domingo, 20 de novembro de 2016

Jan-Werner Müller: “Trump é algo sem precedentes nas democracias modernas”

O cientista político Jan-Werner Muller.Trump demonstrou que não respeita as instituições (Foto: CASPER HOLMENLUND CHRISTENSEN/POLFOTO  )

O cientista político diz que o presidente eleito dos Estados Unidos não respeita instituições e pode disseminar a perigosa mensagem da supremacia branca para o mundo


FLÁVIA YURI OSHIMA
O escritor belga Jan-Werner Müller considera a eleição do republicano Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos uma ameaça real à democracia. Segundo o cientista político formado pela Universidade Princeton, Trump foi um candidato populista durante toda a campanha. Para ele, populistas são contra o pluralismo de opiniões e a oposição, antíteses da democracia. Não há razão para acreditar, segundo Müller, que Trump mudará no exercício do poder – apesar do discurso mais equilibrado na comemoração da vitória. Para Müller, não há chances de outro Trump surgir em outro lugar do mundo hoje; mas ele influenciará partidos de extrema-direita, que já usam sua vitória como propaganda para suas próprias propostas. “O perigo é a disseminação do movimento de supremacia branca”, diz ele nesta entrevista a ÉPOCA. “Trump é algo sem precedentes na história política moderna de países democráticos.” Müller acaba de lançar What is populism, ainda sem tradução.

ÉPOCA – O que a eleição de Trump representa?
Jan-Werner Müller –
Tem havido uma crescente polarização política nos Estados Unidos há mais de duas décadas. Há uma perda de confiança nas instituições. Uma série de problemas éticos pavimentou isso, como o escândalo Halliburton, no governo de George W. Bush na década de 2000 (a empresa, que fora presidida pelo vice Dick Cheney, obteve contratos superfaturados durante a Guerra do Iraque). Desde então, poderíamos listar vários episódios, com o FBI e com todo tipo de burocracia, que minaram a confiança. Esse movimento contribuiu para a ascensão de um Trump, que já disse que não confia nas intituições. Trump é o coroamento dessa falta de confiança.

ÉPOCA – A eleição de Trump ameaça a democracia?
Müller –
Eu acredito que sim. Um grupo de republicanos tem mostrado o desejo de basicamente manipular instituições como o goveno federal, a Suprema Corte, o FBI, os direitos humanos, a liberdade de expressão, o respeito pela imprensa e o pluralismo. Agora temos alguém no comando que tratou a imprensa de uma forma sem precedentes na história moderna da democracia americana. Trump já mostrou que não respeita a democracia americana.

ÉPOCA – O senhor concorda com a teoria de que o Cinturão da Ferrugem e o homem branco de baixa renda foram os responsáveis por esta eleição?
Müller –
É difícil negar a tragédia desta eleição e que Trump tenha conseguido o apoio do nacionalismo branco. Dito isso, eu resistiria ao reducionismo de ser essa a explicação para sua eleição. A sociedade tem muita necessidade de explicações rápidas, baseadas em uma motivação clara. Não é assim. Tanto entre democratas quanto entre republicanos, o grupo é muito heterogêneo. Lembre-se de que a maioria dos votantes não votou em Donald Trump, mas em Hillary Clinton. Esse é o mesmo tipo de reducionismo que levou as pessoas a relaxar ao pensar que latinos, negros e mulheres solteiras dariam a vitória certa a Hillary. O reducionismo empobrece o debate e mina qualquer possibilidade de reconhecimento do que estamos passando.

ÉPOCA – O que há em comum entre o movimento populista de esquerda, ocorrido na América Latina com a eleição de Hugo Chávez e Evo Morales, e o resultado da eleição americana?
Müller –
Populista é alguém que se proclama como o único representante legítimo do povo e é contra o pluralismo. Chávez foi um populista. Trump durante a campanha foi um populista – e acho que o que temos de observar e cuidar é que, se as condições forem favoráveis, se ele tiver poder suficiente e a maioria ao lado dele, ele governará como populista, o que significa que tentará silenciar o pluralismo e qualquer tipo de oposição, como fez Chávez.

