Carlos Gerbase*
Michel Houellebecq
A modernidade encerrou a era dos herois heroicos e confiáveis. Há
quem diga que eles nunca existiram. Afinal, Aquiles era um narcisista e
um sádico, Ulisses era um demagogo e Agamemnon matou a própria filha,
afirmando que esta era uma exigência dos deuses para que a Hélade fosse à
guerra, quando, na verdade, alimentava sua fome egoísta pelo poder. Os
gregos podiam ser corajosos, mas estavam longe daquela retidão de
caráter que se espera de um heroi de verdade. Talvez do outro lado da
luta, na figura do troiano Heitor, encontremos maior solidez moral, mas,
infelizmente, Heitor não soube controlar um irmão lascivo e
inconsequente, além de se submeter a um pai de desmedido orgulho. A Ilíada e a Odisseia inauguram a literatura ocidental com um pacote de personagens tão grandes quanto eticamente imperfeitos.
A cristandade, contudo, soube forjar uma cultura em que a retidão de
caráter e a alma impoluta tornaram-se matérias-primas essenciais na
construção dos herois. É claro, a partir da Renascença temos anti-herois
como Don Quixote e Hamlet, nada confiáveis e muito difíceis de
enquadrar, mas o padrão heroico da literatura e do teatro mais
“comerciais” do final do século 19, que foi herdado pelo cinema, exige
que o protagonista enfrente o mal com absoluta convicção de que há dois
lados no conflito e de que ele está do lado certo, ou seja, o lado do
bem. A aurora da minha formação intelectual está vinculada a esse tipo
de heroi. Tarzan podia ser um quase-selvagem, mas tinha uma ética
inatacável, enquanto os civilizados europeus eram, por natureza, pouco
confiáveis. Os moradores do Sítio do Picapau Amarelo, começando com Dona
Benta e terminando em Emília, queriam, todos, um mundo mais justo e
desprezavam os desvios de caráter. O Batman daqueles tempos não tinha
dilemas morais: ele estava a serviço da justiça e metia na cadeia os
criminosos. Simples assim.
Essa simplicidade, pelo menos para mim, terminou em algum momento do
final dos anos 60, quando comecei a ler os livros certos (ou errados, aí
depende do ponto de vista). O Capitão Nemo, por exemplo, era um cara
bacana, um cientista cheio de grande ideais, ou um marginal perigoso, um
pirata, um outsider egoísta a ser devidamente enquadrado pela
civilização? Até hoje estou em dúvida. O próprio Capitão Rodrigo, para
ficarmos na mesma patente, era um sujeito corajoso e bem intencionado,
mas tinha seus arroubos machistas e cometia todo tipo de violência, nem
sempre justificada. Para quem acha que estou fazendo uma salada
indigesta, misturando Edgar Rice Burroughs, Monteiro Lobato, Júlio Verne
e Erico Veríssimo no mesmo prato, tenho que advertir: este é apenas um
aperitivo para a mistura ainda mais sem pé nem cabeça que farei daqui
pra diante: vou comparar os herois de Harper Lee e Michel Houellebecq.
Atticus, personagem criado por Harper Lee, é um advogado que mora em
Maycomb, uma pequena cidade do Alabama, no sul dos Estados Unidos, lá
pelos anos 1930. O François de Houellebecq é um professor universitário
que vive numa Paris cosmopolita, em 2022. Aparentemente, além da imensa
distância histórica e geográfica, há um contraste notável entre as
condutas morais de Atticus e François. Em O sol é para todos,
Atticus defende um negro, injustamente acusado de estupro, mesmo que
para isso ele tenha que enfrentar o preconceito de toda a cidade.
Atticus é, em suma, um corajoso e virtuoso heroi romântico. Em Submissão,
François vai se deixando levar – lenta e inexoravelmente – por uma nova
ordem ideológica e cultural que toma conta da França, resultado de uma
aliança da esquerda e do centro com um partido denominado Fraternidade
Muçulmana. Atticus, um humanista, está ao lado de um negro pobre e
vítima de preconceito. François, um niilista, é seduzido pelos
petrodólares, por uma universidade convenientemente amordaçada e pela
possibilidade de casar-se com duas mulheres: uma boa na cozinha e outra
boa na cama.
Além de ser um grande sucesso literário, com reedições frequentes até
os dias de hoje, o romance de Harper Lee ainda virou um longa
(devidamente oscarizado) estrelado por Gregory Peck no papel de Atticus,
o que reforçou a lenda do advogado branco, paladino da justiça, que não
se deixa dobrar pelo preconceito irracional de uma sociedade doente. A
lenda durou até que, depois da morte de Harper Lee, fosse publicado Vá, coloque um vigia, em que reencontramos os mesmos personagens de O sol é para todos,
alguns anos depois. Há uma grande polêmica em torno desse segundo
romance. Alguns críticos dizem que Harper Lee nunca quis que ele saísse
da gaveta e é resultado da ganância de seus herdeiros. E há quem defenda
– estou com esse grupo – que a publicação de Vá, coloque um vigia,
é um evento literário sensacional, que nos faz pensar, numa perspectiva
muito desconfortável, sobre a integridade moral do advogado Atticus
Finch e sobre a visão de mundo de Harper Lee.
O François de Submissão é um sujeito solitário, quase um
misantropo, que, coerente com a trajetória de outros anti-herois de
Houellebecq, não está nem aí para a democracia (tão ineficaz que
provocou a vitória da Fraternidade Muçulmana) e para a moral burguesa
(tão corrompida pelo dinheiro que nada pode reclamar do arrivismo dos
milionários árabes). O Atticus de Vá, coloque um vigia, é um
cidadão que se reúne regularmente com os elementos mais reacionários da
cidade para discutir como manter os negros em seu devido lugar, ou seja,
na pobreza e na ignorância. Quando pensamos que pode haver um engano –
afinal, é o Atticus, nosso heroi! – ficamos sabendo que, não muito tempo
atrás, Atticus participou de uma organização chamada Ku Klux Klan. Mas,
afinal, por que este advogado defendeu um negro, indispondo-se com toda
a cidade? Simplesmente para manter as aparências. Atticus, que era um
heroi da justiça, vira um mentiroso desprezível.
Simplifiquei bastante as coisas e, principalmente, esqueci de falar
da filha de Atticus, Scout Finch, a verdadeira heroína de Harper Lee,
mas, mesmo nesse quadro esquemático que montei, dá pra perceber que
François é um personagem menos condenável que Atticus, não só porque sua
submissão é resultado de forças sociais poderosas agindo sobre um
indivíduo frágil, mas também porque ele não chega a ter participação
ativa e consciente nas atrocidade cometidas pelos novos donos do poder.
Atticus está envolvido até o pescoço com os atuais donos do poder e, por
mais que tente justificar sua posição como uma defesa dos “velhos
valores do sul”, que estão sendo exterminados por uma suposta ascensão
social dos negros, não fica qualquer dúvida – pelo menos para mim – de
que ele não passa de um reacionário da pior espécie, isto é, daquela que
não admite claramente o que pensa do mundo. Perto de Atticus, François é
bastante honesto. Perto da Harper Lee de Vá, coloque um vigia, Michel Houllebecq é um escritor que ainda procura sua definitiva submissão ao fim dos herois e ao fracasso do homem.
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* Cineasta, escritor e professor da Famecos/PUCRSImagem da Internet
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/11/9228/caderno-de-sabado-tres-pontos-de-vista-sobre-a-obra-radical-de-michel-houellebecq/
Jornal Impresso: Caderno de Sábado, 05 de novembro de 2016, pág.5
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