Luiz Munhoz/Fronteiras do Pensamento
O escritor Michel Houellebecq em conferência em Porto Alegre em 07 de novembro de 2016
RESUMO Escritor de língua francesa mais lido em seu país (e
traduzido para dezenas de idiomas), Michel Houellebecq, autor do recente
"Submissão", fala em entrevista sobre alguns dos temas prediletos de
seus romances. Ele comenta a descrença dos franceses em relação aos
partidos e diz temer
mais a velhice do que a morte.
O número do "Charlie Hebdo" que chegava às bancas no dia 7 de janeiro do ano passado tinha estampada na capa uma caricatura do escritor Michel Houellebecq, 60, como um mago, ironizando as previsões que ele fazia em seu novo romance, cujo lançamento acontecia no mesmo dia.
O ataque terrorista à sede do jornal satírico naquela quarta-feira em Paris, que deixou 12 mortos, levou Houellebecq a cancelar os eventos de divulgação do livro e a se isolar, e se proteger, longe da Cidade Luz.
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Houellebecq já foi comparado a Balzac (1799-1850), por sua afiada crítica aos costumes e à sociedade de seu tempo, a Céline (1894-1961), por seus personagens um tanto patéticos, um tanto decadentes e cínicos, e é considerado por grande parte da crítica, sobretudo a de língua inglesa, como o mais importante escritor francês contemporâneo. De certo é o mais polêmico.
Seu sexto romance, "Submissão", lançado no Brasil pela Alfaguara, chegou em 2015 ao topo da lista dos mais vendidos não apenas na França como na Alemanha e na Itália. Ali, Houellebecq imagina o país elegendo, em 2022, um presidente de um partido islâmico, o fictício Fraternidade Muçulmana. Com a aproximação do fim do segundo mandato de um François Hollande hipoteticamente reeleito no pleito de 2017 (vencendo em segundo turno a Frente Nacional, de extrema-direita), a França vive –na narrativa do livro– dias de pré-guerra civil, com grupos de defesa da supremacia branca e católica enfrentando violentamente árabes, negros e muçulmanos.
Por medo de uma vitória da Frente Nacional e de sua radicalização, muitos deixam o país –islâmicos e judeus. Os dois grandes partidos franceses, o Socialista de Hollande e o direitista UMP (hoje Republicanos) de Nicolas Sarkozy, unem-se em apoio ao candidato muçulmano, Mohammed Ben Abbes, que é então eleito. François Bayrou, político centrista que já foi candidato à Presidência três vezes –na vida real–, torna-se o primeiro-ministro.
O que se segue são regras islâmicas impostas aos franceses, como a saída das mulheres do mercado de trabalho para se dedicarem exclusivamente à família –o que melhora o desemprego– e a transformação das universidades, antes laicas, em muçulmanas, com a exigência de que professores se convertam (em troca do que recebem significativo aumento salarial). A saída para quem declina da imposição é a aposentadoria prematura, como o faz o personagem-narrador do livro, professor de literatura.
Houellebecq esteve em Porto Alegre no início de novembro para uma conferência sobre os intelectuais franceses no começo do século 21, no âmbito do ciclo Fronteiras do Pensamento. Foi ali que conversou com a Folha.
Descrito certa vez pelo jornal francês "Libération" como tão alegre quanto um violoncelo, ele é um tipo franzino que aparenta timidez. Fala pouco, com longas pausas enquanto olha para cima. Sua fala é quase inaudível, ainda mais numa conversa ao ar livre como a nossa –ele queria aproveitar a "temperatura quase perfeita" daquela tarde (à beira dos 30ºC).
Ao longo dos cerca de 40 minutos de entrevista, o escritor fumou diversos cigarros –amassados, tirados do bolso da calça em unidades–, que apertava com força entre os dentes e segurava entre os dedos anelar e médio. Por vezes também acionou um cigarro eletrônico. Ele falou sobre a política na França e as chances de o cenário de seu livro se concretizar, refutou as acusações de machismo e comentou seu gosto por Leonard Cohen –que dias depois morreria.
*
Michel Houellebecq - Não, porque François Hollande caiu muito para poder se reeleger. É chocante que ele tenha caído tanto. Além disso, os muçulmanos estão extremamente longe de serem capazes de se unir, o que os deixa sem grande peso político. Vai ser preciso muito mais tempo para que possam se tornar uma força política.
"Submissão" é uma crítica aos franceses, aos europeus, que cedem às imposições de um hipotético governo muçulmano em troca de dinheiro e de mulheres. Quais são suas críticas aos franceses?
Eu diria que eles não aceitam buscar uma solução autônoma, o Islã é uma solução vinda de fora, que não faz parte da nossa história. Podíamos tentar achar um outro modo de vida, mais pessoal. Não sei se é exatamente uma crítica, é mais a constatação de uma incapacidade.
Mas o sr. acredita que a França possa um dia se tornar um país majoritariamente muçulmano [sem números oficiais, estima-se que 7% da população seja muçulmana]?
Sim, isso sim é bem provável. E isso com certeza mudará nossa ideia do que é o francês.
