quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Sobre teses, dissertações e a mesmice como padrão

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Ler dissertações e/ou teses é sempre um aprendizado – especialmente quando a escrita desafia as nossas certezas e instiga a reflexão. No mínimo, aprendemos ao nos depararmos com novas informações e/ou pelo estímulo à rememoração enriquecedora de conteúdos que pareciam esquecidos. Por isso, sempre agradeço com sinceridade pela honra do convite. Não obstante, confesso que a paciência se esvai com a leitura dos “capítulos teóricos” e/ou as longas introduções nos quais os candidatos nos fazem percorrer caminhos já percorridos e nos cansam com tal insistência. Não é raro que tais capítulos correspondam à maior parte do texto apresentado, com o “objeto de estudo” relegado às poucas páginas que compõe o último capítulo. Sendo condescendente, a responsabilidade não se restringe ao autor das dissertações e teses analisadas. Em geral, seguem um padrão considerado científico na academia.

As introduções e o primeiro capítulo de dissertações e teses assemelham-se a tratados metodológicos. É o capítulo metodológico por excelência. Some-se a este, a quantidade de páginas dedicadas ao resgate histórico – a tal da contextualização. Algumas vezes chega a ser hilário, pois retorna-se a um passado remoto que obscurece o “objeto de estudo” e tende a tornar-se mais importante do que a apresentação e análise. Dizem que são exigências da ciência!

Por trás das exigências de cientificidade encontra-se, de fato, um eterno recomeçar que nos faz percorrer caminhos por demais explorados e nos leva a repetir as eternas batalhas do passado. É o que BOURDIEU denomina de “culto escolar dos clássicos” (2000: 47). No final, o resultado é uma sistematização, um resumo, nem sempre bem elaborado, dos autores e teorias. Além disso, corre-se o risco de “forçar a barra” com o uso das teorias que se mostram esvaziadas e sem relação com o conteúdo ou a argumentação – isto, sem contar o abuso da utilização de autores apenas como “argumento de autoridade”. *

Claro, tudo isso não invalida a necessidade de adotarmos teorias. Estas cumprem a função de bússolas que nos orientam no fazer o caminho. Como o marinheiro em alto mar ou o explorador em plena selva, precisamos fazer uso de todos os instrumentos que possam nos ajudar a chegar ao porto seguro ou sobreviver às adversidades da densa floresta. Mas, ainda que todos os instrumentos sejam importantes nos vários momentos da caminhada – ou do navegar – alguns se mostrarão fundamentais.
Deixemos de lado as metáforas e passemos ao universo da metodologia. Temos, então, em qualquer pesquisa, uma questão básica: qual a referência teórica? Mais do que mero questionamento científico, trata-se de uma decisão que delimita campos acadêmicos e ideológicos. Não é apenas a relação sujeito-objeto que está em jogo, mas o próprio sujeito e o objeto, a forma como este é tratado por aquele e como os que devem avaliar este tratamento concebem esta relação.

Por outro lado, a definição de uma metodologia, de um referencial teórico, é uma dificuldade que aumenta de intensidade quando se recusa o apego fácil a este ou aquele autor e, por conseqüência, procura-se evitar o risco de enquadrar o objeto à moldura da teoria adotada. Corremos o risco de pagar tributo a vários cânones e, ainda por cima, sermos acusados de ecletismo.

Essa postura crítica implica uma ruptura epistemológica com os esquemas teóricos sectários que tomam a sua verdade como a verdade absoluta; pressupõe uma ruptura, uma conversão do olhar, ou seja, a instituição de um novo olhar que coloque em suspenso as nossas certezas, os nossos preconceitos e os princípios que geralmente aceitamos para a construção dos conceitos. Trata-se, em suma, de manter a dúvida radical. (BOURDIEU, 2000: 49). É preciso, portanto, ousar pensar e ir além da mera repetição, do “culto escolar dos clássicos” e da mesmice como padrão de exposição.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000.
SILVA, Antonio Ozaí da. Maurício Tragtenberg e a Pedagogia Libertária. Ijuí: Editora da Unijuí, 2008.
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*Retomo os argumentos da  introdução de Maurício Tragtenberg e a Pedagogia Libertária (2008), os quais, apesar do passar dos anos, permanecem atuais.
 *Professor do Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá (UEM); Editor da Revista Espaço Acadêmico e Revista Urutágua
Fonte:  Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá (UEM); Editor da Revista Espaço Acadêmico e Revista Urutágua

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Papa Francisco encontrou-se com Stephen Hawking

Imagem 
Papa Francisco e Stephen Hawking | Vaticano, 28.11.2016 | D.R.

O papa encontrou-se esta segunda-feira, no Vaticano, com o físico e cosmólogo inglês Stephen Hawking, no contexto da sessão plenária da Academia Pontifícia das Ciências, que decorre entre sexta e terça-feira, 29 de novembro.

O investigador ateu de 74 anos, membro da Academia desde 1986 e um dos cerca de 60 participantes no encontro, falou sobre "A origem do universo" no primeiro dia da iniciativa.

Na assembleia plenária da academia, considerada a mais antiga do mundo no domínio da ciência e aberta a investigadores independentemente da sua pertença religiosa, participam várias personalidades distinguidas com o prémio Nobel.

No livro "Uma breve história do tempo" (1988), Hawking referiu que o papa S. João Paulo II tinha voltado a despertar nele o interesse pela origem e destino do universo.

Em junho de 2015, entrevistado pelo jornal espanhol "El mundo", Hawking afirmou que antes de se «compreender a ciência, é natural acreditar que Deus criou o universo».

«Mas agora a ciência oferece uma explicação mais convincente. Quando digo que "conheceríamos a mente de Deus" quero dizer que conheceríamos tudo o que Deus conheceria, se houvesse um Deus, que não existe. Sou um ateísta», declarou.

Em conferência proferida este mês em Oxford, o cientista mostrou-se convicto de que a humanidade precisa de encontrar outro lugar para habitar porque a Terra deixará de ter condições.

«Não acho que sobreviveremos mais do que os próximos mil anos sem escapar desse planeta tão frágil. Eu quero que as pessoas tenham interesse em estudar o espaço, assim como eu tive desde cedo», disse.

No discurso aos participantes na assembleia plenária, Francisco acentuou que nunca como agora é tão «evidente a missão da ciência ao serviço de um novo equilíbrio ecológico global».

«E ao mesmo tempo está-se a manifestar uma renovada aliança entre a comunidade científica e a comunidade cristã, que veem convergir as suas diferentes aproximações à realidade para esta finalidade partilhada de proteger a casa comum, ameaçada de colapso ecológico e pelo consequente aumento de pobre e de exclusão social», apontou.

Excertos da intervenção do papa:

«Na modernidade, crescemos a pensar que éramos os proprietários e os donos da natureza, autorizados a saqueá-la sem qualquer consideração das suas potencialidades secretas e leis evolutivas, como se se tratasse de um material inerte à nossa disposição, produzindo, entre outras consequências, uma gravíssima perda de biodiversidade.

Na realidade, não somos os protetores de um museu e das suas obras-primas a que devemos tirar o pó todas as manhãs, mas os colaboradores da conservação e do desenvolvimento do ser e da biodiversidade do planeta, e da vida humana nele presente. 

A conversão ecológica capaz de suportar o desenvolvimento sustentável compreende de maneira inseparável quer a assunção plena da nossa responsabilidade humana em relação ao criado e dos seus recursos, quer a procura da justiça social e a superação de um sistema iníquo que produz miséria, desigualdade e exclusão. 

