Matthieu Ricard
No
dia 9 de novembro, na manhã seguinte à eleição de Donald Trump como
presidente dos EUA, durante um retiro no Garrison Institute, em Nova
Iorque, pediram que Matthieu Ricard falasse um pouco sobre o momento
atual. Sua resposta pode ser útil para muitas pessoas, não apenas
praticantes budistas.
Uma
imagem comumente usada no budismo diz que nós somos como abelhas
aprisionadas em um pote de mel. Isso significa que sempre podemos buscar
uma resolução imediata para os nossos problemas, remendando as coisas
no curto prazo. Mas quando tudo parece sair do controle, nós precisamos
nos perguntar: por quê? Por que isso continua surgindo de novo e de novo?
Então, se considerarmos a maneira como a nossa realidade se desdobra,
veremos que o problema é muito mais profundo do que simples
manifestações externas de ganância, indiferença, ódio ou de algum
sentimento exacerbado de auto-importância… É claro que nós não devemos
aceitar tais coisas, e podemos reconhecê-las pelo que são, porém
simplesmente remendá-las e seguir adiante não parece estar nos levando a
uma cura duradoura.
Portanto,
qual é a raiz original de toda essa confusão? Será que o mundo é um
lugar genuinamente malvado? Será que os seres humanos têm uma natureza
má? Será que o ódio, a inveja e a auto-importância estão permanentemente
cravados em nossas mentes? Ou será que são algo imposto por uma
entidade externa?
Bem,
a análise budista do mundo diz que existem causas mais profundas que
podemos analisar e identificar — e, obviamente, como qualquer fenômeno,
causas e condições são naturalmente impermanentes. Quando o Buda ensinou
as Quatro Nobres Verdades, a primeira coisa que ele explicou foi o
reconhecimento do sofrimento. Ele não estava se referindo apenas ao
sofrimento no sentido da dor que ocasionalmente sentimos em nossos
corpos, ou ao sofrimento que surge quando vemos um massacre, que é algo
bem direto e óbvio. Ele tampouco estava falando meramente do sofrimento
da mudança, que nós experimentamos quando as coisas demonstram sua
própria impermanência. Seu ensinamento principal era sobre as causas
mais profundas do sofrimento: sua mensagem era que, enquanto
continuássemos a manifestar uma profunda delusão e confusão interna,
isso nos levaria a uma visão distorcida da realidade, da maneira como as
coisas realmente são — e, como consequência, muitas manifestações de
sofrimento estariam fadadas a surgir, vez após vez.
Nesse
contexto, ao falar em ignorância, o Buda não queria dizer falta de
informação ou desconhecimento de alguns fatos, e sim algo bem mais
profundo: nossa fixação à profunda sensação de ser um eu autônomo e
reificado; assim como uma fixação à manifestação do mundo fenomênico
como algo sólido, imutável e pré-definido em si mesmo. É a ignorância de não ver que todos os fenômenos surgem de forma interdependente,
e que nunca podemos atribuir uma única causa de forma isolada, já que a
explicação do mundo se dá através de uma rede complexa de conexões.
Quando
falhamos em compreender isso, tal visão distorcida pode nos levar a uma
sensação de separação entre “eu e os outros”, depois para “atração e
repulsa”, e daí para todo tipo de emoção destrutiva, como ódio,
arrogância, apego, ausência de discernimento e assim por diante… Esses
são os fatores que eventualmente nos levam em direção ao sofrimento.
No
entanto, nós poderíamos dizer: “Ah, mas essa é uma análise muito
sombria da realidade e da condição humana!” E se fosse apenas isso, sem
nenhuma saída, tal comentário seria verdadeiro. Mas nós precisamos
manter em mente que o sofrimento surge de causas e condições, e como
nenhum fenômeno do universo é permanente, criar um novo conjunto de causas e condições pode realmente mudar as coisas.
Quando assumimos essa visão, de identificar as causas e condições e
seus respectivos antídotos como um caminho para seguir em frente, isso
nos leva à metáfora que discutimos ontem, de ver os professores
espirituais como médicos e nós mesmos como pacientes.
Então,
primeiramente o Buda reconheceu o problema do nosso sofrimento (essa
foi a sua primeira nobre verdade). Em seguida ele identificou as causas
do problema (sua segunda nobre verdade) e, num terceiro momento, ensinou
a possibilidade da cessação do sofrimento, que é parte fundamental de
seus ensinamentos. Sem ela, o desespero e a impotência tornam-se
consequências lógicas do reconhecimento da nossa situação atual.
