terça-feira, 1 de novembro de 2016

Respeito de fachada: condenamos a violência contra mulheres, mas não notamos nosso preconceito

 José de Souza Martins*

 

No Brasil, condenamos com paixão a violência contra mulheres, mas não reconhecemos nosso imaginário profundamente discriminatório, diz sociólogo.

A comoção que provocaram em vários países o estupro e o assassinato de uma adolescente de 16 anos, na Argentina, e as reações decorrentes pedem uma reflexão sobre a complexidade social da descabida violência contra a mulher, que insiste e persiste. Mas pedem, também, uma ampliação dos marcos de referência das interpretações para essas manifestações de barbárie. Como pedem um exame crítico do modo como a questão tem sido tratada em países como o Brasil. Nossa compreensão do assunto é uma compreensão redutiva. Estamos em boa parte limitados ao âmbito do jurídico e policial. 

A sociedade não tem sido indiferente a essas ocorrências. Sobretudo as mulheres de classe média têm lutado com afinco e coragem pela adoção de medidas legais de proteção à mulher e pela observância do que as leis determinam. Mas não se pode deixar de considerar, ainda que com apreensão, a reação espontânea de setores populares na repressão aos autores de violência contra a mulher. No Brasil, alguns dos linchamentos mais violentos das últimas décadas foram motivados por uma radical intolerância à agressão contra a mulher, especialmente à violência sexual. 

Há, no entanto, um abismo separando as duas modalidades de reação social. Nelas, há duas e opostas concepções de mulher e dos direitos da mulher. De um lado, a mulher vista como cidadã e pessoa juridicamente igual ao homem, a mulher da concepção moderna da condição feminina. De outro lado, a mulher como sujeito da sociedade patriarcal, como potencial mãe de família, como personagem do caráter sagrado dos vínculos de sangue entre homem e mulher. Só na superfície essas duas concepções de mulher se encontram e essas duas concepções opostas de defesa da mulher convergem. No mais, porém, dizem respeito a dois mundos separados, o de um hoje tardio e o de um passado persistente. 

Essa polarização reduz a eficácia das duas opostas orientações na defesa dos direitos da mulher e no combate à violência que a alcança. Porque falta, na sociedade brasileira, a ação que traduza essas reações na formação de uma cultura de respeito pela mulher e também de ação autodefensiva das próprias mulheres. Essa não é uma questão simples nem é questão que se resolva com discursos, embora os discursos também sejam necessários. 

Tudo “ia bem” enquanto a mulher se mantinha nos limites de uma condição social que dela fazia vítima submissa e silenciosa de uma variante pouco considerada da escravidão, fosse ela negra, branca ou mameluca. A mulher servil persistiu mesmo depois da abolição da escravatura sem que se debatesse com honestidade o fato de que na história social brasileira a escravidão não se limitou ao negro nem foi exclusivamente escravidão fundada em raça e cor. Uma certa hipocrisia crônica, sem distinção de raça, cor, religião, idade e gênero, dissimula o fato de que mais do que racistas somos preconceituosos. O núcleo cultural da violência contra a mulher é o mesmo que anima outras modalidades de violência, como a violência contra o homem, contra o pobre, contra a criança, contra os jovens, contra os diferentes. 

No Brasil, somos apaixonados nas manifestações contra racismo, contra a violência de gênero ou em relação a homossexuais, mas não temos a honestidade coletiva de reconhecer que somos radicalmente contra o direito à diferença e não colocamos sob ângulo crítico o nosso imaginário discriminante. Sem nos darmos conta de que a igualdade entre nós é adulta, masculina e branca. Isso é, desigual. É esse ser fictício e iníquo que serve de parâmetro no nosso modo de reconhecer os direitos dos diferentes. Aceitamos os diferentes apenas naquilo em que são iguais a nós. 

Nosso imaginário contraria o que somos de fato. Durante séculos matamos os índios e, depois, os louvamos na música, na literatura, na toponímia. Fenômeno curioso é o de mulheres que sofreram violência doméstica e morreram e foram depois canonizadas pelas muitas pessoas que visitam seus túmulos. Ou meninas vitimadas e mortas pela violência sexual que se tornam objeto da devoção e da piedade popular. 

Não obstante os mais de 100 anos de discursos sobre a igualdade jurídica das pessoas no Brasil, padres e pastores, nas cerimônias de casamento, continuam invocando versículos do capítulo 5 da Epístola de São Paulo aos Efésios, que proclamam a desigualdade de homem e mulher: o marido deve amar sua mulher; mas a mulher deve reverenciar o marido e sujeitar-se a ele, “porque o marido é a cabeça da mulher”. Com o princípio da desigualdade da mulher e sua sujeição ao homem estabelecido como dogma religioso fica difícil estranhar a violência doméstica contra a mulher e o componente de menosprezo e deboche que há nos frequentes estupros. Tudo tem dois lados. O mundo da violência não é um mundo de um lado só. Isso não dá razão a quem comete violência motivada por preconceito. Apenas propõe que o tema da violência contra a pessoa seja colocado no âmbito da complicada trama que a explica para então encontrar-se os meios eficazes de combatê-la.
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JOSÉ DE SOUZA MARTINS é sociólogo e membro da Academia Paulista de Letras e autor, entre outros livros, de Uma Arqueologia da Memória Social (Ateliê).
 Foto: J. DURAN MACHFEE | PAGOS
Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 30 de outubro de 2016 – Pág. E2 – Internet: clique aqui.

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