Vera Guimarães Martins*
A incompreensão e a perplexidade diante do ato terrorista que massacrou
12 pessoas na Redação do semanário "Charlie Hebdo" incendiou o eterno
debate sobre os limites da liberdade de expressão e se desdobrou em
controvérsias que vale a pena compartilhar com o leitor.
Começa com a questão de fundo: a liberdade de expressão deve ser
soberana a ponto de permitir que uma publicação satírica distribua
ofensas a torto e a direito, insultando governos, políticos,
autoridades, celebridades, líderes religiosos e figuras sagradas?
A resposta assertiva é mais fácil nos primeiros casos, mas geralmente
empaca nos dois últimos, nos quais o argumento do respeito à fé alheia
abre espaço para acomodar ressalvas. O problema é que o raciocínio
relativizador minimiza o fato de que religiões não são só território do
sagrado; são também estruturas de poder, e nessa condição se tornam alvo
preferencial de cartunistas. É por isso que se evita fazer humor com
negros e homossexuais, categorias identificadas como minorias. Não há
mérito em surrar setores mais frágeis da sociedade.
Humor e sátira não se sujeitam às mesmas regras do jornalismo factual.
Suas fronteiras são mais elásticas, porque ali não cabe a interpretação
literal da mensagem. Reconhecer essas singularidades, porém, não
significa endossar o conteúdo do "Charlie Hebdo", como tentaram mostrar
alguns grandes veículos que se recusaram a engrossar a ação política
global de repúdio à tentativa de intimidação dos meios, reproduzindo o
conteúdo do semanário.
Não houve dissidências entre os três maiores jornais brasileiros, Folha,
"Estado" e "O Globo". Nenhuma novidade no caso deste jornal, que tomou a
mesma atitude em episódios anteriores, toda vez que julgou que a
liberdade de expressão estivesse sob censura ou ameaça.
No exterior, a situação foi diferente. "The New York Times", o inglês
"The Guardian" e a rede de TV CNN, entre outros, recusaram-se a
reproduzir os cartuns ou o fizeram pixalizando detalhes mais pesados.
Foram acusados, por leitores e comentaristas, de fraquejar na defesa do
princípio basilar do jornalismo.
Acho bom que a Folha tenha reproduzido as charges, mas não
comungo da condenação a quem não o fez. Não faz sentido --e é até
contraditório com o princípio que se pretende defender-- impor a
veículos com perfis editoriais, realidades e públicos completamente
distintos a reprodução das diatribes de um jornal satírico com 60 mil
exemplares.
O "Charlie Hebdo" é uma instituição tipicamente francesa, gerada na maré
libertária do maio de 68. Sua iconoclastia e virulência o tornam
impensável na maioria dos países, mas não é preciso repetir suas charges
corrosivas, às vezes hilárias, outras pueris e insultuosas, para
defender seu direito de publicá-las.
A liberdade de expressão absoluta é um conceito ideal, mas, na prática,
cada sociedade estabelece seus próprios limites, gerados em acordos,
concessões e interdições, negociados ao longo da história. E, mesmo
assim, o exercício dessa liberdade é fonte permanente de conflito.
Lutar para ampliar os limites ou para evitar que sejam reduzidos é parte
do bom combate. Forçar a uniformização das diferenças, ainda que em
nome de causa maior, não.
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* Ombudsman
ombudsman@grupofolha.com.brfolha.com/ombudsman
Fonte: Folha on line, 11/01/2015
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