquele um, é um ponto a mais para a cota de azeite fervente no tacho em que penam os que mandam derrubar a mata para endinheirar-se. Quando chegar a hora quente dos confins e dos confinamentos, o muito dinheiro não vai refrigerar o modo anticapitalista de ganhar e de gastar. É só esperar.
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José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6413647/jose-de-souza-martins-transformar-amazonia-em-dinheiro-subito-nao-e-proprio-de-verdadeiros-empresari 30/08/2019

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

No debate Estado x Mercado, uma contribuição

Klaus Brüschke

No contexto dos desafios representados pelo desenvolvimento econômico, o Papa Francisco faz um convite a jovens economistas e empreendedores – “quem hoje está se formando e começa a estudar e praticar uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda” – a se reunirem em Assis, na Itália, em março de 2020, num evento “que nos leve a fazer um ‘pacto’ para mudar a atual economia e dar uma alma à economia do amanhã”.

O pensamento econômico hegemônico é decorrente de uma concepção de ser humano precisa: o Homo œconomicus. O indivíduo livre para agir e responsável pela própria sorte, emancipando-se de toda forma de tutela – por exemplo, do Estado –, agiria racionalmente maximizando os resultados e interagindo concorrencialmente com outros indivíduos no mercado. Paradoxalmente, sujeita-se ao mercado sujeito ao capital. Tal concepção se contrapõe à outra, pela qual o ser humano é determinado pelas relações sociais dialéticas de trabalho. Falta a ambas as concepções a “alma” de que fala o Papa.

Dar “alma” à economia poderia ser apresentar a concepção do “ser humano que Deus revelou ao ser humano”: a pessoa, o ser em relação – não qualquer tipo de relação (instrumental, competitiva ou dialética), mas amor atuado em reciprocidade. O “modelo” (termo impróprio) é a própria Trindade. Segundo esse “modelo”, temos o máximo da individualidade (cada pessoa foi criada única e irrepetível) e o máximo da sociabilidade (pela comunhão no Corpo Místico de Cristo).

Dar “alma” à economia poderia ser trazer essa concepção das categorias espirituais e teológicas para as sociais e econômicas. Há vertentes das ciências sociais que estudam o amor como categoria sociológica (o grupo internacional Social-One estuda como tal o ágape, o amor em sua reciprocidade). Conheço mais a Economia de Comunhão, idealizada por Chiara Lubich. Para ela, trata-se de tornar a “cultura do ter” uma “cultura da partilha”. As centenas de empresas que aderem a essa proposta partilham o lucro, com os excluídos da sociedade, incluídos não só na roda de consumo, mas, sobretudo, na rede de relações sociais fraternas estabelecidas a priori.

Com tal “alma”, a atividade econômica passa a ter por finalidade produzir riquezas a ser partilhadas com todos, bens que circulem e serviços que sejam serviço. O mercado volta a ser o espaço de encontro e de trocas (como estuda a Economia Civil). Não se mercantilizam mais a terra (preservando-a da lógica predatória e latifundiária), o trabalho (salvaguardando-o da lógica da competitividade) e o dinheiro (estancando o dreno para o “capital improdutivo” das riquezas indispensáveis ao progresso humano, como bem explica Ladislau Dowbor). O evento de Assis será um intercâmbio de experiências já em andamento de uma “economia profética” assim.

Dar “alma” à economia poderia ser apresentar tal concepção cristã – expressa de maneira plural – estabelecendo pontes de diálogo com outras correntes de pensamento. Isso implica reconhecer nelas exigências autênticas, como o anseio de o indivíduo ser plenamente protagonista e o anseio de uma sociedade de relações fraternas. 

Afinal, continua o Papa: “Todos, todos nós mesmos, somos chamados a rever nossos esquemas mentais e morais, para que possam estar mais em conformidade com os mandamentos de Deus e com as exigências do bem comum… [Jovens,] Se ouvirdes o vosso coração, sentireis que sois portadores de uma cultura corajosa e não tendes medo de assumir riscos e comprometer-vos a construir uma nova sociedade”.
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* Membro do Movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova e articulista da revista Cidade Nova.
Fonte: http://www.osaopaulo.org.br/colunas/no-debate-estado-x-mercado-uma-contribuicao  21/08/2019

terça-feira, 27 de agosto de 2019

O que há por trás das falas do presidente?