Em resumo, direi que cabe antes de tudo aos cientistas, que trabalham livres de interesses políticos, económicos ou ideológicos, construir um modelo cultural para enfrentar a crise das alterações climáticas e das suas consequências sociais, de modo que as enormes potencialidades produtivas não sejam reservadas apenas a alguns. 

Do mesmo modo que a comunidade científica, através de um diálogo interdisciplinar no seu interior, soube estudar e demonstrar a crise do nosso planeta, assim é hoje chamada a constituir uma liderança que indique soluções gerais e particulares sobre temas que são discutidos na vossa assembleia plenária: a água, as energias renováveis e a segurança alimentar. 

Torna-se indispensável criar com a vossa colaboração um sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que novas formas de poder derivadas do paradigma tecno-económico produzam danos irreversíveis não só ao ambiente, mas também à convivência, à democracia, à justiça e à liberdade. 

Neste quadro geral é digna de nota a fraca reação da política internacional - ainda que haja louváveis excecções - em relação à vontade concreta de procurar o bem comum e os bens universais, e a facilidade com que são desatendidos os fundados conselhos da ciência sobre a situação do planeta.
A submissão da política à tecnologia e à finança, que procuram antes de mais o lucro, demonstra-se na "distração" ou atraso na aplicação dos acordos mundiais sobre o ambiente, bem como pelas contínuas guerras de predomínio mascaradas de nobres reivindicações, que causam danos cada vez mais graves ao ambiente e à riqueza moral e cultural dos povos.»
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Rui Jorge Martins
Publicado em 28.11.2016
Fonte:  http://www.snpcultura.org/papa_francisco_encontrou_se_com_stephen_hawking.html

A CNBB e o pensamento único

 Pedro A. Ribeiro de Oliveira*
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“Ao publicar a Nota contra a PEC-55 a CNBB tornou-se uma voz dissonante na opinião pública. E sua voz não é uma voz qualquer: ela tem a legitimidade de décadas de lutas em defesa dos Direitos Humanos, lutas nas quais sofreu muitas represálias, mas que resultaram na sua garantia pela Constituição cidadã de 1988. De repente, essa voz dissonante mostra-se capaz de fazer desafinar o coral de louvores à PEC-55. 
Isso o pensamento único não tolera”,


Artigo publicado no jornal O Globo em 21 de novembro acusa a CNBB de “aumentar a confusão” dos católicos ao criticar a proposta de ajuste fiscal que impõe um teto de gastos para o governo federal. O autor mostra-se indignado pelo fato de a CNBB não seguir os mandamentos da economia neoliberal e desconfiar da promessa de prosperidade ao país que se entrega ao capital financeiro. Culpa a “ingenuidade de alguns membros da Igreja” e recomenda que sejam aconselhados por cientistas sociais das universidades católicas (como ele próprio, presumo). O artigo exemplifica bem o que é o pensamento único e por isso tomo-o como referência para esta reflexão crítica.

Não discuto aqui o objetivo do projeto que propõe a redução de gastos com saúde, educação, investimentos e assistência social, mas não toca no “maior gasto público do país: a dívida pública e seus juros” que em 2015 consumiram 500 bilhões de reais, porque isso foi bem explicado por Ivo Lesbaupin em artigo publicado no IHU LINK(22/11/2016). Quero apontar é o ponto frágil do pensamento único.

Pensamento único é a expressão usada em 1995 por Ignace Ramonet para designar o ideário neoliberal difundido pelo mundo após a derrota do socialismo soviético. Sua melhor expressão política foi Margareth Tatcher que, ao impor medidas econômicas e sociais impopulares, justificava-se afirmando: “não há alternativa”. O pensamento único emprega o método de convencimento da propaganda: elabora ideias de fácil percepção – a partir de experiências da vida cotidiana como o manejo da economia doméstica, acesso a bens de consumo, sensações de prazer ou de sofrimento – e as difunde repetidamente, com pequenas variações sobre o mesmo tema, até serem assimiladas pela população-alvo. Importante observar que essas ideias não são suscetíveis de contestação. Como diz Ramonet, “agora um fato é verdadeiro não mais porque obedeça a critérios objetivos, rigorosos, verificáveis e verificados em suas fontes, mas significativamente porque outros meios de comunicação repetem as mesmas afirmações e as confirmam”. Tal como na propaganda, na qual “as proposições lógicas são tão raras quanto as pessoas feias. A questão de saber se o marqueteiro diz a verdade ou não, nem sequer se coloca”. O anúncio do automóvel de grande potência trafegando por ruas desertas é uma encenação que nada tem a ver com a realidade de nossas cidades. Mas quando o espectador vê aquelas pessoas jovens e atraentes a esbanjar felicidade ao adquirir esse objeto de consumo, sente-se induzido a imitar seu comportamento. Por isso, conclui o autor “pode-se gostar ou não de um anúncio. Não se pode refutá-lo.” (O artigo pode ser acessado aqui).

A mensagem fundamental do pensamento único é que somente o investimento de capitais privados traz a prosperidade e – por isso mesmo, na sua concepção, – a felicidade de um povo. Esse postulado dispensa qualquer demonstração racional porque é apresentado como evidente por si mesmo. Qualquer contestação é rejeitada como “ideológica”. É ele que justifica, entre outras medidas, a política de ajuste fiscal agora formalizada na PEC-55. Seu argumento é simples: ela restaurará a confiança dos grandes investidores na economia brasileira e estes trarão seus capitais para gerar a prosperidade geral. A repetição dessa mensagem por pessoas de prestígio nos meios de comunicação – analistas de economia, professores com PhD, empresários de sucesso, consultores de fundos de investimento etc – deveria convencer a opinião pública da necessidade de se aprovar a PEC imediatamente, apesar dos sacrifícios que ela impõe à população. O sucesso desse método reside na obtenção de uma grande convergência de ideias, se possível criando-se a unanimidade de opinião. Por isso ele tenta excluir e desqualificar qualquer ideia diferente ou contrária.

Aqui se entende a postura do articulista ao deparar-se com a nota da CNBB, cujas críticas bem fundadas à PEC-55 quebram a almejada unanimidade da opinião pública. Sua reação é uma tentativa de desqualificar a autoridade da CNBB em pronunciar-se sobre o assunto. Ele faz alusão a alguns documentos do magistério papal – o mais recente deles de 1991, nenhum do Papa Francisco – para afirmar que “os leigos fazem política, cuidam da economia e do funcionamento da sociedade (enquanto) a Igreja indica os caminhos para a observância do Evangelho e da lei natural.” E pergunta: “a Igreja também vai se intrometer, dando palpites sobre detalhes técnicos que envolvem cálculo atuarial, demografia, economia etc.?” O articulista provavelmente desconhece as deficiências de sua teologia dualista, que aos leigos só reconhece a missão de atuar no mundo profano, e estabelece o espaço sagrados como próprio aos padres e bispos. Não leva em consideração que a teologia do Concílio Vaticano II enfatiza a missão evangelizadora da Igreja: é na atitude de serviço e diálogo com o mundo que a Igreja confere credibilidade às propostas de Cristo para as realidades de hoje.

