domingo, 13 de novembro de 2016

Valter Hugo Mãe: “A literatura tem que ser consciente, não pode ser alienação”

Otávio Fortes / Divulgação / CP
“A cabeça monstruosa do bicho lambia-lhe as feridas de modo afectuoso. O artesão, despertando, percebeu como o predador amigado lhe procurava sarar as feridas, para que visse, obviamente. Era para que visse.” Esse é apenas um dos versos de “Homens Imprudentemente Poéticos”, sétimo romance do português Valter Hugo Mãe, que é ambientado no Japão. Mais do que uma inimizade entre um artesão e um oleiro,  o livro diz sobre incompletude, sobrevivência, amor e morte. Em passagem por Porto Alegre para o lançamento da obra durante a 62ª Feira do Livro, o autor conversou com o Correio do Povo sobre sua tentativa de transcender a pessoa que é, as descobertas de novos cenários, o isolamento necessário e imposto e a língua portuguesa. Tudo isso a partir de uma literatura consciente.

Correio do Povo:  Sei que estiveste na floresta dos suicidas no Japão, próxima ao Monte Fuji. Foi a partir desta visita que surgiu a ideia do livro ou a viagem já estava vinculada a este projeto?
Valter Hugo Mãe: Já aconteceu dentro do projeto. Na verdade, a primeira vez em que estive no Japão escrevia “A Desuma-nização”, que acontece na Islândia. E, nessa altura, eu já suspeitava que o Japão pudesse ser o cenário para um livro seguinte. Eu não estaria certo de ser imediatamente o livro seguinte, mas a ideia era clara de já ficar recolhendo algumas impressões, colecionando palavras que favorecessem o aparecimento de um livro. Visitei a floresta dos suicidas na segunda viagem ao Japão, quando já estava escrevendo e o livro já era bem concreto na minha cabeça.

CP:  Tanto “A Desuma-nização” quanto “Homens Imprudentemente Poéticos” se passam em ilhas. Existe uma ideia de isolamento relacionado à escolha dos dois países?
Valter Hugo Mãe: Creio que em todos os meus livros fui trabalhando um certo conceito de solidão e de impossibilidade de comunicação, como se a comunicação ou o entendimento absoluto fosse utópico, impraticável. E a ilha, como espaço físico, tem uma simbologia que corresponde muito a esta questão que eu procuro trabalhar. Sei que eu não vou solucionar o isolamento de uma ilha, porque isso seria atacar a sua definição, mas, ao mesmo tempo, é uma analogia que faço com o sujeito em si mesmo. O que quero sondar com a minha obra, é exatamente a ideia acerca das ilhas, que cada um de nós acaba por ser, por definição, isolado.

CP:  O suicídio, um dos temas do livro, é um assunto tratado por nós, ocidentais e de origem católica, com ressalvas. Como foi se despir destes preceitos para escrever com olhar oriental?
Valter Hugo Mãe: A todo o momento eu precisava desconfiar das frases e de cada palavra, o que gera um desconforto, um perigo para mim, enquanto autor, que redobra os sentidos. É como se eu fosse um autor estreando, e isso parece criar aquela insegurança ou instabilidade de quando começamos e ainda não temos uma fórmula, uma conquista à qual possamos socorrer. Mas, ao mesmo tempo, oferece essa coisa aliciante de nos sentirmos a desbravar um território, e, por isso, a gente tem a sensação de que existe uma oportunidade para fazer uma outra vez, e uma outra coisa. O interessante de escrever sobre a Islândia ou sobre o Japão usando personagens apenas islandeses e japoneses é essa proposta de nos colocarmos como novos autores de um determinado lugar, e não como o mesmo autor de sempre entorno das mesmas referências.

CP:  O distanciamento do cenário dificulta a escrita pela falta de convívio naquele ambiente ou pelo contrário, permite uma melhor organização daquele mundo narrativo?
Valter Hugo Mãe: A distância oferece uma espécie de cara de pau, em que a gente sente que pode chegar e colher a observação assim, do assombro, que pode ser muito certa porque o assombrado é o indivíduo que vê, eventualmente, aquilo que se tornou demasiado normal para quem for local. Mas, é claro, a maravilha de uma coisa assim tem a ver com podermos escrever de encontro à descoberta e não exatamente presumindo as coisas. Claro que os meus livros serão a minha observação, terão o meu maneirismo, mas a grande folia da escrita tem muito que ver com o livro não ser um processo de obediência a mim, mas um processo de transgressão em relação a mim. E é isso que quero, transcender a pessoa que sou, transcender aquilo que sei. Por isso, a possibilidade de lidar com um universo que não é o meu é imediatamente um convite para que saiba o que não sei e, eventualmente, para que mude. Talvez eu queira com a literatura melhorar e propor aos outros que melhorem também.

