segunda-feira, 7 de novembro de 2016

LUZES BRUXULEANTES DA MODERNIDADE

Michel Maffesoli*
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 Michel Houellebecq
 
 "Michel Houellebecq é desses autores que fazem ver que em lugar de uma história linear e progressista, sempre segura de si, há histórias, ciclos que se chocam e que suscitam o retorno de coisas que acreditávamos para sempre ultrapassadas."


Embora afirme não gostar de Nietzsche, o escritor Michel Houellebecq poderia concordar com o filósofo alemão, que dizia « não crer em verdades que precisem ser demonstradas ». O homem comum, senhor todo-mundo, não demonstra. Contenta-se em mostrar o que é, o que está aí. « Mostração ou « Monstração » que provocou, provoca e provocará muitos sustos na medida em que as elites, por exemplo, as franceses, cegas por uma lógica moralista do dever ser, simplesmente se esquecem de ver o que é, o que está aí, o que se dá a ver.

Michel Houellebecq parece sentir um prazer malicioso em fazer esse tipo de constatação. Refiro-me a essa « neutralidade axiológica » em que o julgamento de fato ocupava legitimamente o lugar do julgamento de valor. Max Weber usava isso como método no começo da modernidade. Houellebecq, nosso engenheiro agrônomo, sabe que não se brinca com aquilo que é. Sendo assim, faz constatações.
A sua monografia de conclusão de curso não tratava justamente da poluição de um pequeno rio em Yvelines ? Nos seus romances, Michel Houellebecq como que extrapola esse aspecto mostrando (« monstrando ») essa outra poluição representada pela saturação dessa forma particular de convivência, de estar-junto, inventada pela modernidade, a da República das Luzes, República do Iluminismo.

Sempre houve espíritos lúcidos, como um Horácio, capazes de reconhecer que « muitas coisas caídas ressurgirão, e muitas outras, em alta, cairão ». Michel Houellebecq é desses autores que fazem ver que em lugar de uma história linear e progressista, sempre segura de si, há histórias, ciclos que se chocam e que suscitam o retorno de coisas que acreditávamos para sempre ultrapassadas.

Tal constatação não deve provocar inquietação ou agrura. Houellebecq parece, ao contrário, a expressão da tranquilidade de quem não se posiciona contra aquilo que entra em decadência. Ele mostra, com precisão e argúcia, o que se foi. Lendo Michel Houellebecq, tenho a impressão de ouvir um eco do pensamento de Husserl : « Toda época, conforme a sua vocação, é uma grande época ».
Lembro que o termo « época » significa parêntese. Um parêntese que se abre ou que se fecha segundo a lógica inexorável da nossa natureza humana. É isso que chamamos de mudança de paradigma. Depois de ter sido fecunda, uma matriz torna-se estéril. A partir daí, a vida (re)nasce em outro lugar. Os medíocres e os pensadores fracassados podem esfalfar-se repetindo suas ladainhas. Essas arengas não encantam mais muita gente. A verdadeira vida está noutra parte.

Assim, para além das respostas prontas, existe outra maneira de falar de encantamento. Michel Houellebecq faz, com alguma crueza, perguntas que não podem mais ser caladas. Como cada um vê meio-dia na soleira da sua porta, eu puxo a brasa para o meu lado e, nas entrelinhas da sua obra, vejo a lúcida descrição do Homo eroticus de que trato e para o qual a emoção é o elemento essencial.

Não é mais essa República Una e Indivisível, surgida no século XIX, que prevalece, mas uma res publica, uma coisa pública à qual, do jeito que dá, comunidades (que chamei, em 1988, de « tribos ») se ajustam em busca de convivência. Para bem ou mal, pior ou melhor, passa-se do antes ao depois. E claro que não adianta tentar negar esse fenômeno por considerá-lo perigoso. Vale mais à pena trabalhar para compreendê-lo e conseguir acompanhar seus desdobramentos.

O mesmo ocorre com a laicidade, termo que, na origem, caracterizava o povo (« laos ») . Depois, virou « laicismo », marca do espírito sacerdotal, tão intolerante e fanático quanto aquilo que deveria combater. Existe certo clericalismo na obsessão laica. Com alguma ironia, Michel Houellebecq mostra, « monstra », que não é possível ignorar ou tentar anular o retorno da religiosidade.

As narrativas de Michel Houellebecq lembram, com pertinência, como já se disse, que a modernidade « começa com o fim dos anjos ». Para bem ou mal, temos um « reencantamento do mundo » por meio do qual a ficção supera a realidade. Ou, mais exatamente, vê-se que o Real não se reduz ao político, ao econômico, ao racionalismo, mas é cheio de fantasmas, de fantasias, de fantasmagorias, de torrões marcados pela intensidade do espírito religioso. É esse espírito que dá todo o valor das coisas que não tem preço, as coisas do mundo simbólico e imaterial. Com a República e com a secularização, a Filosofia das Luzes, o Iluminismo, alçou voo. Mas as Luzes estão esmaecendo. Já não iluminam grande coisa nem esclarecem muita gente.

Mais uma vez, Michel Houellebecq, sem azedume, coloca o dedo na ferida. Faz isso seguindo a sabedoria popular, que, como dizia Joseph de Maistre, sabe apreciar « o encontro do bom senso e da razão ». Uma razão sensível, consciente, por experiência acumulada, de que uma sociedade asséptica resulta em violência incontrolável. Ou, ainda, que o mito igualitário e o « legalitarismo » dele derivado contrariam as duras leis que regem nossa natureza humana.

De fato, dura lex. A postura intelectual do escritor Michel Houellebecq, com a sua neutralidade, e a sua obra são uma espécie de « caricatura », no sentido literal do termo : engrossa-se o traço para destacar o que existe e constitui a vida cotidiana. Ora, a principal característica da caricatura é que ela não é exata, mas é verdadeira. E basta ! Um bom romance, como um bom modo de pensar, não é aquele que revela uma sociedade para si mesma?
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* Membro do Instituto Universitário da França. Últimos livros publicados no Brasil : O conformismo dos intelectuais (Sulina) e A ordem das coisas : pensar a pós-modernidade (Forense Universitária)
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/11/9228/caderno-de-sabado-tres-pontos-de-vista-sobre-a-obra-radical-de-michel-houellebecq/  
Jornal  Impresso: Caderno de Sábado - CS. 05 de novembro d 2016, pág. 1.

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