Foi essa teologia que levou a Igreja da América Latina a assumir decididamente a defesa dos Direitos Humanos, particularmente dos mais vulneráveis, como são os presos, indígenas, crianças, nascituros e todas as pessoas que têm a vida ameaçada. Essa corajosa postura de defesa dos Direitos Humanos deu à Igreja Católica – e a outras Igrejas Cristãs de espírito ecumênico – o enorme prestígio que até hoje elas têm em nosso País. Ao assumir a missão de ser “a voz de quem não tem voz”, a Igreja não defende os próprios interesses institucionais; ao contrário, arrisca-se a perdê-los – como ocorreu durante o regime ditatorial de 1964-84 – em favor dos mais vulneráveis. Trata-se da função tribunícia – que na sociedade romana cabia ao magistrado defensor da plebe – que tem sido exercida supletivamente pela Igreja quando o Estado não cumpre seu papel de defender os perdedores do jogo do mercado.

Ao publicar a Nota contra a PEC-55 a CNBB tornou-se uma voz dissonante na opinião pública. E sua voz não é uma voz qualquer: ela tem a legitimidade de décadas de lutas em defesa dos Direitos Humanos, lutas nas quais sofreu muitas represálias, mas que resultaram na sua garantia pela Constituição cidadã de 1988. De repente, essa voz dissonante mostra-se capaz de fazer desafinar o coral de louvores à PEC-55. Isso o pensamento único não tolera. A Nota da CNBB, sensata e bem fundamentada só confunde quem se deixa levar pela propaganda neoliberal: para quem respeita a Constituição e quer ver seus preceitos realizados, ela é mais uma luz que, ao brilhar nesta noite escura, aponta o caminho da Reforma Política, mais necessária que nunca.
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* escreve Pedro A. Ribeiro de Oliveira, doutor em Sociologia da Religião, professor aposentado da UFJF e da PUC Minas e membro do ISER-Assessoria.
Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/562879-a-cnbb-e-o-pensamento-unico
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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O álcool gel é o símbolo de uma 'vida platônica' vendida nas farmácias

Luiz Felipe Pondé*

Ilustração publicada segunda-feira, 28 nov. 2016 - Para coluna do Luis Felipe Pondé
O mundo não acabará com um grito de horror, mas sim 
com uma overdose de álcool gel na boca. 

Há alguns dias, num "Roda Viva" especial na TV Cultura em que influenciadores digitais entrevistaram o meu amigo Leandro Karnal e eu, um dos entrevistadores me perguntou se eu acreditava que, com o avanço da inteligência artificial e das ferramentas de realidade virtual, chegaríamos a um dia em que o sexo com pessoas reais deixaria de existir. Muitos acreditam que sim. Eu, como disse no programa, acredito que o sexo com pessoas reais terá acabado antes. Você deve estar se perguntando a razão de eu achar isso. Explico: o álcool gel acabará com o sexo em nome de uma vida mais segura.

Entre as várias formas de distopias, uma das que mais me fascina é a distopia da limpeza. Uma distopia é algo que nasce de um projeto por um mundo ideal que sempre dá errado. A modernidade é obcecada, desde a "Nova Atlântida", de Francis Bacon (1561-1626), pela ideia de um mundo perfeito, construído a partir de nossa capacidade técnica, cultural e política.

Os idiotas do bem são aqueles que não entenderam ainda que utópicos são os grandes destruidores modernos da vida. Pois bem, um idiota do bem não entende que "limpinhas e limpinhos" não gostam de sexo porque sexo é sujo.

Filosofemos um pouco mais sobre esse horror ao "imundo". Grande parte da filosofia e das religiões sempre temeu as paixões, vendo nelas uma forma de impureza mesmo ontológica, isto é, os "pathos", como diziam os gregos para se referirem às paixões, eram para gente como Platão formas negativas de destruição do ser (por isso, um mal ontológico, porque ontologia é a parte da filosofia que se dedica ao ser).

Limpar o mundo das paixões, das sujeiras e ambivalências, é o projeto moderno por excelência, mesmo que carregue em si laivos românticos aqui e ali. Portanto, o álcool gel é o símbolo de uma "vida platônica" vendida a R$ 10 nas farmácias. Temos medo de tudo que desordena a vida, e com razão, uma vez que a vida é frágil, breve, bruta e efêmera. A beleza é sempre a primeira vítima em toda forma de violência.

Voltando ao programa. Minha resposta gerou uma série de mensagens em que mulheres afirmavam ser "sujinhas" e não "limpinhas", portanto, não estariam no grupo daquelas e daqueles que temem a sujeira do amor.

Para além da "brincadeira" envolvida no acontecimento, a mania de higiene se espalha por toda parte. Alimentação sem sangue, sexo sem secreções, beijos sem saliva, amor sem ciúmes, almas sem inveja, sociedades sem ressentidos, casais sem inseguranças, enfim, um mundo que deixaria a Branca de Neve atordoada.

Nelson Rodrigues, que deveria ser mais estudado em nossas escolas, disse tudo sobre o desejo: "O desejo pinga". É exatamente essa gota, esse resto do amor, que tememos.

No fundo, mesmo os idiotas do bem e da liberação sexual (essa grande mentira recente) temem essa mancha na cama e na alma que o amor deixa, às vezes de forma indelével.

Não tenho nenhuma dúvida que é o sucesso mesmo no controle da vida, que nosso mundo contemporâneo produziu, que irá esmagar o desejo, porque, de novo, segundo nosso filósofo de "A Vida como Ela É": "O desejo é triste", e ninguém suporta a tristeza quando temos o direito à felicidade.

A tristeza do desejo está no fato mesmo dele ser infinito e intratável, a menos que morra de alguma forma. E o mundo nunca foi tão covarde quanto em nossos dias. O truque da liberação sexual é a eliminação do desejo em si como garantia de uma liberdade com segurança.

A desumanização, que muitos temem vir trazida pelas mãos das máquinas inteligentes, é, ela mesma, a causa do sucesso das máquinas em nossas vidas: queremos desaparecer para garantir um mundo melhor.

Suspeito que o desaparecimento do humano, que muitos temem ser uma possibilidade no futuro, é ele mesmo nosso projeto mais profundo. Não são as máquinas que nos levarão à irrelevância, somos nós mesmos que chegamos à conclusão que atrapalhamos o projeto de felicidade moderno. O Sapiens era uma espécie muito triste.
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*Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência.
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/11/1836111-o-alcool-gel-e-o-simbolo-de-uma-vida-platonica-vendida-nas-farmacias.shtml
Imagem por Ricardo Cammarota
 

domingo, 27 de novembro de 2016

EU INTERMINÁVEL

 Martha Medeiros*
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A cada dia, eu vou assimilando novos elementos à minha identidade, essa identidade que nunca se conclui

Quando parece que já sabemos direitinho quem somos, um novo dia amanhece e traz hesitação: fica claro que não, que não existe essa história de estar completo, finalizado. Eu sei quem sou até este exato instante em que escrevo, mas antes de terminar este texto há uma chance de tudo mudar. Pode o telefone tocar e eu ser convidada para algo que nunca fiz, ser procurada por alguém que vai mudar minha vida ou golpeada por uma notícia que me amadurecerá. E serei um pouco mais (ou um pouco menos) do que sempre fui, este sempre fui tão cheio de ondulações e curvas minha vida é uma estrada quase sem retas e sem uma pista para acostar.

A cada dia, um fato vira memória, uma pessoa volta do passado, uma ilusão se desfaz, outra desperta, o céu troca de cor, um plano ganha avalista, as vontades confabulam, e eu vou assimilando novos elementos à minha identidade, essa identidade que nunca se conclui. Queria tanto saber quem sou, mas como arriscar uma definição se ainda me restam três ou quatro parágrafos e um punhado de anos pela frente?