Paulo Martins*
 Resultado de imagem para presidente Bolsonaro pintura


Após oito meses de governo algo deve ser dito: o padrão comportamental do presidente é absolutamente coerente. Afinal não há uma semana sequer que não sejamos pegos “de assalto” por uma fala que não possa ser considerada intempestiva, pouco qualificada, desmedida, ou mesmo, inconveniente. São “tiros para todos os lados”, com a devida vênia. Ainda que “seu alvo predileto” seja um espectro político específico – a esquerda – e o episódio com os governadores do Nordeste é paradigmático[1], antigos aliados ou atuais colaboradores e parceiros também são “alvejados” por seu fel. Gustavo Bebiano, Alberto Santos Cruz, Ricardo Vélez Rodrigues e Alexandre Frota são exemplos notáveis. Qual seria o próximo? Há quem aposte na pasta da Justiça, já que os atos contra a autonomia da Receita Federal, da Polícia Federal e do extinto Coaf afetam diretamente o “superministro” Moro. 
 
Entretanto, mesmo que seja típico de Bolsonaro personalizar os ataques embebidos com sua atrabílis, suas ações somenos muita vez causam espanto, já que diante de uma crise sem precedentes no emprego – os 13% são respeitáveis –, com uma saúde em frangalhos – o SUS está em perigo – e uma educação vilipendiada – é melhor nem comentar –, o presidente pauta seu dia a dia numa agenda completamente deslocada de problemas reais do País. Afora o fato de que paradoxalmente indo por esse caminho acaba por destruir algo que havia sido construído para o bem da população: velocidade nas estradas, cadeirinhas de criança nos automóveis, a questão dos armamentos, a embaixada para “o seu número 3”, o deputado Eduardo, censura na Ancine, as ONGs incendiárias, etc. Já nos habituamos ao blá-blá-blá, mas sexta-feira, 23 de agosto, houve um repique de panelas.

Limitasse Jair Messias Bolsonaro a operar ações apequenadas no cenário do comezinho nacional, menos pior, mas seus vitupérios e impropriedades internacionais solapam a tradição das relações exteriores brasileiras, respeitadíssima no concerto das nações. Desqualificar e vituperar o possível próximo presidente da Argentina, Alberto Fernández – “bandidos de esquerda começaram a voltar ao poder”[2] –, o cancelamento do encontro com o chanceler francês Jean-Yves Le Drian a fim de dar conta de sua “urgência capilar”[3], são alguns exemplos de como não fazer política internacional. Entretanto o pior haveria de vir: as bravatas contra a Alemanha de Angela Merkel[4] e a Noruega de Erna Solberg[5], com a questão do Fundo Amazônia, eram a ponta do iceberg que culminaria na maior crise internacional que o Brasil já vivenciou. Às vezes o “tiro sai pela culatra”. E isso um bom militar saberia. Sabe um miliciano qualquer. Hoje estamos à beira de assistir ao malogro do acordo União Europeia e Mercosul que foi construído nos últimos anos. Mas vejamos. Embora nesse caso a boca-rota tenha levado a um grande problema, parece-me que no cotidiano suas falas encobrem uma estratégia de “governo” que se deseja Estado. Isso sim um problema terrível, quem não se lembra da aula de história: “L’État, c’est moi”?.