ÉPOCA –  Até que ponto o fortalecimento dos partidos da ala direita extremista se deve ao desequilíbrio provocado pela globalização?
Müller –
Há claramente algo acontecendo em vários países. Há um conflito entre aqueles que querem mais abertura e aceitam a transformação da cultura e da economia vinda da globalização e os que querem permanecer ou se tornar mais fechados. Esse é o tipo de disputa que alimenta o nacionalismo. Mas, novamente, não devemos pular para a conclusão de que agora temos de combater a globalização. Globalização não é como fé, que se tem ou não se tem. Não é como um pacote inteiro de reformas que podemos aceitar ou rejeitar. Há muitas gradações e possibilidades para cada país. A globalização não deve ser como optar por tudo branco ou tudo preto. O Brexit (a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia) pode ser lido como um movimento contra a globalização, mas agora, quando olhamos para os detalhes, deparamos com o fato de que há uma série de aspectos associados à globalização, como o acesso ao mercado, a liberdade de ir e vir etc., que mesmo os maiores defensores do Brexit não querem perder.

ÉPOCA – O que Donald Trump e a francesa Marie Le Pen têm em comum?
Müller –
Ambos são populistas, inegavelmente. Ambos dizem que somente eles representam o povo e qualquer um que não concorde com esse ponto não faz parte do povo. A diferença é que Trump foi abertamente sexista e racista, enquanto Le Pen trabalha no sentido de não demonizar o discurso contra nenhum grupo. O importante é ter em mente duas coisas. Primeiro que nenhum partido conservador do mundo pavimentou o caminho para o surgimento de um Trump, como fez o Partido Republicano americano. Não acho que teremos outro Trump. Agora, sobre governos populistas, outro ponto é que eles não nascem de partidos extremistas – mas, sim, de partidos normais que se transformam. Observamos esse movimento com Theresa May, no Reino Unido. Sabemos o que pensa Le Pen. O interessante é se perguntar o que pensa um Nicolas Sarkozy.

ÉPOCA – A eleição de Trump será um combustível para os partidos conservadores de outros países?
Müller –
Isso é o que eles querem que todos acreditem. E propagam essa vitória como um sinal de que esse é o caminho. O que pode fazer a diferença é menos a imagem de Trump e mais o risco de uma certa mensagem política se disseminar. Essa mensagem diz que o candidato que se alinhar a um movimento de identidade branca pode vencer. Esse é um cenário mais perigoso.

ÉPOCA – Até que ponto o discurso de Trump é mais nativista do que nacionalista? Quais as consequências disso?
Müller –
Essa é uma questão importante. Há claramente no discurso de Trump um componente muito forte de nativismo. Ele atraiu pessoas que concordam com a ideia de que os filhos legítimos da terra valem mais que outras pessoas. Isso vai muito além de qualquer tipo de nacionalismo americano convencional porque traz componentes de racismo e supremacia branca. Esse pensamento nunca esteve tão representado no poder, desde o início do século XX. No Reino Unido,  fomentou uma série de episódios racistas e homofóbicos. Isso deve ocorrer com os Estados Unidos também. Basicamente, a eleição de Trump dá o sinal de que é OK dizer às pessoas que elas não pertencem realmente àquele país. Isso terá consequências no nível da sociedade e individual.

ÉPOCA – Pode-se ter esperança de que as ações de Trump sejam muito mais equilibradas do que seu discurso?
Müller –
Infelizmente temos muito pouca clareza sobre o que será o programa nacional. Eu só seria cuidadoso também com essa expectativa de que, agora que chegou lá, ele será normal, que as barbaridades foram só para levá-lo até lá. Ele tem sido bem-sucedido com seu jeito de fazer as coisas. Não há nada que faça mais sucesso do que o próprio sucesso. Ele já disse que não respeita as instituições. Eu não gostaria de ser apocalíptico e alarmista, mas eu não vejo por que tudo vai mudar agora que ele venceu, se ele venceu com essa postura. Pessoalmente, eu nunca vi alguém de 70 anos que mudou totalmente seu caráter depois de ter ganho mais poder.

ÉPOCA – Trump pode fomentar de alguma forma ações terroristas?
Müller –
Os terroristas querem mais homofobia, mais racismo e o ódio pelos muçulmanos disseminado em vários países. Então, nesse sentido, eles devem estar muito satisfeitos com a eleição de Trump. Mas é importante frisar que o Estado Islâmico e outros grupos não precisam de Trump para agir.
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Fonte:  http://epoca.globo.com/mundo/noticia/2016/11/jan-werner-muller-trump-e-algo-sem-precedentes-nas-democracias-modernas.html

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