Tenho duas dúvidas a tirar com um colega com quem iniciei um novo projeto, uma declaração ensaiada para quando estiver frente a frente com alguém que nunca ouviu de mim certos verbos, uma alegria ao antever o encontro com uma amiga que está longe dos meus abraços, fome de algumas coisas que ainda não provei e umas incertezas que doem e para as quais não há cura enquanto eu não acabar de me entender, e eu não acabo nem quando me deito e durmo.

Eu apago e acordo no sonho, no delírio etéreo de uma noite povoada por desejos inconscientes e mensagens que decifro com dificuldade, há alguma coisa em mim ainda sendo construída, e quando desperto de fato, este dia a mais de vida me encontra ainda mais indefinida.

Então abro a janela e o céu está com uma luz diferente, tenho um receio que não tinha antes e um problema a menos a resolver, um compromisso apressa meu banho e o reflexo do espelho revela que emagreci, descubro uma saudade ampliada de alguém e um desdém que não estava ali, o dia não é o mesmo de ontem e eu já não sou também.

E ao ligar o computador para responder à pergunta de um estudante de Jornalismo que pede para que eu me revele, que eu explique, afinal, quem sou, de preferência com poucas palavras e precisão, invento qualquer bobagem que justifique a que vim, que esclareça como fui parar aqui e ser assim, enquanto trato de espiar as previsões astrais para o meu signo, de lidar com os espantos e o mistério que ainda não elucidei – e diante de tanto “não sei” me deformo, me reformo, me amoldo, me dilato e admito, ao menos para mim, que sou isso, um eu sem fim.
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* Jornalista. Escritora.
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a8487153.xml&template=3916.dwt&edition=30165&section=1026
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"SER FELIZ"

 Lya Luft*
 Resultado de imagem para ficar quieta
Certa vez, em lugar de “perdas” escrevi “peras”, num texto qualquer. Ao revisar, eu ia corrigir, mas achei que seria bem mais interessante deixar como estava. Pois, lendo aquilo, as pessoas um dia talvez pensassem: “O que será que ela quis dizer?”. Afinal, o interessante nos fascina e o desinteressante nos entedia. Salvem-nos as surpresas, de preferência as boas...

Essa “ilogicidade” da arte me encanta, embora nem todos os artistas concordem, como minha querida amiga e mestra Lou Borghetti, em cujo atelier uma vez por semana me recupero, tentando pintar – entre diálogos deliciosos e estimulantes –, da hoje assustadora situação deste país. No mágico clima da arte, ainda que aprendiz tardia no campo da pintura, aprendo um pouco mais essa ilogicidade a que me refiro com minhas peras: digamos que se trata antes de liberdade. E cada vez mais mergulho, agora com mais tempo, em uma das minhas formas de ser feliz: ler, ler, ler. De momento, uma rara biografia de Confúcio, cuja vida foi, segundo o autor, um relativo desastre, mas cujas ideias embasam a incrível cultura chinesa e fascinam os ocidentais.

O que buscamos afinal, em nossas breves e ilusórias existências? Fama, sucesso, ser magro, ser atlético, ser famoso e rico, enfim “ser feliz”, seja lá o que isso signifique para cada um – objetivo que muda em cada fase da vida. Quando criança, eu queria ser adulta, pois para eles me pareciam existir as coisas interessantes. Adolescente, eu queria entender o mundo, para isso lia feito desesperada para susto de minha mãe, que muitas vezes me mandou sair com as amigas: ler demais me deixaria “pateta” e, além disso, afastaria candidatos, “porque homens não gostam de mulheres muito inteligentes”. Adulta, quis ter uma família, filhos, que sempre foram meu maior e mais ardente desejo: o que seria de mim sem essas criaturas tão amadas, mesmo que eu fosse bela, magra, rica e famosa? Sempre quis muito ter uma relação pessoal positiva e boa e, embora duas vezes viúva, tive isso como dádiva do destino, agora mais uma vez – curtindo há bom tempo o aconchego de uma relação já mais para outono do que para primavera.

Nesta fase atual da vida, quase invernosa, o que desejo para esse “ser feliz” tão falado? Além dos afetos já citados, quero sossego: há algum tempo parei de correr pelo país e fora, em palestras, encontros, seminários. Foi quando um jornalista perguntou qual meu maior “sonho de consumo”, e respondi sem refletir: “Ficar quieta”. No avião, voltando para casa, indaguei de mim mesma: “Então por que você não fica quieta?”.

Reformulei muita coisa e tenho conseguido – o máximo possível sem virar uma estranha eremita – ficar sossegada com meus livros, este computador, meus afetos, sabendo que a família melhora este mundo pela sua decência e talentos, os amigos estão perto, ainda escrevo com alegria, curto a paisagem da minha cobertura mais rústica do que chique, e com meu parceiro escapo nos fins de semana para outro refúgio simples, na Serra. Mas confesso que, nestes estranhíssimos e inquietantes tempos, a alma se aflige mesmo quando a vida está boa: o que estão fazendo com este Brasil? E isso, meus amados leitores, não deixa ninguém “ser feliz”.
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* Escritora
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a8489550.xml&template=3916.dwt&edition=30165&section=70
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Choro dos cubanos será pelos êxitos e fracassos


Daniel Aarão Reis*
 
 Cubana confere notícia da morte de Fidel - STRINGER / REUTERS
Superar a servidão voluntária será a conta maior e 
mais difícil de ser ajustada

Desde o triunfo da revolução, a sociedade cubana construiu-se como um Estado nacional soberano, uma utopia histórica. É verdade que houve a dependência da União Soviética, mas sempre com margens de manobra que os cubanos souberam preservar.

Uma outra aspiração realizada diz respeito às mudanças sociais, expressas em sistemas de saúde e de educação públicos cujo valor é atestado por instituições internacionais.

Foram vitórias de todo um povo.

Entretanto, como é comum entre os humanos, os cubanos tenderam a personalizar os acontecimentos político-sociais. Assim, as vitórias forjadas pela sociedade foram, em larga medida, atribuídas ao seu “líder máximo”, Fidel Castro, que, de fato, associou-se intimamente à história contemporânea da Ilha. Agora, ao prantearem o “seu” ditador, os milhões de cubanos chorarão pelos próprios êxitos e fracassos.

E é por isso que, para a sociedade cubana, será um desafio viver sem ele.

Mas poderá ser um alívio porque, talvez, se abram novos horizontes para construir um regime democrático, um outro sonho da história deste povo generoso e rebelde. Ao contrário do que se esperava e a revolução prometia, a liberdade e a democracia não foram construídas em Cuba. Ao contrário, ignorou-se e usurpou-se esta esperança e aí é muito clara a responsabilidade pessoal de Fidel Castro, um revolucionário que se tornou um ditador, no alto de uma ditadura que, de revolucionária, foi-se tornando cada vez mais conservadora, ao longo das décadas.

Também neste caso não se pode ignorar a participação consciente de amplas maiorias, respaldando e apoiando o ditador e a ditadura a quem ofertaram suas vidas e a quem resolveram voluntariamente servir.

