sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Novos perfis de família


Frei Betto*


 A família do século XXI já não será apenas a que possui em comum características biológicas, e sim a que o amor 
aproxima e une pessoas comprometidas com um projeto comum de vida, que estabelece entre elas profundas 
relações de intimidade e reciprocidade.

Maria Antônia, bebê gaúcho, tem duas mães, um pai, seis avós! Nascida em Santa Maria, em setembro de 2014, o juiz Rafael Cunha autorizou seu registro de nascimento. 

Os pais são Fernanda, Mariani e Luis Guilherme, que engravidou uma das moças e fez questão de ter seu nome na certidão de nascimento. O juiz reconheceu legalmente que Maria Antônia nasceu em um "ninho multicomposto”. 

Desde que resolução do Conselho Federal de Medicina, em 2013, permitiu a utilização de técnicas de fecundação "in vitro” por casais homoafetivos, cresceu no Brasil o número de crianças registradas em nome de dois pais ou duas mães. 

O preconceito ainda impede que muitos reconheçam o óbvio: o perfil da família já não se restringe ao da relação monogâmica heterossexual. 

Quem melhor percebe essa mutação é o papa Francisco que, em vez de se fingir de cego, como papas anteriores frente aos fenômenos da pós-modernidade, convocou um sínodo para debater o tema. Precedido por reunião extraordinária em outubro de 2014, o Sínodo da Família terá lugar em Roma, em outubro deste ano. 

No questionário remetido a todas as dioceses do mundo, o papa pergunta como os católicos encaram casais recasados, a homossexualidade e outros temas considerados polêmicos no interior da Igreja. Francisco quis ouvir as bases, num gesto inédito de democratização da instituição eclesiástica. 

É o fim da família? A família é uma estrutura cultural, não natural. Tal como a conhecemos hoje, existe há apenas meio milênio. Aliás, hoje se multiplicam as famílias monoparentais, cujo "chefe” é a mãe. Em comunidades indígenas, a qualidade de proteção e afeto às crianças faz a todos nós, "civilizados”, corar de vergonha.

Para quem, como eu, foi educado no catolicismo à luz de estampas da Sagrada Família, não é fácil acolher os novos perfis de relações afetivas. Porém, ao abrir o Evangelho , nos deparamos com algo distinto do modelo devocional: o jovem Jesus que se desgarra do cuidado dos pais e abandona a caravana de peregrinos; o pregador ambulante que não merece a credibilidade de seus irmãos ( João 7,5) e a família o tem na conta de "louco” ( Marcos 3,21-31); o filho que parece rejeitar a própria família: "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” ( Mateus 12, 48). 

Quando exclamaram a Jesus "Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram”, ele não desmentiu, mas assinalou a diferença: "Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam.” ( Lucas 11, 27-28). 

Jesus enfatizou que não são os laços de sangue que mais aproximam as pessoas, e sim o projeto comum que elas assumem. 

Projetos alternativos criam conflitos. Jesus chegou a falar em "odiar” a própria família ( Lucas 14, 26). O verbo grego miseo (=odiar) pode ser traduzido por "amar menos”: "Se alguém quer me seguir e não prefere a mim mais que a seu pai e sua mãe...” 

Frente ao modelo de família-gueto, centrada no umbigo de seus membros e avessa a estranhos e necessitados, Jesus propôs um modelo de família aberta, centrada no afeto, na gratuidade e na abertura ao próximo. 

A família do século XXI já não será apenas a que possui em comum características biológicas, e sim a que o amor aproxima e une pessoas comprometidas com um projeto comum de vida, que estabelece entre elas profundas relações de intimidade e reciprocidade. 

E há que lembrar que, em sua recente visita à Ásia, o papa Francisco rogou aos fiéis católicos que evitem "ser como coelhos”, procriando irresponsavelmente. Um sinal de que os métodos contraceptivos, como o uso do preservativo, serão afinal aceitos pela Igreja Católica?
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* Frade dominicano. Escritor.
Fonte: Adital, 30/01/2015
 

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