CP: Um processo catártico?
Valter Hugo Mãe: É, e de conscien-tização. Eu acho que a literatura tem que ser consciente, não pode ser alienação. A minha natureza solicita um compromisso com uma ética que verdadeiramente vive encantada com a possibilidade de encontrar uma humanidade melhor.

CP: E como se dá o processo de escrita dos teus livros? Sei que pra este tu estiveste nos Estados Unidos para uma residência literária. Ele foi inteiramente escrito lá?
Valter Hugo Mãe: Eu fico tomando notas, compro uns cadernos e vou anotando coisas, vou colecionando, como eu dizia, impressões e palavras que me parecem justas, adequadas para um determinado livro. E, depois, há um instante em que a oficina verdadeiramente começa, em que eu viro uma espécie de funcionário do livro, obedecendo e tentando juntar uma solução para cada frase, para cada ideia, tentando encontrar a ideia para algo que é muito intuitivo, que vem sobretudo de um pressentimento. Então, é cada vez mais importante para mim criar uma clausura. Subitamente estou num centro observado, e o escritor é por natureza alguém que deve observar.

CP:  Tu moras no Porto?
Valter Hugo Mãe: Eu moro perto do Porto, numa cidade chamada Vila do Conde. Este livro, inclusive, aconteceu muito ali, no lugar de sempre, onde escrevi praticamente toda a minha poesia e os meus romances. Mas aceitei passar dois meses em Boston, convencido de que seria excelente um outono isolado em uma cidade fria e acadêmica, mas a verdade é que lá escrevi muito pouco. Boston tem uma oferta cultural, sobretudo no que diz respeito à música, seja erudita ou clássica. Diariamente sempre tinha dois, três, dez recitais gratuitos. Então, não deu para ser japonês em Boston (risos). É verdade que juntei algumas frases e alguns capítulos que depois acabaram por entrar no livro definitivamente. Mas fiquei convencido de que uma residência literária precisa ser num lugar que aborreça muito, para que o autor ache interessante a fantasia.

CP: Apesar de localizado, o romance é universal. A partir de que referências tu crias as personagens?
Valter Hugo Mãe: Eu acho que vou usando coisas de todo o lugar que passo. As vezes nos meus livros, mesmo islandeses e japoneses têm alguma coisa qualquer que pode vir do Brasil, da Colômbia ou da França, porque são impressões sobre as pessoas. Eu acho que escrevo de uma forma inclusiva, ou seja, quero incluir as pessoas, abarcar aquilo que as pessoas podem ser, por isso há esse feito da universalidade ou de identificação. A minha forma de escrita tem muito a ver com essa aspiração de um entendimento efetivamente de quem é o outro.

CP: Este, me pareceu, o teu romance com maior lirismo, como se fosse poesia escrita em prosa. Seria por isso que o texto foi reescrito tantas vezes?
Valter Hugo Mãe: Foram 17 versões. Eu quero, cada vez mais, que o livro exista quase como um discurso de intensidade, densidade. É como se fosse uma escrita diamante, em que se você decompuser um diamante, todas as partes vão manter a propriedade pura e intensa do objeto total. A grande utopia é que o texto seja todo ele rigoroso no sentido desse deslumbre poético, que se você tiver que desmembrar o livro, ele mantenha o seu esplendor. É um desafio e quase uma obsessão, uma doença de arte.

CP: A decisão por abolir o “não” da narrativa também deve ter dificultado.
Valter HM: Tudo para fazer da minha vida um inferno (risos).
CP: Mas por que suprimir o “não”, mas manter o “nunca”?
Valter Hugo Mãe: Eu precisava fazer uma coisa que fosse simbólica. Não queria que fosse deturpadora ou um empecilho para que a narrativa aconteça e para que as coisas se tornem evidentes. E, ao mesmo tempo, eu queria que fosse alguma coisa que não anunciasse a sua falta ao leitor, ou seja, que o leitor pudesse atravessar o livro sem se dar conta. Foi muito interessante entender que o livro em Portugal [onde a obra foi lançada em outubro] vendeu milhares de exemplares e foi muito referenciado pelos jornais e, ao final do mês, apenas um jornalista descobriu que não havia a palavra “não”. O que significa que, por natureza, as pessoas leram o livro sem se dar conta, sem sentir essa necessidade. No fundo, significa que é possível entrar numa experiência de alteridade distinta da nossa sem atrito, sem resistirmos. Subitamente estamos num universo onde as pessoas não dizem “não” umas às outras e se negam com uma cordialidade incrível.

