Eduardo Giannetti*
A vida dos povos, não menos que a dos indivíduos, é vivida em larga
medida na imaginação. Como observou o filósofo e economista italiano
Vilfredo Pareto, "existe um ritmo do sentimento que podemos observar na
ética, na religião e na política como ondas que se assemelham ao ciclo
de negócios". A alta volatilidade da imaginação brasileira na
representação do seu próprio futuro não fica em nada a dever à
volatilidade dos nossos indicadores econômicos e financeiros.
Depois de um longo período de maré baixa e descrença, o Brasil viveu na
primeira década do novo milênio uma fase ascendente de autoconfiança e
otimismo em relação ao próprio futuro. Não faz muito tempo, o gigante
adormecido parecia finalmente haver despertado para o seu destino de
grandeza e despontava ao olhar externo e perante si mesmo como
verdadeira estrela do mundo emergente. Como nos "anos dourados" da era
JK no final dos anos 50, tudo parecia conspirar a favor do Brasil.
A economia crescia 4% ao ano em média entre 2003 e 2010; milhões de
trabalhadores passaram a ter emprego formal e acesso a mercados dos
quais se achavam excluídos; o país surfava a "marolinha" da crise global
de 2008-9 sem maiores abalos; conquistara o "grau de investimento" e o
direito de sediar a Copa e a Olimpíada e, para coroar, a descoberta do
pré-sal - "bilhete premiado" - prometia ser o passaporte da prosperidade
sem dor. Vivíamos "um momento mágico na história desse país", como não
cansava de repetir o presidente Lula em seus discursos ao término do
segundo mandato, sob entusiásticos aplausos. E ai de quem ousasse
aventar na época a menor dúvida sobre as bases reais para tanta euforia e
autocomplacência!
Depois do porre, a ressaca. Em curto intervalo, o "momento mágico"
redundou no seu oposto: o momento trágico. O "espetáculo do crescimento"
deu lugar à pior recessão da nossa história, com queda de quase 10% no
PIB per capita em apenas três anos; a inclusão social deu marcha a ré e
reverteu-se em 12 milhões de desempregados (sem contar os 6 milhões de
desocupados que desistiram de buscar emprego) e 60 milhões de pessoas
inadimplentes (dívidas em atraso por mais de dois meses); a forte
expansão do crédito subsidiado pelo BNDES associou-se à queda do
investimento total no país por dez trimestres consecutivos; um governo
de perfil estatizante conseguiu arruinar as nossas principais empresas
estatais, Petrobras e Eletrobras, e o Plano de Aceleração do Crescimento
legou um saldo de mais de 3 mil obras públicas paralisadas somente no
âmbito do governo federal. O pileque de ilusão terminou em lágrimas.
• Em curto intervalo, o "momento
mágico" redundou no momento trágico. O "espetáculo do crescimento" deu
lugar à pior recessão da nossa história
O que deu errado? Em "Anatomia de um Desastre", os jornalistas Claudia
Safatle (diretora adjunta de Redação do Valor), João Borges (editor e
comentarista de economia da GloboNews) e Ribamar Oliveira (repórter
especial do Valor) juntam esforços para contar a história e examinar as
causas da radical reversão de desempenho e expectativas que marcou a
ascensão e a queda do lulopetismo no poder. Organizado em capítulos
temáticos, o livro oferece um relato jornalístico detalhado e fidedigno -
ainda que por vezes sinuoso na cronologia dos fatos e na condução do
fio narrativo - da espantosa sucessão de equívocos e desmandos que
culminaram no pesadelo do qual estamos ainda tentando despertar. Como
alerta Armínio Fraga no prefácio da obra, "se o texto que vem a seguir
em algum momento lhe parecer ficção, a culpa é dos fatos, não dos
autores".
Como os três atos de um drama trágico e farsesco, a política econômica
dos governos petistas pode ser periodizada em fases bem definidas:
abertura majestosa, interregno e "grand-guignol". É difícil, no entanto,
determinar se o desatino e a desonestidade da era petista foram
surgindo e se infiltrando aos poucos na construção do desastre, ou se o
tenebroso desfecho já estava latente desde a origem no embrião do
projeto, não obstante o promissor começo, como a fruta podre dentro da
casca.
O início não poderia ser mais auspicioso. A transição para o primeiro
mandato de Lula foi conduzida de forma serena e cooperativa, naquele que
é talvez o mais belo momento da nossa democracia desde o fim do regime
militar. A política econômica da equipe liderada pelo ministro Antonio
Palocci não só debelou a crise de confiança gerada pela incerteza
pré-eleitoral, graças a um compromisso efetivo com o tripé macro adotado
desde o segundo mandato de FHC, como implementou uma bem desenhada
agenda de reformas microeconômicas, visando não substituir ou interferir
com mão pesada nos diferentes mercados, mas aperfeiçoar o seu
funcionamento, reduzir custos de transação e aumentar a segurança
jurídica dos contratos.
É digno de registro, contudo, como já nessa fase despontam os primeiros
sinais do que viria a ser a tônica do lulopetismo nos atos seguintes. O
episódio emblemático, como relatam com riqueza de detalhes Claudia
Safatle, João Borges e Ribamar Oliveira, esmiuçando os bastidores e as
divisões internas do primeiro governo Lula, teve como protagonista a
ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, ao desautorizar de forma
truculenta, como "rudimentar", a proposta da Fazenda de zerar o déficit
nominal do setor público num prazo de cinco a dez anos. "Despesa é
vida", sentenciou Dilma, sem suspeitar que a irresponsabilidade e o
rudimentarismo fiscal da "contabilidade criativa" e das "pedaladas"
sentenciariam a sua morte como futura presidente.
