segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Vá, coloque um muçulmano no poder

Carlos Gerbase*
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 Michel Houellebecq

A modernidade encerrou a era dos herois heroicos e confiáveis. Há quem diga que eles nunca existiram. Afinal, Aquiles era um narcisista e um sádico, Ulisses era um demagogo e Agamemnon matou a própria filha, afirmando que esta era uma exigência dos deuses para que a Hélade fosse à guerra, quando, na verdade, alimentava sua fome egoísta pelo poder. Os gregos podiam ser corajosos, mas estavam longe daquela retidão de caráter que se espera de um heroi de verdade. Talvez do outro lado da luta, na figura do troiano Heitor, encontremos maior solidez moral, mas, infelizmente, Heitor não soube controlar um irmão lascivo e inconsequente, além de se submeter a um pai de desmedido orgulho. A Ilíada e a Odisseia inauguram a literatura ocidental com um pacote de personagens tão grandes quanto eticamente imperfeitos.

A cristandade, contudo, soube forjar uma cultura em que a retidão de caráter e a alma impoluta tornaram-se matérias-primas essenciais na construção dos herois. É claro, a partir da Renascença temos anti-herois como Don Quixote e Hamlet, nada confiáveis e muito difíceis de enquadrar, mas o padrão heroico da literatura e do teatro mais “comerciais” do final do século 19, que foi herdado pelo cinema, exige que o protagonista enfrente o mal com absoluta convicção de que há dois lados no conflito e de que ele está do lado certo, ou seja, o lado do bem. A aurora da minha formação intelectual está vinculada a esse tipo de heroi. Tarzan podia ser um quase-selvagem, mas tinha uma ética inatacável, enquanto os civilizados europeus eram, por natureza, pouco confiáveis. Os moradores do Sítio do Picapau Amarelo, começando com Dona Benta e terminando em Emília, queriam, todos, um mundo mais justo e desprezavam os desvios de caráter. O Batman daqueles tempos não tinha dilemas morais: ele estava a serviço da justiça e metia na cadeia os criminosos. Simples assim.

Essa simplicidade, pelo menos para mim, terminou em algum momento do final dos anos 60, quando comecei a ler os livros certos (ou errados, aí depende do ponto de vista). O Capitão Nemo, por exemplo, era um cara bacana, um cientista cheio de grande ideais, ou um marginal perigoso, um pirata, um outsider egoísta a ser devidamente enquadrado pela civilização? Até hoje estou em dúvida. O próprio Capitão Rodrigo, para ficarmos na mesma patente, era um sujeito corajoso e bem intencionado, mas tinha seus arroubos machistas e cometia todo tipo de violência, nem sempre justificada. Para quem acha que estou fazendo uma salada indigesta, misturando Edgar Rice Burroughs, Monteiro Lobato, Júlio Verne e Erico Veríssimo no mesmo prato, tenho que advertir: este é apenas um aperitivo para a mistura ainda mais sem pé nem cabeça que farei daqui pra diante: vou comparar os herois de Harper Lee e Michel Houellebecq.

Atticus, personagem criado por Harper Lee, é um advogado que mora em Maycomb, uma pequena cidade do Alabama, no sul dos Estados Unidos, lá pelos anos 1930. O François de Houellebecq é um professor universitário que vive numa Paris cosmopolita, em 2022. Aparentemente, além da imensa distância histórica e geográfica, há um contraste notável entre as condutas morais de Atticus e François. Em O sol é para todos, Atticus defende um negro, injustamente acusado de estupro, mesmo que para isso ele tenha que enfrentar o preconceito de toda a cidade. Atticus é, em suma, um corajoso e virtuoso heroi romântico. Em Submissão, François vai se deixando levar – lenta e inexoravelmente – por uma nova ordem ideológica e cultural que toma conta da França, resultado de uma aliança da esquerda e do centro com um partido denominado Fraternidade Muçulmana. Atticus, um humanista, está ao lado de um negro pobre e vítima de preconceito. François, um niilista, é seduzido pelos petrodólares, por uma universidade convenientemente amordaçada e pela possibilidade de casar-se com duas mulheres: uma boa na cozinha e outra boa na cama.

Além de ser um grande sucesso literário, com reedições frequentes até os dias de hoje, o romance de Harper Lee ainda virou um longa (devidamente oscarizado) estrelado por Gregory Peck no papel de Atticus, o que reforçou a lenda do advogado branco, paladino da justiça, que não se deixa dobrar pelo preconceito irracional de uma sociedade doente. A lenda durou até que, depois da morte de Harper Lee, fosse publicado Vá, coloque um vigia, em que reencontramos os mesmos personagens de O sol é para todos, alguns anos depois. Há uma grande polêmica em torno desse segundo romance. Alguns críticos dizem que Harper Lee nunca quis que ele saísse da gaveta e é resultado da ganância de seus herdeiros. E há quem defenda – estou com esse grupo – que a publicação de Vá, coloque um vigia, é um evento literário sensacional, que nos faz pensar, numa perspectiva muito desconfortável, sobre a integridade moral do advogado Atticus Finch e sobre a visão de mundo de Harper Lee.

O François de Submissão é um sujeito solitário, quase um misantropo, que, coerente com a trajetória de outros anti-herois de Houellebecq, não está nem aí para a democracia (tão ineficaz que provocou a vitória da Fraternidade Muçulmana) e para a moral burguesa (tão corrompida pelo dinheiro que nada pode reclamar do arrivismo dos milionários árabes). O Atticus de Vá, coloque um vigia, é um cidadão que se reúne regularmente com os elementos mais reacionários da cidade para discutir como manter os negros em seu devido lugar, ou seja, na pobreza e na ignorância. Quando pensamos que pode haver um engano – afinal, é o Atticus, nosso heroi! – ficamos sabendo que, não muito tempo atrás, Atticus participou de uma organização chamada Ku Klux Klan. Mas, afinal, por que este advogado defendeu um negro, indispondo-se com toda a cidade? Simplesmente para manter as aparências. Atticus, que era um heroi da justiça, vira um mentiroso desprezível.

Simplifiquei bastante as coisas e, principalmente, esqueci de falar da filha de Atticus, Scout Finch, a verdadeira heroína de Harper Lee, mas, mesmo nesse quadro esquemático que montei, dá pra perceber que François é um personagem menos condenável que Atticus, não só porque sua submissão é resultado de forças sociais poderosas agindo sobre um indivíduo frágil, mas também porque ele não chega a ter participação ativa e consciente nas atrocidade cometidas pelos novos donos do poder. Atticus está envolvido até o pescoço com os atuais donos do poder e, por mais que tente justificar sua posição como uma defesa dos “velhos valores do sul”, que estão sendo exterminados por uma suposta ascensão social dos negros, não fica qualquer dúvida – pelo menos para mim – de que ele não passa de um reacionário da pior espécie, isto é, daquela que não admite claramente o que pensa do mundo. Perto de Atticus, François é bastante honesto. Perto da Harper Lee de Vá, coloque um vigia, Michel Houllebecq é um escritor que ainda procura sua definitiva submissão ao fim dos herois e ao fracasso do homem.
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* Cineasta, escritor e professor da Famecos/PUCRS
Imagem da Internet
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/11/9228/caderno-de-sabado-tres-pontos-de-vista-sobre-a-obra-radical-de-michel-houellebecq/
Jornal Impresso: Caderno de Sábado, 05 de novembro de 2016, pág.5

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