CP: Existe um pouco da melancolia portuguesa na construção das tuas personagens?
Valter Hugo Mãe: Sou português, então a minha melancolia talvez seja um pouco portuguesa, embora ela tenha sido sublinhada pelos filmes do Bergman ou pelo suspense do Hitchcock. Mas há uma realidade portuguesa que é muito de confinamento também. Se tu pensares, Portugal tem apenas um vizinho físico, que é a Espanha, historicamente, o inimigo. Representa o corpo do qual nos excetuamos. Isso faz com que a Espanha não seja caminho. O único caminho é o mar e por isso Portugal é uma ilha. De algum modo, o português vive o complexo do ilhéu, com a mesma ideia de confinamento.

CP:  Mas com um ímpeto de descobridor?
Valter Hugo Mãe: Como todas as ilhas têm, com a necessidade de sair, e os portugueses saem com facilidade. São, talvez, o povo que mais rapidamente se adapta, mas sem perder seu referencial. Isso tem a ver com uma capacidade de encontrar o outro porque há uma incompletude, há uma sensação de solidão.

CP: Tu nasceste em Angola, quando ainda era colônia portuguesa. Ficou alguma lembrança ou referência africana que leves para a literatura?
Valter Hugo Mãe: Eu saí com dois anos e de memória não trouxe nada, mas, paulatinamente, vou conquistando a consciência de ter nascido em Angola e sobretudo porque foi gerado um preconceito grande em relação às pessoas que regressaram de África. Sentia a necessidade de um certo confronto com a questão, então exigi sempre um certo respeito pela angolanidade e por uma cultura negra que, não sendo a minha no sentido que não cresci numa cultura negra, eu a tomei como uma causa que poderia me dizer respeito. O que se passa hoje com meus livros é muito o despudor da linguagem dos autores que não são portugueses, mas que escrevem em português. As fórmulas, as praticidades dos meus livros, muitas vezes, começam com uma permissividade que tem a ver com autores angolanos, moçambicanos e brasileiros. Portugal acaba por ser uma ortodoxia da língua portuguesa, propendendo a fórmulas mais clássicas. E a língua portuguesa que chega de pontos como Brasil, Angola e Moçambique chega numa mutação mais acelerada. A gente sente que está a lidar com a mesma matéria prima, mas o imaginário é distinto.

CP: Essa distinção impede que falemos em uma literatura lusófona?
Valter Hugo Mãe: Não, a língua influi. Por exemplo, em Portugal a gente falava “bicha” para fila e, hoje, talvez só as pessoas mais velhas falem “vou entrar em uma bicha para…”, e isso é uma coisa que a gente recebeu do Brasil. É um modo de as palavras ganharem sentidos e uma movimentação que é implicada, ou seja, os países implicam-se uns nos outros. Há de fato uma comunicação entre os países de expressão portuguesa que pode lidar com os diferentes imaginários, mas ainda que tenhamos diferentes imaginários, a língua faz com que sejamos um conjunto, como se fôssemos uma coisa, não diria una, mas uma coisa lógica. Com lógica própria.

CP: Depois de 7 romances publicados, que é um número cabalístico, qual o ciclo que se abre? O de uma literatura negra?
Valter Hugo Mãe: Quem sabe. Na verdade, tenho a sensação de que estou no meio de um ciclo. Essa deambulação, este nomadismo é uma coisa que quero continuar, por isso não vou regressar à temática portuguesa tão cedo. Quero muito alocar a minha cabeça em outros pontos do mundo.

CP: Também te consideras imprudentemente poético?
Valter Hugo Mãe: Claro. Profundamente poético e em perigo todos os dias, sobretudo por causa das palavras, que são o meu ponto mais alto para a escalada, mas também a minha maior queda.
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Reportagem Por Juliana Lisboa 
Foto:  Otávio Fortes / Divulgação / CP
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/dialogos/2016/11/880/valter-hugo-mae-a-literatura-tem-que-ser-consciente-nao-pode-ser-alienacao/
Correio do Povo Impresso: Caderno de Sábado, 12 de novembro de 2016, pág. 4 e 5.
 

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