Os atentados do Bataclan completam um ano neste mês (13/11). Por que a França se tornou alvo preferencial de terroristas?
Os turistas estão com medo de atentados, mas o perigo na verdade é muito pequeno. A França virou um alvo prioritário porque intervém em muitos conflitos, mais do que os outros países europeus. É simplesmente por isso.
A mistura de religião com política tem se tornado mais comum no Ocidente?
No resto da Europa provavelmente mais do que na França. Nesse país, isso é tão contrário à tradição que precisaria de muito tempo para que acontecesse. A separação entre política e religião ocorreu de maneira muito brutal no início, há poucas chances de que essa mistura venha a acontecer rapidamente. Nem mesmo na Frente Nacional política e religião se misturam –os católicos não votam na Frente Nacional.
Paris recebe cerca de 50 imigrantes por dia. Como isso muda o cotidiano da cidade?
Eles serão evacuados.
Acha mesmo?
Sim, eu sei. Paris é muito protegida, vão colocar as pessoas em outro lugar para não indispor os turistas. Isso preocupa muito as autoridades, a diminuição do número de turistas, que representam muito dinheiro.
E como o senhor vê a polêmica do burquíni [a tentativa de proibir o uso de um traje feminino que cobre todo o corpo nas praias]?
É completamente impensável proibir uma mulher de estar vestida na praia, não há nenhuma razão válida para isso. Então não há nada que se possa fazer para proibir o burquíni.
Mas se tentou mesmo assim.
Mas é impossível, a lei não permite, não há base legal para isso, eles não podem fazer o que querem.
Por que a crítica estrangeira lhe tece mais elogios do que a francesa?
Eu reconheço que o ódio entre mim e a quase totalidade da mídia francesa é tão forte que se tornou inexplicável para mim. É um mistério. Bem, não que seja mesmo um mistério, mas quando discutimos há, por vezes, um tal nível de violência que nada se entende. Eu não sei como chegamos a isso, mas nos detestamos, eu e a mídia francesa. De verdade. Sinceramente, isso é muito forte. Talvez haja erros dos dois lados.
Mas do seu lado, por que esse ódio?
Eu já insultei muitos jornalistas e jornais –e fui muito insultado por eles também. Isso foi crescendo e já dura cerca de 20 anos.
E no entanto o senhor continua muito lido na França.
Essa é uma das vantagens de ser insultado pela imprensa, porque a população odeia a imprensa, então as pessoas estão do meu lado. Há uma relação muito ruim entre a mídia e a população.
E por que os franceses odeiam tanto a mídia?
Porque a mídia fala sempre a mesma coisa, é irritante, é tudo formatado, é pura propaganda centrista. Mas os franceses detestam também os políticos, detestam os juízes, detestam, na verdade, o poder. Fala-se muito da Frente Nacional, mas a progressão da Frente Nacional ainda é menor que a das abstenções nas eleições. A primeira escolha é a de se abster.
Os franceses participam cada vez menos da vida política...
Sim, eu não sei desde quando, mas nos últimos tempos se tornou uma coisa impressionante. Os franceses não se sentem representados, não sentem que algum partido os represente. O problema não é a corrupção –claro, quando há um escândalo isso não ajuda–, mas no geral os políticos franceses são menos corruptos do que em muitos outros países. A causa são mesmo os atores políticos e o que eles propõem.
Voltando a seus livros, como o senhor vê as acusações de misoginia contra seus personagens?
Eu não acho que seja correto. Minhas personagens femininas são especialmente antipáticas e arrogantes, mas não acho que essas críticas sejam acertadas.
Mas o senhor não acha que seus personagens masculinos são machistas, na forma como tratam e falam de mulheres?
Não, não acho.
Um tema de seus livros é o envelhecimento e a decadência do corpo. O senhor tem medo de morrer?
Não. Eu tenho muito mais medo de envelhecer do que de morrer. Nunca senti medo da morte, não acho que isso seja um problema. Mas envelhecer é um inconveniente objetivo.
Muitos de seus livros, segundo a crítica, são autobiográficos. É possível separar vida e obra?
Sim. É mais o livro precedente que engendra o livro seguinte do que os acontecimentos da vida. A vida é entediante. É preciso separar a vida e a escrita. Eu gostaria de escrever sobre minha vida, mas não sou capaz, sobretudo porque esqueço a minha vida. Eu me lembro mais dos meus livros do que da minha vida. Para mim, é mais fácil inventar do que lembrar.
O senhor é fã do Leonard Cohen, não? Do que gosta nele?
Conforme estou envelhecendo, tenho preferido o Lou Reed. Mas há em Cohen uma espécie de aliança entre a palavra e a voz que a pronuncia. Não basta ter boas letras, tem o "tom" que as acompanha também –e nisso ele acerta. Meus gostos não mudaram muito, sou bem limitado nesse campo.
Também acho a música francesa respeitável. Quando a gente para para pensar, até que não é um país nulo culturalmente...
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Reportagem porÚRSULA PASSOS, 29, é repórter da "Ilustríssima".
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/11/1833167-para-michel-houellebecq-franca-muculmana-e-bem-provavel.shtml
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