Há quem diga que a boca de trapo desnuda idiossincrasias, outros afirmam despreparo, alhures afirmam que são “gozações”, “tiração de sarro”, mas Frota na semana passada foi um pouco mais forte, “um idiota ingrato que nada sabe”[6]. Em recente artigo no El País, Juan Arias afirma quanto à linguagem de Bolsonaro: “Desde o surgimento da psicanálise, e depois de Freud e Lacan, conhecemos muito bem o perigo contido na linguagem, que nunca é inocente, porque também revela o abismo do nosso interior. […] Nada seria pior do que tomar suas bravatas e loucuras linguísticas como algo sem importância a que deveríamos nos acostumar. Pode ser trágico”[7]. Acredito exatamente nisso. Entretanto, assomo às falas certas ações que conspiram pari passu. Todo esse aparato que, aos olhos de pessoas esclarecidas, pode parecer apenas motivo de galhofa, é, antes de qualquer coisa, caso pensado, projeto estratégico, cortina de fumaça.

Porém não quero dizer que estas ações e falas de Bolsonaro não afetem o Brasil, não destruam aparelhos do Estado ou não limitem ações governamentais, mas, antes de quaisquer efeitos danosos maiores, essas obnubilam as reformas de cunho estrutural cuja característica primeira é a redução do Estado, o tornando ínfimo, como é do gosto ultraliberal. O que seguramente afeta a maior parte da população brasileira – somos um pobre país rico –, pois que essa depende de políticas de Estado em diversas esferas: saúde, educação, habitação, segurança, trabalho, previdência são apenas algumas.

O sucateamento das universidades federais e das duas agências federais de fomento, Capes e CNPq, literalmente aniquila o sistema de educação e de pesquisa no País. Não imaginemos que esse projeto está apenas limitado ao desprezo do presidente ao meio universitário por conta de uma agenda pessoal, ideológico-religiosa – não que isso não exista. Na verdade, o “Future-se” é o “braço armado” do mercado na “guerrilha” contra a educação pública, principalmente com implemento das parcerias entre as IFES e as organizações sociais (OSs) que irão fraudar, fraturar, por fim, “eliminar” a autonomia universitária garantida nos artigos 205 e 206 da CF[8].

Por seu turno, reforma da Previdência, cuja “economia” para os cofres seria da ordem de 1 trilhão de reais, tem no estrato social daqueles que perfazem entre um a cinco salários mínimos – “os privilegiados” – a “economia” em torno de 600 bilhões de reais, que cumulada com o sistema de capitalização – esse “a menina dos olhos” de Paulo Guedes –, um presente ao mercado financeiro, não só diminuirão o tamanho do Estado, mas o entregarão à iniciativa privada, perpetuando as graves distâncias entre esse grupo – a maioria da população – e os super-ricos, esses, sim, intocados pela reforma previdenciária.

Devemos ficar atentos, pois “a mãe de todas as reformas”, como é conhecida, começa a tramitar no Congresso. Se a reforma tributária vier para qualificar a cobrança de impostos, amparando a premissa de “quem ganha mais, paga mais” seja implantada ou diferenciando os conceitos de salário e renda, regulando a aplicação dos recursos arrecadados, corrigindo as distorções da tabela do IRPF, criando novas alíquotas para os mais ricos, não creio que haverá alguém efetivamente contra, a não ser os privilegiados pelo atual sistema tributário brasileiro que indubitavelmente existem. Mas, nas atuais circunstâncias, isso seria fechar um acordo com elfos e hobbits. Como não creio em seres, tanto pior…

Sintetizando, ainda que certas falas e atos de Bolsonaro possam e devam ser alvos de chacota como fez o deputado Marcelo Freixo[9] – perguntado se o presidente falaria dia sim, dia não apenas – quando da proposta daquele para redução da poluição ambiental[10]; ainda que algumas vezes possam se tornar um imbróglio internacional com consequências devastadoras[11]; ainda que sinalizem muitas vezes para um desvio que, pautado por discurso moralizante, se associa ao escatológico e ao sexual[12], na maior parte das vezes seu discurso e sua ação são absolutamente descolados de algo útil ou eficaz para seu governo e para o Estado, entretanto ocupam um enorme espaço midiático, o que acaba por encetar desvio do olhar atento dos cidadãos para as reformas que estão claramente desestruturando o Estado brasileiro e que, certamente, irão produzir danos provavelmente duradouros.
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[8] Cf. meu artigo neste jornal: “Future-se ou devoro-te”, de 31 de julho de 2019. (https://jornal.usp.br/artigos/future-se-ou-devoro-te/).

