Bentham
imaginou o famoso panóptico, uma penitenciária ideal em que um único
vigilante conseguiria observar todos os prisioneiros, sem que estes
conseguissem ver seu observador. Mas o mundo atual não se parece tanto
com esse Big Brother, e sim com uma prisão transparente, em que todos
vigiam todos, e se expõem de forma voluntária a esta “penitenciária”.
Essa é a tese do filósofo coreano Byung-Chul Han, professor em Berlim e autor de The Transparency Society,
livro pequeno de tamanho, mas profundo de mensagem. Soube dele pela
coluna de João Pereira Coutinho. Em que pesem nossas diferenças sobre a
eleição americana, continuo admirando bastante o gajo, e suas
recomendações são sempre imperdíveis. Comprei o livro, devorei cada
página neste domingo, e são mesmo reflexões bem interessantes provocadas
pelo autor.
O exemplo utilizado por Coutinho em sua
resenha foi a de um shopping center asiático com um banheiro
transparente. Que tipo de gente pode desejar voluntariamente se
expor desse jeito, escolher a vida de um BBB? Enquanto eu lia as
páginas, outro caso me veio à mente. Vi recentemente um vídeo que
circulou bastante pelas redes sociais de uma mãe exasperada ao saber que
a filha adolescente era lésbica.
Era tudo uma “pegadinha”, uma
brincadeira. A mãe, descontrolada, chegou a pegar uma faca nas mãos. Eis
o que chamou a minha atenção, e pelo visto só a minha: enquanto todos
comentavam sobre o absurdo da reação preconceituosa dessa mãe, eu
pensava em que tipo de gente resolve expor a própria mãe dessa forma.
Que família desestruturada pode querer tornar público um momento
reservado desses?
O simples fato de eu ter sido
aparentemente o único a pensar nisso demonstra como vivemos mesmo na era
da “transparência”, e como ela realmente pode ter efeitos nefastos. A
tese de Han é que o capitalismo neoliberal foi o responsável por
transformar tudo em commodities, em mercadorias para exposição. Não
creio ser necessário aceitar totalmente sua premissa para concordar que
os excessos dessa sociedade moderna são perigosos.
Informação virou commodity hoje em dia,
mas isso não significa uma geração mais sábia. Sabedoria demanda
reflexão, algo que está em falta. Para Han, sempre que a informação se
torna fácil de obter, o sistema social muda da confiança para o
controle. Isso não é saudável. Vivemos um verdadeiro culto da
transparência, só que o próprio planejamento de longo prazo se torna
inviável em meio à temporalidade que essa transparência “plena” impõe.
Tudo é para consumo imediato.
Nesse mundo transparente, tudo é voltado
para a produtividade e a aceleração. Os indivíduos se oferecem
voluntariamente para esse espetáculo, expondo-se mais e mais num
panóptico digital que representa uma forma de prisão, de controle. Se em
doses saudáveis a transparência é uma vantagem, quando vira ideologia
totalitária ela pode levar ao terror.
Uma característica comum nesse mundo
moderno é seu lado superficial, em que tudo precisa ser “positivo”. As
“curtidas” cada vez mais rápidas substituem qualquer reflexão mais
profunda, que demanda tempo e afastamento, e também o aspecto crítico da
vida em sociedade, ou seja, as reações negativas que nos ajudam a amadurecer. A complexidade demanda uma comunicação mais lenta, enquanto a superficialidade é veloz.
A alteridade se transforma num fardo, e a
resistência ao Outro fica cada vez maior. Tudo aquilo que perturba ou
atrasa a comunicação do Mesmo é deixado de lado, ignorado, e o resultado
é uma uniformização maior. A ditadura do politicamente correto ilustra
bem esse fenômeno.
Máquinas podem ser totalmente
transparentes; não seres humanos. Ao menos não humanos livres. A
liberdade pressupõe um grau razoável de opacidade, de privacidade,
até mesmo de máscaras no baile da sociedade, no teatro da vida. O amor,
por exemplo, exige o desconhecido, o obscuro, o inalcançável e
inacessível. Amor sem absolutamente nada a esconder é pornografia.
No mundo das “curtidas”, o valor de
culto é substituído pelo valor de exibição. A compulsão por expor, que
faz com que tudo se torne visível, faz também com que a “aura” – a
“aparência de distância” – desapareça completamente. Nessa sociedade,
todo sujeito é também seu próprio objeto de propaganda. Tudo deve ser
desnudado, exposto, colocado na vitrine, num show.
Do erotismo acabamos na pornografia. O
segredo dá lugar ao obsceno. O sagrado, ao profano. A beleza precisa de
segredo. O pudor é gerado pela vergonha da nudez, da exposição
excessiva. No mundo moderno, isso está desaparecendo. Não pode haver
erotismo na transparência plena; é simples pornografia. As intimidades
são expostas, vendidas no mercado, consumidas. As pessoas buscam a
“transparência” expondo voluntariamente suas intimidades perante o
público. Mas a sociabilidade exige certa distância, até mesmo entre
amigos e amantes.
Aqui, como alhures, podemos encontrar Rousseau como o pai do totalitarismo moderno. O filósofo escreveu em suas Confissões que
ninguém mais foi tão transparente como ele, que seu coração era
cristalino, não escondia nada do que se passava dentro dele. Rousseau
clamava por essa abertura do coração, onde todos os pensamentos e
sentimentos puros fossem compartilhados, cada um mostrando ao mundo como
realmente é.
Claro que o “filósofo da vaidade” foi um
hipócrita nisso também, como em tudo mais. Suas “confissões” eram
falsas, seletivas, deturpadas, como aquelas que vemos no Facebook, das
famílias sempre “felizes”, dos sorrisos, dos bons sentimentos. A
transparência real já seria terrível; aquela manipulada e falsa consegue
ser ainda pior.
Rousseau pregava uma ditadura do
coração, pois acreditava no “bom selvagem”. Mas seu modelo de
“hipertransparência” leva apenas a uma tirania. Ele mesmo assumia que
preferia cidades pequenas, pois cada um poderia ser o censor do outro, e
a polícia de todos, e era contra os teatros, a arte de enganar e
simular. Para ele, o romano que desejava construir uma casa
transparente, onde tudo que se passava dentro dela pudesse ser
conhecido, era o exemplo a ser seguido.
Estamos chegando perto desse “paraíso”,
ou, para muitos outros, um verdadeiro inferno. No panóptico digital de
hoje temos um exibicionismo crescente, um voyeurismo doentio, e um
controle asfixiante de todos por todos. E pior: chamam a isso de
liberdade! Sem direito ou desejo por privacidade alguma. Sem mistério,
sem distanciamento saudável, sem reservas. Ninguém mais quer ser
contido; é preciso ser “autêntico”, “genuíno”, e dar vazão a todos os
apetites sem freios, e ainda por cima expor isso ao mundo!
Confiança, para existir, pressupõe
desconhecimento. Não confia quem sabe tudo do outro, quem contrata um
detetive particular. Isso é controle. Quanto menos confiança houver,
maior a necessidade de controle. Vivemos na era da desconfiança, do
cinismo, e como efeito disso, temos mais controles. Nada pode ficar de
fora. A demanda estridente por mais transparência geral pode ser o
sintoma do declínio de valores morais como a honestidade, pilar da
confiança. Estamos cada vez mais expostos, e confiamos cada vez menos
nos outros, em meio a toda essa transparência.
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Texto de Rodrigo Constantino:
Fonte: http://rodrigoconstantino.com/resenhas/sociedade-da-transparencia-como-excessiva-exposicao-voluntaria-repres 14/11/2016
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