sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Antidepressivos, utopia e distopia no novo Houellebecq

Michel Laub* 

"Eu ainda não tinha visto um romance mostrar que entrar no mundo do trabalho é como ir para a cova", disse Michel Houellebecq numa entrevista à "Paris Review", comentando o que o levou a escrever ficção. "Nem que há pessoas com e sem vida sexual não por razões morais, e sim porque umas são mais atraentes que as outras".

A lacuna começaria a ser preenchida, claro, com "Extensão do Domínio da Luta", estreia literária dessa figura francesa controversa, em 1994. À parte o exagero da entrevista - sempre houve livros sobre frustrações profissionais e amorosas de todo tipo -, é inegável que sua obra criou um elo original entre o tema fundador - as variações de um grande impasse do desejo - e todo um contexto político, econômico e cultural.

O arranjo está de novo presente em "Serotonina", que acaba de sair no Brasil (Alfaguara, 240 páginas, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman). Na história de Florent-Claude Labrouste, engenheiro agrônomo que viaja por Espanha e França em busca de alento para o que vê como fim de linha existencial, ouvimos ecos de um outro fim - a apatia europeia, e especialmente branca, masculina, de classe média e meia idade, diante de crises como as do humanismo e do Estado de bem-estar social firmados a partir do pós-guerra.

À primeira vista, e como de praxe em Houellebecq, tudo parece construído apesar da prosa e da condução narrativa, e não por causa de ambas. Há mão pesada no desfile de temas que soam como busca de impacto vulgar (zoofilia, misoginia, suicídio) e ruídos em trechos didáticos como num best-seller ("um breve percurso pela história recente da Espanha pode ser útil aqui", "minha mercedes G 350 TD 4x4 estava estacionada no posto Repsol").

Também há desprezo por princípios básicos de verossimilhança e edição. Após redundâncias e situações forçadas, como as que envolvem um pedófilo e a tentativa de matar o filho de uma ex-namorada de Labrouste, o resultado final melhoraria se uns 20% do livro fossem cortados.

Em termos mais amplos, contudo, talvez venha justamente do descuido formal a força de "Serotonina". Como definiu um personagem de J.M. Coetzee, a marca do grande artista às vezes é "deformar a própria mídia para dizer o que não foi dito". É como se regras ficcionais mais estritas, eliminando trechos que "não cabem" na psicologia dos personagens e coerência da trama, impedissem certas ousadias reflexivas, certos picos estéticos obtidos em meio ao entulho da linguagem.

Os melhores momentos houellebecquianos, não por acaso, são estes: volta e meia os personagens param tudo o que estão fazendo ou lembrando para ruminar sobre assuntos maiores que os permitidos pela miudeza do enredo. O típico parágrafo de "Serotonina" começa falando de um objeto próximo, comezinho, e daí se distancia até o arremate algo peculiar, algo engraçado em sua convicção ranzinza/niilista: "Desliguei o motor, hesitando, devia ir lá falar com ele? (...) As pessoas (...) quando pedem conselhos (...) querem mesmo é que uma voz externa confirme que estão numa espiral de aniquilação e morte."

Dentro da tradição literária, trata-se de um resgate de elementos subestimados do velho romance de ideias, aqui adaptados a um procedimento irônico em relação ao leitor. É fácil simpatizar, por exemplo, quando as digressões de Labrouste atingem alvos que desprezamos - a burocracia da administração pública, o estilo de vida bovino e consumista da classe média.

Na página seguinte, porém, esse sujeito solitário, impotente, deprimido e adepto de prazeres mesquinhos - sua meca em Paris é um supermercado que oferece catorze variedades de húmus - compartilha seu desgosto por higiene pessoal, sua defesa de Francisco Franco ("o verdadeiro inventor, em nível mundial, do turismo de charme"), suas opiniões sobre povos e países ("como um holandês pode ser xenófobo?; por si só é uma contradição de termos, a Holanda não é um país, no máximo é uma empresa"), seu orgulho em sabotar a coleta seletiva de lixo ("pode ser que eu não tenha feito grandes coisas na vida, mas pelo menos contribuí para destruir o planeta").

É como se tal ambiguidade, calculada para que variemos entre a empatia e a repulsa pelo personagem, desconstruísse a fragilidade de nossas próprias ilusões humanistas. A mesma fruição do humor e da autenticidade de Labrouste, que consegue ter ideias contrárias ao lugar-comum igualitário, é indissociável do reverso do pacote: ter coragem de dar as costas ao coletivo passa por conviver com a intolerância, o solipsismo, no limite com a autodestruição.

Muito já se falou do caráter visionário da obra de Houellebecq. Em "Extensão do Domínio da Luta", ele teria previsto o fenômeno da violência dos "incels", ou celibatários involuntários na tradução da sigla em inglês. Já em "Plataforma" (2001) e "Submissão" (2015), antecipado manifestações célebres do terrorismo islâmico.

Do mesmo modo, ao retratar o mal-estar de vozes do campo e da cidade alijadas pelo livre-mercado da União Europeia, com direito a cenas de violência numa estrada bloqueada por um protesto, "Serotonina" foi lido como uma espécie de prólogo do movimento dos coletes amarelos que tomou conta da França a partir de 2018 - embora lançado em janeiro de 2019, o livro foi escrito ao longo dos quatro anos anteriores.

São teses simpáticas ao autor e à literatura. Também gosto de pensar que um romance possa ter tamanha centralidade/poder numa época tão filistina. O mais provável, porém, é que o pacote houellebecquiano seja vasto o suficiente para que algo de suas tramas e subtramas, das inúmeras considerações sobre assuntos em voga no noticiário, esteja "certo" à luz de algum evento posterior.

Se há valor em obras como "Serotonina", ele não se deve a projeções do futuro, e sim a diagnósticos do presente a partir de leituras acuradas do passado. É esse clima melancólico que marca o livro: sob o filtro das regras da ficção, mesmo que o programa formal seja quebrá-las constantemente, tem-se o registro dos efeitos individuais de quem experimenta os últimos suspiros de um modelo de sociedade.

Nas palavras de Labrouste, o que sobra daí não é a expectativa do que vem pela frente, o desejo que poderia pulsar quando se encara o desafio do desconhecido. Pensar na grandiosidade do amanhã, tanto faz se em termos ufanistas ou trágicos, não combina com as criaturas houellebecquianas.

No máximo, o horizonte que elas estão dispostas ou são capazes de enxergar é o dos apetites agora moderados ou extintos. Uma utopia/distopia cuja moral é tão simples, pragmática e triste quanto os efeitos de um antidepressivo: "Uma nova interpretação da vida - menos rica, mais artificial, e impregnada de certa rigidez (...). Permite ir tocando o barco. Portanto, ajuda os homens a viverem, ou pelo menos a não morrerem - por enquanto."
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* Michel Laub, jornalista e autor dos romances “Diário da Queda” e “O Tribunal da Quinta-Feira”, escreve neste espaço quinzenalmente
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6393173/michel-laub-antidepressivos-utopia-e-distopia-no-novo-houellebecq 16/08/2019

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