Superar a servidão voluntária, diagnosticada há séculos por Etienne de la Boétie: esta será a conta maior e mais difícil de ser ajustada. Saldá-la é condição para alcançar a autonomia e a liberdade, os mais belos bens a que pode aspirar a Humanidade.
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*Daniel Aarão Reis é Professor de História Contemporânea da UFF

Meu amigo Fidel, que gostava de cosmologia e de boa conversa


Frei Betto*
 
 Frei Betto conversa com Fidel em 1985: 
líder cubano revelou detalhes sobre sua formação religiosa - Divulgação

Líder cubano não gostava de ser interrompido, mas não monopolizava a palavra

Perco um grande amigo. Nosso último encontro foi a 3 de agosto, quando completou 90 anos. Recebeu-me em sua casa, em Havana, e, à tarde, fomos ao Teatro Karl Marx, onde um espetáculo musical o homenageou. Embora tivesse o organismo debilitado, caminhou sem apoio da entrada do teatro à sua poltrona.

Com Fidel, desaparece o último grande líder político do século XX, o único que logrou sobreviver mais de 50 anos à própria obra: a Revolução Cubana. Graças a ela, a pequena ilha deixou de ser o prostíbulo do Caribe, explorado pela máfia, para se tornar uma nação respeitada, soberana e solidária, que mantém profissionais da saúde e da educação em mais de cem países, inclusive o Brasil.

Conheci Fidel em 1980, em Manágua. O que primeiro chamava atenção era sua imponência. Parecia maior do que era, e a farda lhe revestia de um simbolismo que transmitia autoridade e decisão. A impressão era de que qualquer poltrona era demasiadamente estreita para o seu corpanzil. Quando ingressava num recinto era como se todo o espaço fosse ocupado por sua aura. Todos ficavam esperando que ele tomasse a iniciativa, escolhesse o tema da conversa, fizesse uma proposta ou lançasse uma ideia, enquanto ele persistia na ilusão de que sua presença era uma a mais e que o tratariam sem cerimônias e reverências. Como na canção de Cole Porter, ele devia se perguntar se não seria mais feliz sendo um simples homem do campo, sem a fama que o revestia. Certa ocasião, o escritor Gabriel García Márquez, de quem era grande amigo, perguntou se ele sentia falta de algo. Fidel respondeu: “De ficar parado, anônimo, numa esquina.”

Outro detalhe que surpreendia em Fidel era o seu timbre de voz. O tom em falsete contrastava com a corpulência. Às vezes soava tão baixo que seus interlocutores tinham de apurar os ouvidos. E quando falava, não gostava de ser interrompido. Porém, não monopolizava a palavra. Jamais conheci alguém que gostasse tanto de conversar como ele. Desde que não fossem encontros protocolares, nos quais as mentiras diplomáticas ressoam como verdades definitivas, Fidel não sabia receber uma pessoa por 10 ou 20 minutos.

A convite de Fidel e dos bispos de seu país, atuei no resgate da liberdade religiosa em Cuba, facilitado pela entrevista contida no livro “Fidel e a religião” (Fontanar), na qual o líder comunista aprecia positivamente o fenômeno religioso.

Não saberia dizer quantas conversas privadas tive com Fidel. Uma curiosidade é que este homem, capaz de entreter a multidão por três ou quatro horas, detestava, como eu, falar ao telefone. Nas poucas vezes que o vi ao aparelho sempre foi sucinto.

Minhas frequentes viagens a Havana estreitaram nossos laços de amizade. No prefácio que generosamente escreveu para a minha biografia, lançada esta semana pela Civilização Brasileira, Fidel ressalta que defendo Cuba “sem deixar de sustentar pontos discrepantes ou diferentes dos nossos”. Na década de 1980, quando expressei críticas à Revolução, o Comandante frisou: “É seu direito. E mais: o seu dever”.

Todas as vezes que eu o visitava em sua casa, depois que deixou o governo, levava-lhe chocolates amargos, seu preferido, castanhas e livros em espanhol sobre cosmologia e astrofísica. Conversávamos sobre a conjuntura política mundial, a sua admiração pelo Papa Francisco e, em especial, sobre cosmologia. Contei-lhe que ao visitar Oscar Niemeyer, pouco antes de sua morte, este me disse, animado, que toda semana reunia em seu escritório um grupo de amigos para receber aulas de cosmologia. O fato de dois eminentes comunistas se interessarem tanto pelo tema, comentei com Fidel, me fez recordar uma cena do filme “A teoria de tudo”, no qual o intérprete do físico inglês Stephen Hawking, ainda estudante, pergunta à jovem com quem iniciava o namoro: “O que você estuda?” “História”, ela responde, e devolve a curiosidade. Ele informa: “Estudo cosmologia". “O que é isso?”, indaga ela. E ele frisa: “uma religião para ateus inteligentes.”

Tenho para mim que Fidel, aluno interno de colégios religiosos ao longo de dez anos , abandonou a fé cristã ao abraçar o marxismo. De alguns anos para cá deixou-me a nítida impressão de que se tornara agnóstico. Várias vezes me pediu, ao nos despedirmos: “Ore por nós.” Tenho certeza de que Fidel transvivenciou feliz com a sua coerência de vida.
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Domenico De Masi: Sociólogo defende que se façam ‘pequenas revoluções’


 Otimismo. Para De Masi, Brasil pode ser um modelo para o mundo: 
“O país é pacífico na perspectiva internacional, 
aberto à solidariedade” - Divulgação
 
Para Domenico De Masi, prevalência da cultura técnica explica crise do emprego e xenofobia

TIRADENTES (MG) - O sociólogo italiano Domenico De Masi vê o avanço do neoliberalismo e a ascendência do conhecimento técnico sobre as humanidades como fenômenos relacionados e que estão na origem de dois grandes mal-estares atuais: o fortalecimento de discursos de ódio e autoritários e a crise do trabalho. Superar as raízes dessa malaise é urgente se a sociedade quiser evitar uma revolução sangrenta no futuro próximo, diz o professor da universidade La Sapienza, de Roma, que está em Tiradentes para participar da primeira edição do Fórum do Amanhã.

O senhor veio a Tiradentes (MG) falar sobre os caminhos para o desenvolvimento daqui para frente. Qual papel o Brasil pode desempenhar nisso?
O Brasil tem características positivas. È um país muito importante, o sétimo PIB do mundo, o 5º em extensão territorial. E há também o papel importante cultural. Em sua história, o Brasil só se envolveu em uma guerra, com o Paraguai, e essa é uma diferença em relação à Europa. Ele é violento internamente, claro, mas é pacífico na perspectiva internacional, aberto à solidariedade, enquanto a Europa está repelindo imigrantes. É um país propenso à alegria, à música. Pode haver aqui um modelo para o restante do mundo.

Você já disse que o Brasil é um país de sociólogos. Hoje, porém, em paralelo ao avanço de ideologias de extrema direita, muitos observadores apontam para o surgimento de forte movimento anti-intelectual, refratário às humanidades por aqui. O senhor tem percebido esse movimento?
Não tenho condições de dizer se isso está acontecendo ou não no Brasil. Mas na Itália isso é ocorre, assim como por toda a Europa e nos EUA. Isso é muito perigoso. Setenta anos após a Segunda Guerra, após o fim do fascismo e do nazismo, as novas gerações não viveram essas tragédias. As ciências humanas e sociais são ferramentas contra as ditaduras pois são fundamentalmente democráticas. As primeiras medidas ditatoriais são sempre suprimir as humanidades. Isso aconteceu com Stálin, que acabou com a sociologia, aconteceu com Mao Tsé-tung, com Pinochet. 

