quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Breve história de uma crise do Ocidente

George Monbiot*

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Vitória de Trump espalha incertezas. Mas a tempestade foi armada há quatro décadas — quando elites desprezaram coesão social e apostaram no neoliberalismo


Os eventos que levaram à eleição de Donald Trump começaram na Inglaterra, em 1975. Numa reunião, poucos meses depois de Margaret Thatcher assumir o comando do Partido Conservador, uma de suas companheiras – ou pelo menos é o diz a história – explicava o que, para ela, seria o núcleo duro das crenças do conservadorismo. Mas Thatcher abriu a bolsa, tirou de lá um livro amarfanhado e bateu com ele na mesa. “Nós acreditamos nisso” – disse ela. Assim começou uma revolução que varreria todo o planeta.

O livro era The Constitution of Liberty de Frederick Hayek [A Constituição da Liberdade]. Sua publicação, em 1960, marcou a transição de uma filosofia honesta, ainda que extrema, numa fraude de proporções monstro. A filosofia era chamada “Neoliberalismo”.

Ali, a característica que definiria as relações humanas seria sempre a concorrência, a competição. O mercado descobriria uma hierarquia supostamente natural de ganhadores e perdedores, criando sistema mais eficiente que jamais poderia ser alcançado mediante planejamento nem por projeto. Qualquer coisa que impedisse esse processo, como impostos significativos, leis regulatórias, atividade sindical ou oferta de qualquer coisa pelo Estado seria contraproducente. A riqueza seria gerada por empresários perfeitamente livres e, em seguida, escorreria pirâmide abaixo [ing. trickle down] para todos.

Valha o que valer, essa era a concepção original. Mas quando afinal Hayek veio a escrever The Constitution of Liberty, a rede de lobbyistas e pensadores que aquela concepção gerara já era abundantemente paga por multimilionários que tomaram a doutrina como ferramenta para se defenderem contra os riscos da democracia. Nem todos os aspectos do programa neoliberal promoviam os interesses deles. Ao que parece, Hayek arregaçou as mangas para preencher as lacunas.

Ela começa o livro expondo a concepção mais rasa que jamais existiu de liberdade: uma ausência de coerção. Rejeita noções como liberdade política, direitos universais, igualdade entre os homens e na distribuição da riqueza — todas essas noções — porque limitam a ação dos ricos e poderosos, interferindo na ausência de qualquer coerção (a “liberdade”) que o modelo exige necessariamente.
Democracia, por sua vez, “não é valor definitivo ou absoluto”. De fato, a liberdade depende de impedir-se que a maioria possa escolher a direção que política e sociedade devam tomar.

Para justificar essa posição, Hayek cria uma narrativa heroica da riqueza extrema. Aproxima a elite econômica, livre para gastar o próprio dinheiro de novas maneiras, e os pioneiros da filosofia e da ciência. Assim como o filósofo político teriam de ter liberdade para pensar o impensável, assim também os muito ricos têm de ser livres para fazer o factível, sem nenhuma consideração com o interesse público ou a opinião pública.

Os ultra ricos são “escoteiros”, “batedores” [ing. “scouts”], “sempre a experimentar novos estilos de vida”, que abrem as trilhas pelas quais seguirá o resto da sociedade. O progresso da sociedade depende da liberdade que tenham esses “independentes” para ganhar tanto dinheiro quanto desejem e gastá-lo como queiram. Tudo que é bom e útil, portanto, é fruto da desigualdade. Não pode haver conexão entre mérito e recompensa, nenhuma distinção entre renda justa e não justa e nenhum limite aos rendimentos [ing. rents] a serem cobrados da sociedade.

Riqueza herdada é mais útil socialmente que riqueza alcançada com trabalho: “os ricos ociosos” [ing. “the idle rich”] que não têm de trabalhar pelo próprio dinheiro podem devotar-se a influenciar “campos de pensamento e opinião, de gostos e de crenças”. Ainda que pareçam estar gastando dinheiro só em “gastos sem objetivo” [ing. “aimless display”], estão, de fato, operando como a vanguarda da sociedade.

Hayek suavizou sua oposição aos monopólios, e endureceu sua oposição aos sindicatos. Atacou os impostos progressivos e as tentativas, pelo Estado, de melhorar as condições gerais de bem-estar dos cidadãos. Insistiu que “há motivos insuperáveis que se podem opor a serviços de saúde gratuitos para todos”; e descartou qualquer movimento para conservar recursos naturais. Ninguém, entre especialistas e interessados em geral que acompanham esses assuntos, surpreendeu-se quando Hayek recebeu o Prêmio Nobel de economia.

