Card. Gianfranco Ravasi*
O mundo moderno, sensível «à reciprocidade e à
complementaridade» dos sexos, mencionadas várias
vezes pelo papa João
Paulo II, encorajou esta
interpretação dos textos bíblicos.
João Paulo I dizia que Deus é mãe. As feministas
suprimem da Bíblia as formas "machistas". Por outro lado, a Bíblia não
será talvez tão radical na sua supremacia masculina, e João Paulo II
falava de «reciprocidade e complementaridade» dos sexos, apoiando-se
nas Sagradas Escrituras. Então porque se há de ter medo de dizer que
Deus é pai e mãe?
Num ensaio de título evocador, "Gott - Vater und Mutter" ("Deus,
pai e mãe"), Hanna-Barbara Gerl, intelectual alemã, elenca uma vintena
de representações femininas de Deus na Bíblia, face a quatro vezes
vinte imagens masculinas.
Tomemos dois exemplos do livro de Isaías: «Acaso pode uma mulher
esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas
entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria»
(49, 15); «Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei»
(66, 13). O Antigo Testamento atribui regularmente a Deus «entranhas
maternais», sinal de amor espontâneo, instintivo, absoluto.
Pode legitimamente falar-se de uma dimensão maternal de Deus,
não esquecendo que se trata sempre de um antropomorfismo, de um
símbolo, como a dimensão paternal, para exprimir o mistério divino
inefável e representar a realidade do Incognoscível.
Palavra de Deus incarnada, a Bíblia privilegia o rosto paternal
de Deus aos olhos dos condicionalismos culturais onde se manifestou. É
por isso lícito retomar determinadas leituras demasiado literais do
machismo de Deus sem negar os valores que Ele exprime, como é
necessário voltar a situar Jesus na sua época histórica sem negar a sua
masculinidade, como é devido ajustar certa linguagem eclesiástica
exclusivamente ligada a modelos e formas machistas.
O mundo moderno, sensível «à reciprocidade e à
complementaridade» dos sexos, mencionadas várias vezes pelo papa João
Paulo II, encorajou esta interpretação dos textos bíblicos.
Inevitavelmente surgiram excessos, especialmente nos países
anglo-saxónicos, onde se desenvolveu um feminismo cristão bastante
agressivo.
Chegou-se ao ponto da recusa total da Bíblia sob o pretexto de
"falocratismo"; outros seguiram o caminho de um desalinho total,
chegando a banalidades como a transcrição da Trindade em
«Mãe-Filho-Sobrinho» (!); outros, ainda, introduziram um processo, nem
sempre sereno, de "despatriarcalização" da tradição judaico-cristã. A
obra "Em memória dela", da teóloga Elisabeth Schüssler Fiorenza
(publicada em 1983), é significativa. Em 1895 já tinha aparecido nos
EUA "A Bíblia da mulher", um livro polémico.
No que diz respeito à feminilidade, o Antigo Testamento oferece
um ensinamento muito mais aberto do que se pensa. É evidente que a
incarnação da Palavra de Deus deixa aparecer o contexto sociocultural
do antigo Israel que leva Sirácida, um sábio do séc. II a.C., a
escrever que «menos dano te causará a malvadez de um homem do que a
bondade de uma mulher» (42, 14).
Mas pensemos na intervenção de figuras femininas como Sara,
Raquel, Débora, Rute, Ana, Judite, Ester, a mulher do capítulo 31 dos
Provérbios, a extraordinária protagonista do Cântico dos Cânticos, ou
ainda Maria e a Mulher do Apocalipse, do Novo Testamento.
A bipolaridade sexual é celebrada na sua plenitude especialmente
no Génesis. O famoso «lado» de Adão não é o sinal de uma dependência
mas de uma identidade de natureza, ao ponto de os sumérios empregarem
uma mesma palavra, "ti", para designar o lado e a feminilidade, sem
esquecer o canto final de Adão: «É o osso dos meus ossos e a carne da
minha carne, [...] ambos serão uma só carne», manifestando precisamente
a identidade estrutural.
Não é anódino ter-se recorrido a um jogo etimológico para
explicar os dois termos hebraicos que significam «homem» e «mulher»:
"'ish" e "'isshah", a mesma palavra no masculino e no feminino (Génesis
2, 23-24).
A outra célebre afirmação do Génesis é igualmente significativa.
«Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e
mulher os criou» (1, 27). A constituição do texto segundo as regras
estilísticas hebraicas identifica a imagem divina em nós com o ser
«homem e mulher»; não que Deus seja sexuado, mas em virtude do valor
simbólico da sexualidade, a capacidade de amar e de procriar (a
geração) através da comunhão entre homem e mulher, capacidade que
oferece uma analogia com o Deus criador.
João Paulo II afirmava na carta "Mulieris dignitatem" ("A
dignidade da mulher"), de 1988: «A imagem e semelhança de Deus no
homem, criado como homem e mulher (pela analogia que se pode presumir
entre o Criador e a criatura), exprime portanto também a "unidade dos
dois" na comum humanidade. Esta "unidade dos dois", que é sinal da
comunhão interpessoal, indica que na criação do homem foi inscrita
também uma certa semelhança com a comunhão divina».
Pode por isso reconhecer-se a legitimidade de uma nova
interpretação da Bíblia e da Tradição que simplifica os elementos
socioculturais ao mesmo tempo que conserva o valor teológico da
paternidade e da maternidade de Deus, da masculinidade e da
feminilidade humanas e das suas unidade e diversidade. Goethe afirmava
muito acertadamente que «nós podemos falar de Deus de forma
antropomórfica (sobre o modo humano) porque somos teomórficos (em forma
divina)».
Card. Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "150 questions à la foi", ed. Mame
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 28.01.2015
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "150 questions à la foi", ed. Mame
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 28.01.2015
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