Elas estão sob risco?
Eu espero que não. A diferença de hoje é que as instituições democráticas são bem mais sólidas do que naquela época, e desempenham uma missão global para o mundo, não nacionalismo. Fascismo e nazismo eram forças nacionalistas. 

Trump se elegeu com uma mensagem anti-globalização, nacionalista e, para alguns, até nativista. Sua vitória não seria uma mensagem de mal-estar com relação à essas postura globalista das instituições?
Os EUA têm muitas diferenças internas. O percentual de população com nível superior é de 52% na Califórnia mas de 15% a 20% em Utah, por exemplo. Logo, não existe uma América única. E há outra coisa. A formação nos EUA é baseada em uma cultura técnica, não humanista. Este é um problema enorme, porque se a cultura técnica prevalece sobre a cultura humanista, não existe um edifício cultural que possa barrar o autoritarismo e o populismo. A cultura americana é técnica, são engenheiros, biólogos, químicos etc. Nos últimos 50 anos, aliás, está acontecendo a destruição do humanismo, no mundo inteiro e no Brasil também. Se um jovem vai à universidade, ele estuda técnicas, não humanidades. Até um país humanista, ou, melhor dizendo, espiritualista, como a Índia, está passando por esse processo. Uma outra coisa que não existe nos EUA é a cultura de classe social. Quem sabe que é pobre não pode pensar que sua salvação virá de um homem rico.

Um dos argumentos de Trump em sua campanha vitoriosa foram suas supostas qualidades como empresário. São Paulo acaba de eleger um prefeito que se autointitula gestor, o que parece ser uma tendência. O que está por trás dela?
Se ele é gestor de uma empresa, ele busca o lucro. E o prefeito de uma cidade, quer o quê? Não é suficiente nem a cultura tecnológica nem a econômica para governar uma cidade ou um estado. A cultura humanista é indispensável. Ela mostra o que fazer, enquanto que a cultura técnica mostra como fazer, sendo apenas um meio, não um fim. 

A xenofobia e a rejeição a imigrantes têm alguma coisa a ver com isso?
É uma outra consequência da ignorância humanista e, mesmo, um grande erro econômico. A Europa precisa de jovens, e os imigrantes são todos jovens. A mesma coisa acontece nos EUA. É um erro econômico, mas é acima de tudo um erro do ponto de vista humanista. 

O senhor ficou conhecido pela ideia do ócio criativo. O senhor vê futuro para ela mesmo quando um país como a França se rende à ideia de flexibilização das leis trabalhistas?
São duas coisas diferentes. Eu entendo ócio criativo pela possibilidade para todos que fazem trabalho criativo de unir trabalho, estudo e lazer. Eu e você estamos aqui, agora, trabalhando. Estamos trocando ideias, logo estamos estudando. E eu estou me divertindo. É fazer essas três coisas ao mesmo tempo. Como o percentual de trabalho de ordem criativa está crescendo no mundo pós-industrial e o trabalho não criativo está terminando, há mais espaço para o ócio criativo. 

Mesmo quando governos tentam dar a possibilidade a empregadores de aumentar a jornada de trabalho?
Esse sistema de flexibilização ao que você se refere está sendo usando em todo o mundo e é criminoso. Isso leva, eventualmente, à perda de trabalho. A primeira fase é a flexibilização, e a segunda é a demissão. Em vez de a empresa ter necessidade de cem trabalhadores, vai para dez. Em 1850, 94% era do trabalho era operário. Hoje, 33% são trabalho operário, 33% são serviços, finanças etc., e 33% são considerados criativos. Em 2030, 50% serão trabalho criativo, 25%, operário, e 25%, serviços, finanças etc. Mas não só o trabalho do operário está sendo substituído por inteligência artificial, parte do trabalho criativo também. Quando você escreve um artigo, a tendência é que a pesquisa que antecede a escrita seja feita por inteligência artificial, por exemplo. 

Essa transição gera muita ansiedade na sociedade...
Essa ansiedade é necessária.E eu acho até que ela é pouca (para a situação)! Mas eu acho que duas coisas são urgentes. A primeira dela é reduzir a carga de trabalho. Se você trabalha dez horas hoje, no futuro você trabalharia cinco para que outra pessoa também possa trabalhar. O passo adiante é muito mais problemático, porque para um número crescente de pessoas não encontrará nenhum trabalho. Neste ponto, o problema será como redistribuir a riquezas. 

Você concorda com Thomas Piketty quando ele propõe uma taxação das grandes fortunas com o objetivo de reduzir a concentração de capital?
Sim, claro! Mas eu não acredito que os ricos vão um dia pagar imposto. E agora? Aí os conflitos sociais aumentam. Os conflitos urbanos diminuíram, mas a violência social tende a aumentar. Ela se dá de muitas formas, como revoluções e guerras. 

O senhor é tido como otimista. Hoje, o senhor me parece bastante pessimista, não?
Antes de chegar nesses estágios, eu ainda acredito que vamos chegar a uma solução. Eu acho que antes de chegarmos a uma revolução enorme e violenta, seja possível que passemos por pequenas revoluções mais simples. Em meu próximo livro, que se chama "Uma simples revolução", eu detalho quais são elas. 

E quais seriam?
Uma delas é justamente uma redução drástica da jornada de trabalho. Não para 35 horas semanais, mas para 15 horas. Segundo, aumentar drasticamente o investimento em formação, de escolas a universidades, passando até por congressos e conferências. O outro passo é a superação do neoliberalismo, porque a situação atual é a filha dele. Desde a décadas de 1980, com Reagan e Tatcher, o mundo vive sob ele. 

Matteo Renzi, na Itália, se enquadra nessa classificação?
Ele é um neoliberal que diz ser social democrata. É o oposto de Fernando Henrique (Cardoso), que se dizia neoliberal mas era um social-democrata. 

O senhor falou em redução da jornada de trabalho e investimento pesado em educação. O Brasil parece estar indo nessa direção?
Não, mas nenhum país do mundo está. Isso é a prova de que eu tenho razão! Na minha opinião, um dos motivos para que dificultam a redução da jornada é o fato de que os trabalhadores que estão empregados e os sindicatos que o representam não querem isso. Quem ficar sem trabalho vai querer que isso ocorra. Como fazer isso? A solução pode ser semelhante ao Uber. Esses profissionais desempregados podem criar uma rede e, por um tempo, trabalhar de graça. Os empregadores vão preferir essa mão-de-obra gratuita àquela que é paga. Depois de um tempo, essa rede deixa de trabalhar de graça, e os empregadores serão obrigados a ceder. Essa é uma possível revolução, pequena, simples, sem violência e sem terrorismo.

O senhor acha que isso que essas tais “pequenas revoluções” são de fato possíveis ou são apenas um desejo do senhor?
Se formos inteligentes, creio que esta é a única saída. Na Itália, há 2 milhões de jovens desempregados. Com a evolução da inteligência artificial, esse número pode ir para seis ou sete milhões. Hoje, esses jovens têm pais que trabalham e que os suportam. É o que eu faço com a minha filha. 

O senhor é um leitor de obras brasileiras. Qual foi o último livro que lhe interessou?
O daquela jornalista de economia, Miriam Leitão ("História do Futuro"). Quando lancei o livro "O Futuro Chegou" aqui, essa mesma jornalista fez uma crítica muito violenta contra ele. Já eu acho o livro dela muito bonito. Também gostei de "Brasil: Uma Biografia", de Lilia Schwarcz (com Heloisa Murgel Starling). Outro que li recentmente foi "Os Pensadores que Inventaram o Brasil". E leio sempre Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Hollanda.