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 * Paulo Martins é professor e vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP)
Por - Editorias: Artigos - URL Curta: jornal.usp.br/?p=268272
Fonte:  https://jornal.usp.br/artigos/o-que-ha-por-tras-das-falas-do-presidente/

A ideologia de género, a imprensa e as redes sociais

O despacho que impõe a ideologia de género nas escolas foi ignorado pela imprensa: a primeira notícia foi dada, três dias depois, por uma rede social.

O Governo, por via dos secretários de Estado para a Cidadania e a Igualdade e da Educação, publicou no passado dia 16 o Despacho nº 7247/2019, que “estabelece as medidas administrativas para a implementação do previsto no nº 1 do artigo 12º da Lei nº 38/2018”, enquanto o país estava a banhos e a imprensa entretida com a greve dos motoristas de combustíveis.

Esta lei é a que impõe a ideologia de género nas escolas. Por ser de muito duvidosa constitucionalidade, a sua fiscalização foi recentemente pedida por mais de um terço dos deputados. À socapa do parlamento e no mais absoluto desrespeito pelo Tribunal Constitucional, dois membros do governo, em fim de mandato, apressaram-se a implementar, às escondidas dos órgãos de soberania e do país – numa sexta-feira de Agosto, em plena ponte do feriado do dia 15! – medidas que decorrem de uma ideologia que não tem qualquer fundamento científico e, muito provavelmente, é inconstitucional.

Como se todos estes atropelos ao normal funcionamento das instituições democráticas não bastassem, a notícia foi praticamente silenciada pelos principais meios de comunicação social. Com efeito, o referido despacho foi publicado no passado dia 16, mas a primeira notícia do mesmo só foi dada, a 19, pelo Notícias Viriato. O que diz muito da imprensa e das redes sociais que temos.

No caso Watergate, um jornal norte-americano conseguiu o que parecia impossível: a demissão de um presidente dos EUA! Mas, quase meio século depois desta façanha, a imprensa não foi capaz de evitar as eleições de Trump e de Bolsonaro.

Quase toda a imprensa norte-americana empenhou-se em impedir a eleição de Donald Trump, apresentado invariavelmente como um louco e um potencial detonador da terceira guerra mundial. Hoje, estas acusações devem fazer sorrir até os maiores inimigos do dito. Apesar das suas evidentes limitações, a verdade é que Trump parece ter derrotado o Estado islâmico e travado a ameaça nuclear norte-coreana, ou seja, fez muito mais pela paz mundial do que o seu antecessor que, no entanto, recebeu, não se sabe bem porquê, o Nobel da paz. Mas, se a imprensa norte-americana – que, mais do que pró-Hillary Clinton, era furiosamente anti-Trump – não conseguiu evitar a sua eleição presidencial, é porque os eleitores já não ligam ao que alguns media dizem.

O mesmo aconteceu no Brasil: alguma imprensa e muitos intelectuais também tentaram, por todos os meios, que o denominado fascista-nazi-antidemocrático Jair Bolsonaro não ganhasse as eleições presidenciais. Mais uma vez, os cidadãos fizeram orelhas moucas a tais paternalistas advertências e presságios de mau agoiro, e o horrível candidato da direita, passe o pleonasmo, foi mesmo eleito, sem que o seu país tenha mergulhado no caos que muitos profetizaram (e alguns, decerto, desejavam). Decididamente, a imprensa já não é o que era.

Estes acontecimentos criaram uma situação paradoxal: a de pretensos democratas criticarem, em nome da democracia, eleições democráticas. A mal disfarçada irritação dos media pôs também a nu a sua falta de isenção: afinal, os meios de comunicação social não são, salvo honrosas excepções, instâncias de reflexão crítica do poder instituído, mas instrumentos desse mesmo poder. Na realidade, já foi assim no fascismo (Estado Novo) e no social-fascismo (PREC) quando, para saber o que
realmente acontecia no país, era preciso recorrer às agências noticiosas estrangeiras.

