José de Souza Martins*
No Brasil, condenamos com paixão a violência contra mulheres, mas não reconhecemos nosso imaginário profundamente discriminatório, diz sociólogo.
A comoção que provocaram em vários países o estupro e o
assassinato de uma adolescente de 16 anos, na Argentina, e as reações
decorrentes pedem uma reflexão sobre a complexidade social da descabida
violência contra a mulher, que insiste e persiste. Mas pedem, também,
uma ampliação dos marcos de referência das interpretações para essas
manifestações de barbárie. Como pedem um exame crítico do modo como a
questão tem sido tratada em países como o Brasil. Nossa compreensão do
assunto é uma compreensão redutiva. Estamos em boa parte limitados ao
âmbito do jurídico e policial.
A sociedade não tem sido indiferente a essas ocorrências.
Sobretudo as mulheres de classe média têm lutado com afinco e coragem
pela adoção de medidas legais de proteção à mulher e pela observância do
que as leis determinam. Mas não se pode deixar de considerar, ainda que
com apreensão, a reação espontânea de setores populares na repressão
aos autores de violência contra a mulher. No Brasil, alguns dos
linchamentos mais violentos das últimas décadas foram motivados por uma
radical intolerância à agressão contra a mulher, especialmente à
violência sexual.
Há, no entanto, um abismo separando as duas modalidades de
reação social. Nelas, há duas e opostas concepções de mulher e dos
direitos da mulher. De um lado, a mulher vista como cidadã e pessoa
juridicamente igual ao homem, a mulher da concepção moderna da condição
feminina. De outro lado, a mulher como sujeito da sociedade patriarcal,
como potencial mãe de família, como personagem do caráter sagrado dos
vínculos de sangue entre homem e mulher. Só na superfície essas duas
concepções de mulher se encontram e essas duas concepções opostas de
defesa da mulher convergem. No mais, porém, dizem respeito a dois mundos
separados, o de um hoje tardio e o de um passado persistente.
Essa polarização reduz a eficácia das duas opostas orientações na
defesa dos direitos da mulher e no combate à violência que a alcança.
Porque falta, na sociedade brasileira, a ação que traduza essas reações
na formação de uma cultura de respeito pela mulher e também de ação
autodefensiva das próprias mulheres. Essa não é uma questão simples nem é
questão que se resolva com discursos, embora os discursos também sejam
necessários.
Tudo “ia bem” enquanto a mulher se mantinha nos limites de uma
condição social que dela fazia vítima submissa e silenciosa de uma
variante pouco considerada da escravidão, fosse ela negra, branca ou
mameluca. A mulher servil persistiu mesmo depois da abolição da
escravatura sem que se debatesse com honestidade o fato de que na
história social brasileira a escravidão não se limitou ao negro nem foi
exclusivamente escravidão fundada em raça e cor. Uma certa hipocrisia
crônica, sem distinção de raça, cor, religião, idade e gênero, dissimula
o fato de que mais do que racistas somos preconceituosos. O núcleo
cultural da violência contra a mulher é o mesmo que anima outras
modalidades de violência, como a violência contra o homem, contra o
pobre, contra a criança, contra os jovens, contra os diferentes.
No Brasil, somos apaixonados nas manifestações contra racismo,
contra a violência de gênero ou em relação a homossexuais, mas não temos
a honestidade coletiva de reconhecer que somos radicalmente contra o
direito à diferença e não colocamos sob ângulo crítico o nosso
imaginário discriminante. Sem nos darmos conta de que a igualdade entre
nós é adulta, masculina e branca. Isso é, desigual. É esse ser fictício e
iníquo que serve de parâmetro no nosso modo de reconhecer os direitos
dos diferentes. Aceitamos os diferentes apenas naquilo em que são iguais
a nós.
Nosso imaginário contraria o que somos de fato. Durante séculos
matamos os índios e, depois, os louvamos na música, na literatura, na
toponímia. Fenômeno curioso é o de mulheres que sofreram violência
doméstica e morreram e foram depois canonizadas pelas muitas pessoas que
visitam seus túmulos. Ou meninas vitimadas e mortas pela violência
sexual que se tornam objeto da devoção e da piedade popular.
Não obstante os mais de 100 anos de discursos sobre a igualdade
jurídica das pessoas no Brasil, padres e pastores, nas cerimônias de
casamento, continuam invocando versículos do capítulo 5 da Epístola de
São Paulo aos Efésios, que proclamam a desigualdade de homem e mulher: o
marido deve amar sua mulher; mas a mulher deve reverenciar o marido e
sujeitar-se a ele, “porque o marido é a cabeça da mulher”. Com o
princípio da desigualdade da mulher e sua sujeição ao homem estabelecido
como dogma religioso fica difícil estranhar a violência doméstica
contra a mulher e o componente de menosprezo e deboche que há nos
frequentes estupros. Tudo tem dois lados. O mundo da violência não é um
mundo de um lado só. Isso não dá razão a quem comete violência motivada
por preconceito. Apenas propõe que o tema da violência contra a pessoa
seja colocado no âmbito da complicada trama que a explica para então
encontrar-se os meios eficazes de combatê-la.
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* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é sociólogo e membro da Academia Paulista de Letras e autor, entre outros livros, de Uma Arqueologia da Memória Social (Ateliê).
Foto: J. DURAN MACHFEE | PAGOS
Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 30 de outubro de 2016 – Pág. E2 – Internet: clique aqui.
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