O segundo ato do drama começa com o escândalo do mensalão, que obrigou
Lula a ceder nacos do governo e aliar-se ao que há de mais sinistro na
política brasileira para sobreviver no poder, e com a queda do ministro
Palocci e sua equipe, que preparou o terreno para a sensível piora na
qualidade da política econômica no segundo mandato. Os efeitos dessas
mudanças, porém, não se fizeram sentir com maior virulência nesse
interregno: a credibilidade macro adquirida nos anos iniciais, o aumento
do crédito e da produtividade viabilizados pelas reformas
microeconômicas e o vento a favor da valorização das commodities
permitiram que a economia mantivesse por certo tempo o embalo e
conseguisse assimilar, com a ajuda de políticas anticíclicas para as
quais havia ainda algum espaço na época, o impacto da crise global.
Com a euforia do "crescimento asiático" de 2010, a vitória de Dilma nas
urnas e o clima de "derrocada final do capitalismo" gerado pela crise
global - interpretado pela equipe de Mantega como carta-branca para a
heterodoxia - estava armado o cenário do espetáculo de barbeiragens e
bizarrices, horrores e gambiarras que passou a dominar a cena no
terceiro e último ato do drama.
O desastre resultou da combinação de dois vetores: do lado macro, a
desmontagem sistemática das três pernas do tripé - austeridade fiscal,
inflação no centro da meta e câmbio flutuante - e, do lado micro, a
forte recaída dirigista, com o microgerenciamento e a tutela do Estado
sobre a atividade econômica, alterando regras, preços, incentivos e
contratos ao sabor de pressões e conveniências circunstanciais. A esses
dois vetores veio se juntar um fator agravante: a piora do cenário
externo e a deterioração dos termos de troca. O comparativo
internacional, contudo, é eloquente. Enquanto no acumulado dos anos
Dilma o mundo cresceu 18% e os emergentes (fora o Brasil) 28%, o Brasil
cresceu 5,3%. "É só quando a maré baixa", como alerta Warren Buffett,
"que nós descobrimos quem estava nadando nu".
• A reversão de expectativas da era
petista tem parentesco com o "post festum" da era JK e a "década
perdida"
"pós-milagre" do regime militar
O mérito de "Anatomia de um Desastre" é a reconstrução detalhada do
contexto e dos debates internos que marcaram as principais escolhas de
política econômica e social nos 13 anos, quatro meses e 12 dias de
governo petista. Amparado em amplo e acurado trabalho de investigação e
entrevistas, não raro com fontes diretamente envolvidas, mas que
preferiram se manter anônimas, a narrativa franqueia o acesso aos
bastidores do processo decisório e não se exime de pôr os pingos nos is e
dar nome aos bois: quem disse o quê e quando; quais eram as propostas e
posições defendidas; quem deu a última palavra. Exemplos notáveis são
os capítulos "Fábrica de Dividendos" e "Muito Além das Pedaladas", em
que os autores destrincham a pletora de artimanhas e truques contábeis
por meio das quais o governo Dilma - Arno Augustin à frente - se dedicou
à pajelança do ilusionismo fiscal. Fosse mera ficção, soaria
inverossímil.
Por outro lado, creio que o livro poderia ter se beneficiado de um
cuidado maior com a construção de um fio narrativo que evitasse as
inúmeras idas e vindas do texto a pontos e estatísticas já tratados, por
exemplo em temas como desonerações e política monetária. Talvez por
resultar em boa medida da reunião de artigos jornalísticos escritos no
calor da hora e agora revisados para publicação, o conjunto da obra
padece de certo artificialismo e falta de unidade. É de se lamentar
também a falta de um índice de nomes e assuntos, imprescindível em um
livro como esse, e que seguramente valorizaria o trabalho como
instrumento e fonte de pesquisa.
A brutal reversão de expectativas vivida pelo Brasil durante a era
petista guarda parentesco com episódios análogos em nossa história
recente: o amargo "post festum" da era JK e a "década perdida" após o
fim do "milagre" do regime militar. O que há em comum nos três casos é a
tentativa de forçar a marcha do crescimento a qualquer preço por meio
de atalhos e expedientes - imposto inflacionário, poupança externa e
endividamento público, respectivamente - que permitissem contornar a
restrição imposta pela nossa baixa poupança doméstica. E o resultado,
nos três casos, foi o mesmo: espasmos eufóricos, porém efêmeros, de
crescimento seguidos por anos de paralisia e prostração.
Contas públicas equilibradas, inflação na meta e contas externas
ajustadas deveriam ser tidos e tratados não como opções ideológicas,
direita versus esquerda, mas como valores suprapartidários e patrimônio
de todos os brasileiros. Teremos afinal aprendido a dura lição? Ou
estamos condenados ao que Mário Henrique Simonsen chamou, em outro
contexto, de nossa irrefreável vocação para o princípio da
contraindução, segundo o qual "uma experiência que dá errado inúmeras
vezes deve ser repetida até que dê certo"?
"Anatomia de um Desastre"
De Claudia Safatle, João Borges e Ribamar Oliveira (Porfolio-Penguin, 328 págs., R$ 44,90)
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* Eduardo Giannetti, economista,
cientista social e autor, entre outros livros, de "Trópicos Utópicos"
(Companhia das Letras, 2016)
Fonte: Jornal Valor Econômico Impresso - Cad. EU&Fim de Semana, 18 de novembro de 2016, pg. 4 a 6.
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