Ricardo Costa*
Como é que o ano de 2016 vai ser recordado? A poucos meses de acabar, é relativamente seguro dizer que o ano de 2016 será recordado por eleições e esse facto diz muito sobre o que estamos a viver
De
um momento para outro, a guerra da Síria, a crise dos refugiados, as
ondas de choque da crise das dívidas públicas e a fragilidade do sistema
bancário ou mesmo coisas tão extraordinárias como os carros sem
condutores ou a explosão da Inteligência Artificial, são afastados do
pódio dos acontecimentos mundiais por… eleições. Sim, essa velha
tradição das democracias, que se banalizou nas sociedades ocidentais ao
ponto de grande parte das populações já nem sequer se dar ao trabalho de
votar, está a mostrar a sua força de uma forma pouco previsível.
Quando
olhamos para as últimas décadas, podemos elencar uma série de
acontecimentos incríveis, desde descobertas científicas a mudanças
geopolíticas, de várias revoluções tecnológicas a guerras sem fim, mas
teremos dificuldade em escolher uma eleição como algo que tenha mudado o
mundo. Talvez a vitória de Barack Obama seja a que se mais aproximou
disso, com a eleição de um Presidente negro na maior potência mundial.
Mas mesmo essa eleição assentava na categoria mais habitual, onde
arrumamos os momentos em que os povos fazerem escolhas – à esquerda e à
direita – que reforçam aquilo a que nos habituámos a chamar as
“democracias liberais” e que se espalharam como norma na ordem mundial
do pós-guerra.
Pois bem, o que esta madrugada nos mostrou – tal
como o referendo do Brexit – é que os eleitorados estão dispostos a
aproveitar as eleições como armas de sentido contrário, de protesto
contra o sistema, contra a globalização, contra a abertura ao exterior,
contra tudo o que vem de fora, contra imigrantes ou outros credos,
juntando em movimentos ou ao redor de um candidato imensas multidões de
descontentes e saudosos de tempos aparentemente mais prósperos. Nada
disto é novo nas democracias ocidentais e sempre esteve presente em
movimentos que, mais à esquerda ou mais à direita, corporizavam todos
estes sentimentos. Mas 2016 marca a entrada em força desta tendência no
centro eleitoral, apagando todas as fronteiras ideológicas e encurtando
as distâncias entre os extremos. O que é o extremo no Brexit? O que é o
extremo no eleitor médio de Donald Trump? Ou nos eleitores que se
preparam para votar contra no referendo constitucional italiano?
Provavelmente será o mesmo “extremo” que se juntará em torno de Marine
Le Pen nas presidenciais francesas contra a fraqueza económica da França
e o peso do Islão no país. Ou os que vão votar sem vergonha no primeiro
partido alemão de extrema-direita com sucesso desde 1945 nas eleições
do próximo ano.
Donald Trump é um produto do seu próprio sucesso,
de uma auto-estima sem fim que soube cavalgar todas as contradições da
democracia americana. Ganhou contra quase tudo e quase todos, numa
corrida de obstáculos tão mentirosa quanto brilhante, tão contraditória
quanto fulgurante, tão escandalosa quanto ousada. Disse uma coisa e o
seu contrário, inventou, ofendeu, mentiu e prometeu o que nunca irá
cumprir, derrubando todos os candidatos que teve pela frente. Hoje é
óbvio que percebeu muito bem a sociedade americana, farta dos partidos,
de Washington e de Wall Street, que sonha com um país mais fechado, com
menos comércios mundial, menos imigrantes, mais virado para as suas
coisas e para um tempo em que era “maior e melhor”. E com isso, quase
destruiu o Partido Republicano, as suas elites e a sua máquina até os
vergar aos seus pés para não deixar pedra sobre pedra. Será isso que vai
fazer em Washington? É difícil responder a isso, mas será a maior
ameaça às tradições democráticas americanas, a começar pela ameaça de
mandar prender a sua adversária (coisa comum noutros países) e a acabar
na expulsão em massa de imigrantes ou à revogação de tratados
internacionais e à negação do aquecimento global.
Trump não é o
fim nem o princípio desta tendência que põe em causa a ordem mundial
estabelecida no pós-guerra. Ele demonstrou que a imprevisibilidade do
Brexit não foi um acaso: muitas pessoas estão dispostas a votar no que
não conhecem, apenas porque não gostam do que conhecem. Entre um
presente de que não gostam e um futuro que não sabem o que pode ser,
optam pelo segundo. Há vários fatores a contribuir para este movimento, a
começar pela imensidão de gente que acha que os seus filhos vão ter uma
vida pior que a sua até ao alheamento eleitoral dos mais jovens, mesmo
em eleições muito importantes. Em simultâneo, os mais conservadores e/ou
desiludidos estão dispostos a votar e a arriscar e os mais jovens, mais
viajados e mais instruídos nem se dão trabalho de votar. No Brexit isso
foi evidente, como hoje é claro que Hillary Clinton ficou longe das
marcas de Obama no voto negro ou hispânico.
Hoje acordámos num
mundo novo, como na ressaca do Brexit despertámos numa nova Europa. Mas
enquanto a mudança no velho continente é mais lenta e até difícil de
perceber, a mudança americana será mais rápida e profunda. E vai
provocar ondas de choque por todo o mundo. Putin estará a abrir mais uma
garrafa de champanhe, mas a guardar uma caixa para o que ainda está
para vir. Ele percebeu bem como se pode ser popular invocando um passado
difuso que mistura Czares com o Império Soviético, fazendo o povo ter
saudades de tempos em que não contava para nada mas a mãe Rússia era
“grande”. O que é ser “grande de novo”? Para Putin é baralhar o conflito
sírio, é anexar a Crimeia, é mover um míssil nuclear para um território
báltico, é pagar a hackers para divulgar mails de apoiantes de Hillary.
E, já agora, financiar a campanha de Marine Le Pen para enfraquecer
ainda mais a Europa.
E o que será a América “grande” que Donald
Trump conhece? Ninguém sabe, mas será um retrocesso em muito do que
mudou o mundo nas últimas décadas. Os primeiros sinais virão da economia
e todos vão perceber que decisões unilaterais americanas mexem mesmo
com o mundo todo. E depois da economia nada vai escapar ao abanão. Por
vezes esquecemos que o mundo vive de equilíbrios muito instáveis em que
as guerras e os conflitos vão sendo menos habituais. Isso não quer dizer
que vai tudo correr mal, longe disso. Quer apenas dizer que muito do
que damos por adquirido vai ser posto em causa ou parecer mais instável.
Não é o princípio nem o fim do mundo. Mas é outra coisa.
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* Colunista do Expresso. Jornal de Portugal.
Fonte: http://expresso.sapo.pt/opiniao/opiniao_ricardo_costa/2016-11-09-Trump-nao-e-o-principio-nem-o-fim-do-mundo.-Mas-e-outra-coisa
Imagem da Internet
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