No momento em que Mrs Thatcher batia na mesa o livro de Hayek, uma vivíssima rede de thinktanks, lobbyistas e acadêmicos que viviam de promover as doutrinas de Hayek já se formara dos dois lados do Atlântico, abundantemente financiada por algumas das pessoas e empresas mais ricas do mundo, dentre os/as quais DuPont, General Electric, as cervejarias Coors, Charles Koch, Richard Mellon Scaife, Lawrence Fertig, a Fundação William Volker e a Fundação Earhart. Servindo-se de psicologia e linguística para resultados realmente impressionantes, os pensadores que esses patrocinadores mantinham encontraram as palavras e os argumentos necessários para converter o que era hino religioso de uma elite, em um programa político plausível.

O thatcherismo e o reaganismo não eram ideologias por direito próprio: eram apenas duas caras do neoliberalismo. Os cortes massivos para os ricos, o ataque violento contra os sindicatos, redução na moradia subsidiada, desregulação, privatização, terceirização regras concorrenciais para os serviços públicos, todas são ideias propostas por Hayek e seus discípulos. Mas o real triunfo dessa rede não foi ter capturado a direita, mas a colonização dos partidos que, antes de colonizados, defendiam tudo que Hayek detestava.

Bill Clinton e Tony Blair não têm narrativas próprias. Em vez de desenvolver uma narrativa política nova, acharam que bastaria uma triangulação. Em outras palavras, extraíram alguns elementos das crenças ativas nos respectivos partidos, misturaram com elementos das crenças ativas entre os respectivos opositores e desenvolveram, a partir dessa combinação improvável, uma “terceira via”.

Era inevitável que a autoconfiança ousada, insurrecional do neoliberalismo criasse pulso gravitacional mais forte que o da estrela cadente da social-democracia. O triunfo de Hayek pode ser constatado por toda parte, da expansão da iniciativa da finança privada, de Blair, até a anulação da Lei Glass-Steagal, de Clinton. Apesar da elegância e das boas maneiras, Barack Obama, que tampouco oferece narrativa própria (exceto esperança [ing. hope]), foi aos poucos sendo aspirado para perto dos que eram donos dos meios de persuasão.

Como alertei em abril, o resultado é primeiro desempoderamento, depois cassação de direitos. Se a ideologia dominante impede governos de mudar relações sociais, eles já não podem responder às necessidades dos eleitores. A política torna-se irrelevante para a vida das pessoas; o debate é reduzido à tagarelice de uma elite remota. Os desempoderados voltam-se facilmente para uma antipolítica virulenta, na qual fatos e argumentos são substituídos por slogans, símbolos e sensação. O homem que fez naufragar a possibilidade de Hillary Clinton chegar à presidência não foi Donald Trump. Foi o marido dela.

Um resultado paradoxal é que o revide contra o esmagamento da escolha política promovido pelo neoliberalismo acabou por entronizar exatamente o tipo de homem que Hayek cultivou como divindade. Trump, que não tem política coerente, não é um neoliberal clássico. Mas é a perfeita representação do “independente” de Hayek; o beneficiário de riqueza herdada, não constrangido pela moralidade comum, cujas gostos grosseiros abrem uma nova trilha que outros poderão trilhar. Agora, os “especialistas” de think-tanks enxameiam em torno desse homem vazio, desse saco vazio à espera de ser preenchido pelos que sabem o que querem. Resultado provável é a demolição das últimas decências que restam aos EUA, a começar pelo acordo para limitar o aquecimento global.

Os que contam as histórias comandam o mundo. A política fracassou, quando não tinha narrativas de oposição. A tarefa chave agora é contar uma nova história do que é ser homem e mulher humanos no século 21. Pode atrair alguns dos que votaram em Trump e no Partido Britânico Independente, tanto quanto os apoiadores de Clinton, Bernie Sanders ou Jeremy Corbyn.

Poucos de nós temos trabalhado sobre isso e podemos discernir o que talvez seja o início de uma narrativa. É ainda cedo demais para falar muito, mas no núcleo duro dela está o reconhecimento de que – como a psicologia e a neurociência moderna ensinam tão claramente – os seres humanos, comparados a outros animais, somos notavelmente sociais e notavelmente altruístas. A atomização e o comportamento auto-referente que o neoliberalismo promove anda na contracorrente de grande parte do que se entende por natureza humana.

Hayek retratou-nos como quis e estava errado. Nosso primeiro passo é exigir de volta a nossa humanidade.
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 * George Monbiot: Jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido. Escreve uma coluna semanal no jornal The Guardian. | Tradução Vila Vudu | Imagem: Natali Arslam
FONTE:  http://outraspalavras.net/capa/breve-historia-de-uma-crise-do-ocidente/

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