Certa
vez eu ouvi o Dalai Lama dar o exemplo de que se nós estivéssemos em um
avião e víssemos alguém perdido no meio do oceano, próximo a uma ilha,
porém nadando na direção errada, só seríamos capazes de sentir pena e
desespero. Mas se estivéssemos vendo a ilha e pudéssemos sinalizar para a
pessoa que, caso ela nadasse na outra direção, encontraria terra e um
refúgio seguro, então aquela piedade impotente se transformaria em uma compaixão poderosa,
porque iríamos visualizar uma oportunidade de acabar com aquele
sofrimento: nós apenas teríamos que dizer para a pessoa em qual direção
ela precisaria nadar.
Portanto,
a compaixão só faz sentido se existir a possibilidade da cessação do
sofrimento, se houver uma estratégia que possamos seguir para dar fim ao
sofrimento. Para a nossa sorte, essa foi a quarta nobre verdade que o
Buda ensinou: existe um caminho que podemos seguir — e a raiz desse
caminho rumo à liberação consiste em cortar das nossas mentes esse
engano e essa ignorância básica. Fazendo isso, como uma árvore cuja raiz
é cortada e consequentemente vê todas as suas folhas caírem ao chão, da
mesma forma, todo ódio, indiferença, ganância e orgulho que nossa mente
consegue manifestar são igualmente eliminados quando lidamos com a
causa-raiz da nossa confusão.
É
por isso que às vezes até conseguimos compreender o quadro geral, mas
ainda assim nos sentimos impotentes, desencorajados e querendo ir pra
casa. Nos ensinamentos budistas frequentemente se utiliza a imagem de um
cervo ferido, que só quer se esconder na floresta até que esteja melhor
e possa sair. Mas precisamos entender a necessidade de trabalhar
individualmente para se libertar do sofrimento: ninguém pode nos lançar
em meio à terra da sabedoria e da liberação, como se estivesse atirando
uma pedra em cima do telhado… Da mesma forma que um médico não pode
tomar nossos remédios e fazer o tratamento em nosso lugar, o Buda disse:
“Esse é o caminho… mas agora cabe a você caminhar”.
Foi
nesse contexto que ele também discutiu a ideia de comunidade ou sanga,
um lugar onde podemos trabalhar juntos e alcançar de forma mais eficaz
os objetivos que estabelecemos para nós mesmos. Na verdade, esse é o
nosso exemplo para hoje: estamos juntos porque juntos podemos alcançar
mais coisas do que cada um de nós jamais conseguiria individualmente.
Nessa linha, faria sentido nos sentirmos impotentes se a possibilidade
de alcançar a liberação do sofrimento não existisse. Mas devido ao fato
de que há um remédio, de que há uma saída, o que precisamos fazer é materializar esse caminho em nós mesmos e em nossa cultura. Uma tal mudança nunca acontecerá por si só como uma intervenção de cima para baixo.
Porém,
se estivermos nos sentindo desencorajados pelos obstáculos, como alguns
talvez estejam se sentido hoje (afinal, ainda que compreendamos de onde
vem o sofrimento, as dificuldades temporárias podem consumir nossa
energia), o próprio fato de que existem dificuldades pode ser tomado
como uma lição para reconhecermos que podemos ficar ainda mais
determinados em chegar à causa-raiz do nosso sofrimento. Ademais,
podemos lembrar que isso também vai passar… afinal, a impermanência nem
sempre é algo ruim! Às vezes nós falamos sobre impermanência no contexto
de vida e morte, de envelhecimento, de perder aqueles que nos são
caros, mas a impermanência também segue funcionando quando algo de ruim
acontece!
Portanto,
se queremos mudanças, se queremos criar um novo conjunto de causas e
condições, como podemos fazer isso? Bem, certamente não vai ser através
de manifestações de extrema raiva ou de alguma força antagônica, porque
isso apenas vai alimentar um ciclo vicioso, como se estivéssemos caindo
dentro de um fosso pequeno e lotado, onde todos já estão batalhando para
permanecer acima do nível da água. A coisa mais poderosa que podemos
fazer é continuar a busca da sabedoria e da compaixão, porque essa é a
melhor fonte de mudança para nós mesmos e para a sociedade. Às vezes as
pessoas acham que a violência é a melhor solução, porque ela pode trazer
uma resolução mais rápida. Mas nós sabemos, por experiência, que a
violência só gera mais sofrimento. Nesses casos, pode parecer que a
sabedoria e a compaixão não são a melhor forma de proceder, mas com
certeza são, porque essa é a única forma que vai até a raiz dos nossos
problemas.
