José de Souza Martins*
A esquerda não tem feito o esforço de
traduzir em teoria a realidade social do País, e prefere copiar
experiências que não são nossas, diz sociólogo
Em entrevista densa e de teor raro entre petistas, o
prefeito de São Paulo prevê que a polarização política no Brasil, nos
próximos anos, será entre direita e extrema direita. Convém considerar,
porém, que tem havido polarizações de um lado e de outro do cenário,
como componente crônico do processo político. Os próximos anos serão de
polarização também entre esquerda e extrema esquerda, esquerdas
procurando o rumo que perderam lá atrás, principalmente na época do
mensalão. Nos dois casos, porque a direita se fortalece e desglobaliza o
mundo e a esquerda se perde porque demoliu identidades profundas dos
que poderiam identificar-se com ela. Aqui, tudo virou conceitualmente
“trabalhador” e “companheiro”, mesmo que intimamente as pessoas tenham
outras identificações precedentes e decisivas, das quais não abrem mão.
Estamos vivendo num fim de era que pede diversa compreensão da
realidade, oposta à da reafirmação das categorias de polarização e
contraposição de pessoas, grupos e partidos.
Quando a categoria ideológica “trabalhador” divide famílias,
antepõe filhos e pais, separa amigos, contrapõe vizinhos e colegas de
trabalho, joga alunos contra professores, destrói a comunidade
necessária entre quem ensina e quem aprende, mina as solidariedades
tradicionais e constitutivas da nação, sobrepõe a raiva ao afeto, o
desacordo ao pacto necessário a que a sociedade exista independente das
diferenças que a civilizam e dos conflitos que a dinamizam. A questão é o
que vem antes e o que vem depois. Isso é hoje muito claro na
consciência nacional. Na última eleição, o povo mandou o recado aos
partidos políticos, todos, não só os de esquerda. Votar no PT deixou de
ser uma opção porque o PT colidiu com sentimentos profundos da
identidade do brasileiro. O PT e outros partidos de esquerda
comprometerem o sentimento de pátria no grave equívoco de suporem que
pátria é uma categoria secundária e de direita. Dificilmente haverá uma
frente de esquerda duradoura, quando muito meramente eleitoral, as
várias facções disputando hegemonia e empregos públicos favorecidos e
bem remunerados.
Tanto na direita quanto na esquerda, os únicos fatores de unidade
são hoje os meros rótulos de autodesignação: direita e esquerda. A
esquerda está virando um button. Além do rótulo, há pouco. Não é incomum
que membros e simpatizantes de partidos de esquerda tenham
comportamentos de direita e raciocínios de justificação completamente
direitistas. Nossas esquerdas não têm feito o esforço da tradução da
realidade social e histórica singular numa teoria de sua própria práxis.
Preferem copiar e imitar experiências que não são nossas nem delas. Já
chegamos a querer pensar como russos, cubanos, chineses ou albaneses.
Acabam fracassando porque o que conhecem é irreal e desconhecem o real.
O PT, o PSOL e outros partidos de esquerda jogam na vala comum do
esquecimento e da imprecisão conceitual a grande massa eleitoral de
centro, o centro da indiferença e do cansaço com os partidos, que,
afinal, foi quem decidiu a última eleição municipal. Os partidos são
viciados em reconhecer que só devem ser objeto de consideração no
protagonismo político quem tem vínculo partidário, como se fosse uma
religião, embora entre nós o comportamento eleitoral seja no geral
desvinculado de partidos políticos. Quase sempre um comportamento
eleitoral de ocasião.
A imprecisão identitária de esquerda e direita deixa um rastro de
dúvidas políticas curiosas, sobretudo depois que esquerdas, com sua
pedagogia ideológica bipolarizada, dividiram o País em duas humanidades
opostas, não só em relação a partidos, mas em relação a tudo. Mães de
direita podem ter filhos de esquerda? Filhos de mulatos são negros ou
são brancos? Ou são brasileiramente mestiços, como a maioria do povo
brasileiro? O PT é um partido de esquerda ou de direita? Em todos esses
casos, com a devida vênia a todas as excelências da República, a
resposta mais sensata talvez seja nem sim nem não, muito pelo contrário.
Aparentemente, ainda não há estudos consistentes sobre o nosso
senso comum e o modo como os brasileiros recepcionam e assimilam
doutrinas que nos vêm de fora: políticas ou religiosas. O fascismo teve
aqui características circenses. E, o que é pior, difundiu-se,
disfarçadamente, também em partidos de esquerda, no dogmatismo, na
intolerância, na satanização dos adversários. O marxismo se difundiu
muito mais com base no Manifesto Comunista, um panfleto. Um texto
distante da solidez teórica da obra de Marx e da obra de Engels. Não
obstante, há uma generalizada percepção dessas nossas insuficiências.
Quando eu era estudante da Faculdade de Filosofia da USP, há meio
século, período de crise do marxismo oficial, estudantes diziam que, no
Brasil, a política era regulada pelas ideias de Cristóvão Colombo: “indo
pela direita, um dia chegaremos à esquerda”. Ou, já na proximidade do
golpe de 1964: “Com uma esquerda dessas, não é preciso direita”, o que
parece ainda tristemente válido.
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* Sociólogo.
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,rotulo-em-branco-a-esquerda-nao-tem-tentado-traduzir-em-teoria-a-realidade-do-pais-diz-sociologo,10000090744
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