A percepção sobre o Brasil piorou bastante no mundo nos últimos anos, não?
A imagem do Brasil melhorou em uma constante desde o início do governo FH até o primeiro governo Dilma, porque o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou. Para mim, que sempre venho ao Brasil, ficou difícil entender. O Dilma foi eleita com 52%,, depois, em dois meses, começaram a falar de impeachment. Não é comprreensível. Mas acho que nem os brasileiros entenderam. 

O senhor continua otimista com o Brasil mesmo diante de toda essa situação?
Sim, claro. O problema do Brasil é mais o Trump do que a Dilma. O Brasil também corre um grave risco psicológico, o de ter um álibi para tudo o que não funciona: "Foi culpa da Dilma, do PT". Isso é um álibi que impede o Brasil de achar as razões verdadeiras. 
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Reportagem por Rennan Setti, Enviado especial
FONTE:  http://oglobo.globo.com/economia/sociologo-defende-que-se-facam-pequenas-revolucoes-20538198

Rótulo em branco: a esquerda não tem tentado traduzir em teoria a realidade do País

 José de Souza Martins*
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A esquerda não tem feito o esforço de traduzir em teoria a realidade social do País, e prefere copiar experiências que não são nossas, diz sociólogo

Em entrevista densa e de teor raro entre petistas, o prefeito de São Paulo prevê que a polarização política no Brasil, nos próximos anos, será entre direita e extrema direita. Convém considerar, porém, que tem havido polarizações de um lado e de outro do cenário, como componente crônico do processo político. Os próximos anos serão de polarização também entre esquerda e extrema esquerda, esquerdas procurando o rumo que perderam lá atrás, principalmente na época do mensalão. Nos dois casos, porque a direita se fortalece e desglobaliza o mundo e a esquerda se perde porque demoliu identidades profundas dos que poderiam identificar-se com ela. Aqui, tudo virou conceitualmente “trabalhador” e “companheiro”, mesmo que intimamente as pessoas tenham outras identificações precedentes e decisivas, das quais não abrem mão. Estamos vivendo num fim de era que pede diversa compreensão da realidade, oposta à da reafirmação das categorias de polarização e contraposição de pessoas, grupos e partidos. 

Quando a categoria ideológica “trabalhador” divide famílias, antepõe filhos e pais, separa amigos, contrapõe vizinhos e colegas de trabalho, joga alunos contra professores, destrói a comunidade necessária entre quem ensina e quem aprende, mina as solidariedades tradicionais e constitutivas da nação, sobrepõe a raiva ao afeto, o desacordo ao pacto necessário a que a sociedade exista independente das diferenças que a civilizam e dos conflitos que a dinamizam. A questão é o que vem antes e o que vem depois. Isso é hoje muito claro na consciência nacional. Na última eleição, o povo mandou o recado aos partidos políticos, todos, não só os de esquerda. Votar no PT deixou de ser uma opção porque o PT colidiu com sentimentos profundos da identidade do brasileiro. O PT e outros partidos de esquerda comprometerem o sentimento de pátria no grave equívoco de suporem que pátria é uma categoria secundária e de direita. Dificilmente haverá uma frente de esquerda duradoura, quando muito meramente eleitoral, as várias facções disputando hegemonia e empregos públicos favorecidos e bem remunerados. 

Tanto na direita quanto na esquerda, os únicos fatores de unidade são hoje os meros rótulos de autodesignação: direita e esquerda. A esquerda está virando um button. Além do rótulo, há pouco. Não é incomum que membros e simpatizantes de partidos de esquerda tenham comportamentos de direita e raciocínios de justificação completamente direitistas. Nossas esquerdas não têm feito o esforço da tradução da realidade social e histórica singular numa teoria de sua própria práxis. Preferem copiar e imitar experiências que não são nossas nem delas. Já chegamos a querer pensar como russos, cubanos, chineses ou albaneses. Acabam fracassando porque o que conhecem é irreal e desconhecem o real. 

O PT, o PSOL e outros partidos de esquerda jogam na vala comum do esquecimento e da imprecisão conceitual a grande massa eleitoral de centro, o centro da indiferença e do cansaço com os partidos, que, afinal, foi quem decidiu a última eleição municipal. Os partidos são viciados em reconhecer que só devem ser objeto de consideração no protagonismo político quem tem vínculo partidário, como se fosse uma religião, embora entre nós o comportamento eleitoral seja no geral desvinculado de partidos políticos. Quase sempre um comportamento eleitoral de ocasião. 

A imprecisão identitária de esquerda e direita deixa um rastro de dúvidas políticas curiosas, sobretudo depois que esquerdas, com sua pedagogia ideológica bipolarizada, dividiram o País em duas humanidades opostas, não só em relação a partidos, mas em relação a tudo. Mães de direita podem ter filhos de esquerda? Filhos de mulatos são negros ou são brancos? Ou são brasileiramente mestiços, como a maioria do povo brasileiro? O PT é um partido de esquerda ou de direita? Em todos esses casos, com a devida vênia a todas as excelências da República, a resposta mais sensata talvez seja nem sim nem não, muito pelo contrário. 

Aparentemente, ainda não há estudos consistentes sobre o nosso senso comum e o modo como os brasileiros recepcionam e assimilam doutrinas que nos vêm de fora: políticas ou religiosas. O fascismo teve aqui características circenses. E, o que é pior, difundiu-se, disfarçadamente, também em partidos de esquerda, no dogmatismo, na intolerância, na satanização dos adversários. O marxismo se difundiu muito mais com base no Manifesto Comunista, um panfleto. Um texto distante da solidez teórica da obra de Marx e da obra de Engels. Não obstante, há uma generalizada percepção dessas nossas insuficiências. Quando eu era estudante da Faculdade de Filosofia da USP, há meio século, período de crise do marxismo oficial, estudantes diziam que, no Brasil, a política era regulada pelas ideias de Cristóvão Colombo: “indo pela direita, um dia chegaremos à esquerda”. Ou, já na proximidade do golpe de 1964: “Com uma esquerda dessas, não é preciso direita”, o que parece ainda tristemente válido.
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* Sociólogo. 
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,rotulo-em-branco-a-esquerda-nao-tem-tentado-traduzir-em-teoria-a-realidade-do-pais-diz-sociologo,10000090744
Imagem da Internet

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Será que há alguém para amar? Ou será que há razões para amar alguém?

Contardo Calligaris*

Isabelle Huppert como Michèle em cena de 'Elle
A heroína e protagonista de "Elle", de Paul Verhoeven, chama-se Michèle Leblanc. Isabelle Huppert é perfeita no papel de Michèle, mas não foi o charme da atriz que me conquistou; eu fiquei encantado com Michèle mesmo. E vou explicar meu encantamento. 

Um homem aparentemente sem sentimentos, quem sabe até calculador ou manipulador, é sempre (ou quase sempre) aceitável. Ele pode incutir medo e desconfiança, mas sua "frieza" é compatível com os clichês da virilidade e até do charme. 

Para uma mulher, claro, acontece o contrário. Deve ser por isso que as próprias pesquisas acadêmicas tendem a "verificar" que os homens são psicopatas ou sociopatas muito mais frequentemente do que as mulheres.

Verdade seja dita, há vários pesquisadores que se perguntam se a psicopatia nas mulheres não é diagnosticada menos do que deveria. E há estudos para mostrar que, quando uma mulher é psicopata, ela não é menos intensamente psicopata do que um homem. 