Claro
que isso é uma análise em um nível mais fundamental e nós também
deveríamos considerar um nível mais relativo. Mas, mesmo nele é bom
lembrar que, alguns séculos atrás, na Europa, as pessoas passavam os
domingos em família assistindo a enforcamentos públicos e torturas, mais
ou menos como hoje nós vamos assistir a uma partida de futebol ou a um
filme. Portanto, embora ainda haja coisas terríveis acontecendo
atualmente, como o que está ocorrendo na Síria ou no Sudão do Sul, a
verdade é que já percorremos um longo caminho e, apesar da mensagem
diária da mídia, progredimos significativamente em coisas como a
evolução das democracias ao redor do mundo, uma maior igualdade entre
homens e mulheres, ou mesmo os avanços gerais de acesso à educação em
vários países.
É
claro que ainda há muitas dificuldades no mundo, mas nós nunca
deveríamos perder nossa coragem e determinação. E o fato de estarmos
todos juntos aqui hoje é um testemunho de que, na verdade, nós podemos
sim construir um mundo melhor juntos. Então, sabemos que tudo vai
passar, porém cabe a nós determinar o que virá a seguir — e nós não
deveríamos pensar que a transformação pessoal é apenas um luxo para o
mundo, ainda que às vezes tal conexão possa não estar tão clara para
nós. Algum tempo atrás, perguntaram ao Dalai Lama como a meditação
poderia ajudar a resolver a Guerra do Iraque. Mas isso é como perguntar o
que fazer com o último copo d’água quando uma floresta está em chamas…
Em vez disso, nós deveríamos ser lembrados de que cada
guerra no mundo começou na mente, com um pensamento de ganância ou
ódio, que cresceu e cresceu, se ampliou mais e mais, e eventualmente
inflamou um grupo de pessoas. Mas a raiz de toda violência e sofrimento é
um único pensamento em uma mente. Portanto, nós não deveríamos
subestimar o poder da mente de conjurar um sofrimento imenso e, ao mesmo
tempo, de se libertar deste mesmo sofrimento. Nós não deveríamos pensar que, ao nos engajarmos em uma transformação pessoal profunda, não causaremos nenhum impacto. Então, eu te convido a não perder a coragem no poder de sua própria transformação e na transformação de suas comunidades.
Portanto,
se você se sente desencorajado agora, saiba que esse sentimento não vai
durar, e que a nossa coragem, a nossa determinação e a nossa alegria em
alcançar algo saudável logo retornarão. Podemos confiar que, se
tivermos a visão correta e praticarmos algo significativo, não há
dúvidas de que a nossa determinação será forte e vai nos inspirar a
construirmos juntos um mundo melhor. Então, quando nos sentarmos para
meditar daqui a alguns minutos, isso não será um passo sem sentido na
busca por uma transformação interna profunda — na verdade, isso é o
processo na raiz da liberdade do sofrimento e da delusão e, portanto, da
transformação social.
Se
é verdade que cada guerra começou com um pensamento de ódio, então toda
vez que neutralizarmos um pensamento de muito apego e ganância
estaremos ao mesmo tempo neutralizando, na raiz, uma possível reação em
cadeia que poderia levar a um sofrimento maior. Da mesma maneira, cada
vez que ativarmos um pensamento de compaixão, estaremos começando uma
reação em cadeia que pode trazer bondade para o mundo.
Portanto,
nós deveríamos entender que a mudança social nunca vai acontecer sem a
mudança pessoal: ela só vai ocorrer quando seguirmos nossas trajetórias
rumo a nos tornar melhores seres humanos. Esse não é um projeto pequeno:
ele se encontra na própria raiz da mudança do mundo. Então, por favor,
pense sobre isso como algo que realmente importa.
-----------------
Matthieu Ricard
Garrison Institute, Nova Iorque, 9 de novembro de 2016
Garrison Institute, Nova Iorque, 9 de novembro de 2016
Transcrição de Diogo Rolo. Tradução para o português de Gustavo Gitti, Marcus Telles e Gabriel M. Falcão.
FONTE: https://medium.com/olugar/qual-a-raiz-mais-profunda-da-crise-mundial-c9b271643375#.ehw7akz6i
Nenhum comentário:
Postar um comentário