Michel Maffesoli*
Michel Houellebecq
"Michel Houellebecq é desses autores que fazem ver que em
lugar de uma história linear e progressista, sempre segura de si, há
histórias, ciclos que se chocam e que suscitam o retorno de coisas que
acreditávamos para sempre ultrapassadas."
Embora afirme não gostar de Nietzsche, o escritor Michel Houellebecq
poderia concordar com o filósofo alemão, que dizia « não crer em
verdades que precisem ser demonstradas ». O homem comum, senhor
todo-mundo, não demonstra. Contenta-se em mostrar o que é, o que está
aí. « Mostração ou « Monstração » que provocou, provoca e provocará
muitos sustos na medida em que as elites, por exemplo, as franceses,
cegas por uma lógica moralista do dever ser, simplesmente se esquecem de
ver o que é, o que está aí, o que se dá a ver.
Michel Houellebecq parece sentir um prazer malicioso em fazer esse
tipo de constatação. Refiro-me a essa « neutralidade axiológica » em que
o julgamento de fato ocupava legitimamente o lugar do julgamento de
valor. Max Weber usava isso como método no começo da modernidade.
Houellebecq, nosso engenheiro agrônomo, sabe que não se brinca com
aquilo que é. Sendo assim, faz constatações.
A sua monografia de conclusão de curso não tratava justamente da
poluição de um pequeno rio em Yvelines ? Nos seus romances, Michel
Houellebecq como que extrapola esse aspecto mostrando (« monstrando »)
essa outra poluição representada pela saturação dessa forma particular
de convivência, de estar-junto, inventada pela modernidade, a da
República das Luzes, República do Iluminismo.
Sempre houve espíritos lúcidos, como um Horácio, capazes de
reconhecer que « muitas coisas caídas ressurgirão, e muitas outras, em
alta, cairão ». Michel Houellebecq é desses autores que fazem ver que em
lugar de uma história linear e progressista, sempre segura de si, há
histórias, ciclos que se chocam e que suscitam o retorno de coisas que
acreditávamos para sempre ultrapassadas.
Tal constatação não deve provocar inquietação ou agrura. Houellebecq
parece, ao contrário, a expressão da tranquilidade de quem não se
posiciona contra aquilo que entra em decadência. Ele mostra, com
precisão e argúcia, o que se foi. Lendo Michel Houellebecq, tenho a
impressão de ouvir um eco do pensamento de Husserl : « Toda época,
conforme a sua vocação, é uma grande época ».
Lembro que o termo « época » significa parêntese. Um parêntese que se
abre ou que se fecha segundo a lógica inexorável da nossa natureza
humana. É isso que chamamos de mudança de paradigma. Depois de ter sido
fecunda, uma matriz torna-se estéril. A partir daí, a vida (re)nasce em
outro lugar. Os medíocres e os pensadores fracassados podem esfalfar-se
repetindo suas ladainhas. Essas arengas não encantam mais muita gente. A
verdadeira vida está noutra parte.
Assim, para além das respostas prontas, existe outra maneira de falar
de encantamento. Michel Houellebecq faz, com alguma crueza, perguntas
que não podem mais ser caladas. Como cada um vê meio-dia na soleira da
sua porta, eu puxo a brasa para o meu lado e, nas entrelinhas da sua
obra, vejo a lúcida descrição do Homo eroticus de que trato e para o qual a emoção é o elemento essencial.
Não é mais essa República Una e Indivisível, surgida no século XIX, que prevalece, mas uma res publica,
uma coisa pública à qual, do jeito que dá, comunidades (que chamei, em
1988, de « tribos ») se ajustam em busca de convivência. Para bem ou
mal, pior ou melhor, passa-se do antes ao depois. E claro que não
adianta tentar negar esse fenômeno por considerá-lo perigoso. Vale mais à
pena trabalhar para compreendê-lo e conseguir acompanhar seus
desdobramentos.
O mesmo ocorre com a laicidade, termo que, na origem, caracterizava o
povo (« laos ») . Depois, virou « laicismo », marca do espírito
sacerdotal, tão intolerante e fanático quanto aquilo que deveria
combater. Existe certo clericalismo na obsessão laica. Com alguma
ironia, Michel Houellebecq mostra, « monstra », que não é possível
ignorar ou tentar anular o retorno da religiosidade.
As narrativas de Michel Houellebecq lembram, com pertinência, como já
se disse, que a modernidade « começa com o fim dos anjos ». Para bem ou
mal, temos um « reencantamento do mundo » por meio do qual a ficção
supera a realidade. Ou, mais exatamente, vê-se que o Real não se reduz
ao político, ao econômico, ao racionalismo, mas é cheio de fantasmas, de
fantasias, de fantasmagorias, de torrões marcados pela intensidade do
espírito religioso. É esse espírito que dá todo o valor das coisas que
não tem preço, as coisas do mundo simbólico e imaterial. Com a República
e com a secularização, a Filosofia das Luzes, o Iluminismo, alçou voo.
Mas as Luzes estão esmaecendo. Já não iluminam grande coisa nem
esclarecem muita gente.
Mais uma vez, Michel Houellebecq, sem azedume, coloca o dedo na
ferida. Faz isso seguindo a sabedoria popular, que, como dizia Joseph de
Maistre, sabe apreciar « o encontro do bom senso e da razão ». Uma razão sensível,
consciente, por experiência acumulada, de que uma sociedade asséptica
resulta em violência incontrolável. Ou, ainda, que o mito igualitário e o
« legalitarismo » dele derivado contrariam as duras leis que regem
nossa natureza humana.
De fato, dura lex. A postura intelectual do escritor Michel
Houellebecq, com a sua neutralidade, e a sua obra são uma espécie de
« caricatura », no sentido literal do termo : engrossa-se o traço para
destacar o que existe e constitui a vida cotidiana. Ora, a principal
característica da caricatura é que ela não é exata, mas é verdadeira. E
basta ! Um bom romance, como um bom modo de pensar, não é aquele que
revela uma sociedade para si mesma?
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* Membro do Instituto Universitário da França. Últimos livros
publicados no Brasil : O conformismo dos intelectuais (Sulina) e A ordem
das coisas : pensar a pós-modernidade (Forense Universitária)
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/11/9228/caderno-de-sabado-tres-pontos-de-vista-sobre-a-obra-radical-de-michel-houellebecq/
Jornal Impresso: Caderno de Sábado - CS. 05 de novembro d 2016, pág. 1.
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