É verdade que a imprensa é essencial à democracia, mas não é um poder democrático, porque os jornais, rádios e televisões têm donos e interesses que não estão legitimados pelo voto popular. Em geral, a imprensa está alinhada com o politicamente correcto e, por isso, quem queira aceder a um discurso livre, tem que recorrer a meios alternativos, como são as redes sociais, os blogues e sites independentes, que têm também, como é óbvio, as suas debilidades: recorde-se a censura, feita pelo Facebook, a ‘sites’ católicos e o seu fraudulento uso, para fins eleitorais, de dados pessoais.

Um sinal significativo desta perda de influência de alguma comunicação social é o seu insucesso entre a gente mais nova. Durante três semanas deste mês participei num curso de verão, frequentado por mais de três dezenas de profissionais com formação universitária, com idades entre os vinte e cinco e os oitenta anos. Curiosamente, só vi os mais velhos a assistir aos telejornais, porque todos os outros preferiam informar-se por outras vias. Eu próprio, que já não sou jovem, há já vários anos que não vejo um telejornal, não só por falta de tempo, mas também de interesse.

Por acaso, no referido curso, ao passar por uma sala onde três pessoas de idade viam a televisão, vi-me obrigado a ouvir, durante alguns minutos, o telejornal da RTP. Era na antevéspera da greve dos motoristas de combustíveis e essa estação tinha repórteres em várias bombas de gasolina do norte, centro e sul do país. O pivot fez a ligação para os jornalistas destacados e todos, em directo, informaram … que não havia nada para informar! Foi como naquela tempestade que era para haver mas depois não houve, da qual as televisões fizeram uma impressionante cobertura! Não critico os infelizes profissionais destacados para tão inglórias missões, mas quem faz questão em informar o país inteiro de que … não há nada para informar! Como alguém disse: bem-aventurados os que, nada tendo para dizer, o não explicam com muitas palavras!

Enquanto as televisões estavam entretidas a noticiar o que não aconteceu, ocorreu uma coisa muito importante e grave, não só porque afecta milhares de crianças e famílias, mas também porque é, pela certa, inconstitucional: a publicação, de forma sorrateira, de um despacho que implementa a perniciosa ideologia de género nas escolas. Mas, como se trata de uma manigância muito politicamente correcta, alguma comunicação social fez o favor de nada dizer. Ante esta cúmplice conspiração do silêncio, valeu-nos a rede social que se ufana de ter sido o primeiro meio de comunicação a denunciar o escandaloso despacho, três dias depois da sua publicação.

Não estranha que haja quem não esconda o seu propósito de controlar, ou mesmo proibir, as redes sociais. Em nome da qualidade da democracia, claro! As redes sociais, na medida em que dão voz a quem a não tem nas televisões, rádios e jornais detidos pelo poder politicamente correcto, são hoje um dos mais importantes espaços de liberdade de pensamento e expressão, religiosa e política, dos cidadãos. Felizmente, como dizia o poeta, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”!
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* Licenciou-se em Direito na Universidade de Madrid (Complutense) e doutorou-se em Filosofia pela Universidade Pontifícia da Santa Cruz, em Roma. É, desde 1986, sacerdote da prelatura do Opus Dei. Capelão de várias instituições educativas, colabora regularmente em diversos jornais nacionais. É autor, entre outras obras, de A Igreja e a vida (Diel, 2004), Crítica da razão dialéctica de Aristóteles (INCM, 2006), Os defeitos de Maria (Lucerna, 2007), Porque não, com Pedro Vaz Patto (Alêtheia, 2009), Via Sacra (Verbo, 2010), Histórias e Morais (Alêtheia, 2011), e de, com Zita Seabra, Auto-de-fé (Alêtheia, 2012) e As Palavras da Palavra (Alêtheia, 2013). 
Fonte: https://observador.pt/opiniao/a-ideologia-de-genero-a-imprensa-e-as-redes-sociais/ 24/08/2019
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