E há mais uma verdade na qual eu acredito. Por óbvias razões, grande parte das pesquisas sobre psicopatia são feitas na população carcerária, ou seja, com psicopatas que fracassaram em seu intento e acabaram presos. Que tal imaginar que as mulheres sejam psicopatas de mais sucesso do que os homens e, portanto, soltas pelas ruas em maior número do que presas nos cárceres? 

Tudo isso sem contar que as psicopatas femininas podem se esconder muito bem atrás do clichê do descontrole. Como as mulheres poderiam ser psicopatas, frias e contidas, se elas são (não é?) vítimas de seus próprios afetos? A aparente falta de controle seria quase uma garantia de que a mulher não é facilmente psicopata. 

Os vilões do cinema e da literatura podem ser gélidos. As vilãs, salvo exceções, situam-se entre a Alexandra (Glenn Close), louca de amor, de "Atração Fatal", e Carrie destruindo o mundo com seu furor mental (ou "uterino", só falta dizer) em "Carrie, a Estranha". 

Grandes exceções: a marquesa de Merteuil das "Ligações Perigosas", Catherine Tramell (inesquecível Sharon Stone), de "Instinto Fatal", e, justamente, Michèle Leblanc, de "Elle" (ou do romance "Oh...", de Philippe Djian, que inspira o filme). 

Suspeito que o descontrole amoroso (e geralmente sentimental) das mulheres tenha sido inventado pelos homens para eles se protegerem do desejo sexual feminino, ou seja, para se convencerem de que as mulheres não têm um desejo sexual autônomo (que eles poderiam, por exemplo, ser incapazes de satisfazer). 

Para os homens, as mulheres podem ser loucamente apaixonadas sem desejo sexual algum. Ou, se elas forem mesmo entregues a incontroláveis desejos sexuais, só pode ser porque, naquela ocasião, elas seriam vítimas de paixões amorosas. 

Em suma, as mulheres só podem amar sem desejar ou desejar justamente o objeto de seu amor. O que importa é que elas não tenham fantasias e desejos sexuais que não sejam "justificados" pelo sentimento. 

Contra esse clichê, há poucas exceções: Madame de Saint-Ange, da "Filosofia na Alcova", de Sade, e Joe (Charlotte Gainsbourg), de "Ninfomaníaca", de Lars von Trier –e Michèle, claro. 

Nota: Michèle não é nem se torna cúmplice de seu estuprador –não no sentido de que ela "gostaria" de ser estuprada (como os mais babacas entre os homens podem sonhar). Mas Michèle descobre a fantasia de seu estuprador, pode brincar com ele e, digamos assim, não são os sentimentos que vão impedi-la de matá-lo. 

Michèle não ama ninguém. Esse, para mim, é seu maior charme. Ela não é nenhum monstro de egoísmo: ela apenas não é um clichê. 

Em vez de criticá-la por ela não amar ninguém, talvez valha a pena colocar as perguntas: será que existe alguém para amar? E será que existem razões para amar alguém? 

Os sentimentos, sobretudo os que são considerados "bons", em geral são tentativas de desculpar nosso ódio ou de compensar sei lá qual dano passado, ou pior, de alimentar nosso narcisismo (eu te amo para que você me ame). 

Ou seja, os sentimentos, vistos de perto, são quase sempre sinistros. 

Houve épocas em que os homens se entregavam aos sentimentos tanto quanto as mulheres –e eles não pareciam menos homens por isso. Por exemplo, os sentimentos de Aquiles movem a "Ilíada" inteira: sua ira com Agamemnon, seu ciúmes por Briseide, seu luto pela morte de Pátroclo, sua vontade de vingança. 

Justamente por tudo isso, Aquiles sempre me pareceu um grandão meio desmiolado e vulgar. 

Prefiro Michèle. 
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 * Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias).
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2016/11/1834850-sera-que-ha-alguem-para-amar-ou-sera-que-ha-razoes-para-amar-alguem.shtml

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Constituição dos EUA é exemplo para o mundo

Antonio Delfim Netto*




FILE - In this Wednesday, Nov. 9, 2016 file photo, President-elect Donald Trump speaks during an election night rally, in New York. A federal judge in San Diego will consider arguments on President-elect Trump's latest request to delay a civil fraud trial involving his now-defunct Trump University until after his inauguration on Jan. 20, 2017. Trump's attorneys said in a court filing ahead of the hearing to be held Friday, Nov. 18, 2016, that preparations for the White House were "critical and all-consuming." (AP Photo/Evan Vucci, File) ORG XMIT: CAET493
O presidente eleito dos EUA, Donal Trump, fala em Nova York um dia depois da vitória

O grande estadista Benjamin Franklin (1706-1790) ajudou Jefferson na Declaração da Independência dos EUA (4 de julho de 1776) e teve importante papel na acomodação dos interesses dos Estados na Convenção Constitucional de setembro de 1787, da qual resultou a atual Constituição dos EUA. 

Quando lhe perguntaram se ela iria durar, respondeu: "Ela está funcionando. Tudo parece sugerir que continuará a fazê-lo". Hoje sabemos que se trata da mais bem-sucedida Constituição do mundo: dura há quase 250 anos, com poucas emendas. 

É o exemplo de como deve ser o conjunto de fundamentos que presidirá a governança de um país com membros subnacionais. Tem pouco mais de duas páginas (8.000 e poucas palavras), é absolutamente genérica e tem um cinturão defensivo à prova de maiorias eventuais. Para comparar: a nossa ocupa 140 páginas, com 250 artigos e regula até transplante de órgãos! 

O sistema de colégio eleitoral que elegeu Trump (que teve menos votos populares do que Hillary ) não está na Constituição. Foi acertado na Convenção e faz parte do cinturão que visa proteger a "minoria" da eventual ditadura da "maioria". 

Funcionou! Trump teve um olho certeiro nos "esquecidos perdedores" de quatro Estados (em três dos quais os republicanos não venciam desde os anos 1980) que os intelectuais gostam de chamar de "cinturão da ferrugem". São habitados por trabalhadores de uma indústria pujante que a globalização tornou obsoleta. 

A globalização tem, a longo prazo, benefícios econômicos importantes. Gera externalidades preciosas: é promotora da paz e mitigadora dos preconceitos entre os homens. O problema é que, a curto prazo, se não for adequadamente pensada e compensada por políticas públicas, impõe custos sociais insuportáveis aos "esquecidos" e "maltratados". Estes, quando encontram uma voz que parece ouvi-los, vêm nela a oportunidade de manifestar-se nas urnas. Foi exatamente para isso que os empoderaram o colégio eleitoral e o sufrágio universal. 

O fato de ninguém ter percebido (alguns intuíram, mas não explicitaram) a possibilidade da vitória de Trump é a prova mais cabal da insensibilidade social de analistas, pesquisadores, cientistas e "tutti quanti" com relação à necessidade de políticas públicas compensatórias nas democracias. 

Afinal, o que se espera que faça um trabalhador de 50 anos, no "cinturão da ferrugem", que não pode deslocar-se com sua família porque não encontra quem queria comprar a sua casa? Que lhe dê formicida e se suicide? Ou que vote em quem o "descobriu" e prometeu-lhe uma esperança, ainda que vã? 
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* Ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici), é economista e ex-deputado federal. Professor catedrático na Universidade
de São Paulo.
 Fonte: https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=1573693655200632246#editor/target=post;postID=6241427557088593268