Os culpados seriam workshops de escrita criativa e uma geração mais interessada no cultivo do ego que
nas questões universais
De tempos em tempos, alguém anuncia o declínio
ou o fim da poesia nos Estados Unidos. Segundo o poeta David Lehman, uma
pergunta sempre surge: “E o que estão fazendo com o cadáver?” Na atual
edição da Poets & Writers, revista bimensal com
mais de 60 mil assinantes, Donald Hall, de 86 anos, rememorou com
nostalgia gerações anteriores e colegas como Frank O’Hara e Robert Bly.
Hall costuma lamentar a incapacidade dos autores contemporâneos de
produzirem obras tão relevantes quanto no passado. Não existiria mais,
ele sugere, um autor com talento suficiente para influenciar a
imaginação dos americanos como certa vez o fizeram Walt Whitman, Edgar
Allan Poe, Ezra Pound, Robert Frost, T.S. Eliot ou Allen Ginsberg.
No manifesto Poetry and Ambition,
Hall atribui a suposta decadência da poesia do país à falta de “uma
ambição séria”, a de “criar palavras que permanecem no tempo”. “Somos a
primeira geração de poetas que não estuda latim e não lê Dante em
italiano. Daí a insignificância da nossa sintaxe sofrível e do nosso
vocabulário limitado”, escreve Hall, poeta laureado entre 2006 e 2007.
Embora declare que a publicação de obras poéticas na América aumentou
dez vezes entre 1975 e 2005, ele percebe a repetição de uma fórmula.
“Muitos desses poemas são com frequência legíveis, charmosos,
engraçados, comoventes, até inteligentes. Mas, breves, assemelham-se uns
aos outros, não transcendem a si mesmos, não fazem grandes
reivindicações, eles associam coisas pequenas a coisas pequenas.”
Professor da University of Virginia, Mark
Edmundson compartilha o ponto de vista de Hall. Em artigo polêmico,
“Poetry slam or the decline of american verse”, Edmundson tachou de
“narcisistas”, “dissimulados”, “tímidos”, “triviais” e “alienados”
poetas como Sharon Olds, Mary Oliver, Charles Simic, Frank Bidart,
Robert Hass e Robert Pinsky. “Eles não matam a sede dos leitores por
sentidos que ultrapassem a experiência individual do autor e iluminem o
mundo que temos em comum”, sentenciou Edmundson. Apesar da recorrência
de guerras, colapsos econômicos e destruição ambiental, “eles escrevem
como se as grandes crises públicas houvessem desaparecido e o negócio
mais urgente fosse o cultivo do ego e o afastamento do tédio”. Tudo o
que importa é a criação de uma “voz singular”. Eles contrariam o que
T.S. Eliot pronunciou no ensaio “Tradition and individual talent”
(1920): “Quanto mais perfeito o artista, mais completamente separado ele
será do homem que sofre e da mente que cria”.
Hall e Edmundson responsabilizam
os mestrados de escrita criativa pelas características repetitivas da
poesia contemporânea. Fenômeno consolidado depois da Segunda Guerra
Mundial, a escrita criativa tem como o centro da sua prática os
workshops, oficinas em que os aspirantes a poeta expõem às críticas dos
colegas versos redigidos em um curto prazo. Autor de The Program Era: Postwar fiction and the rise of creative writing
(Harvard University Press), Mark McGurl classifica esse tipo de curso
de “o evento mais importante da história da literatura norte-americana
do pós-Guerra”. A lista de orientadores é extensa e inclui estilos
diversos: John Cheever, Raymond Carver, Kurt Vonnegut, Philip Roth,
Donald Barthelme, Joyce Carol Oates, John Ashbery, William Kennedy,
Jonathan Franzen, Zadie Smith. Dezessete prêmios Pulitzer foram
concedidos a escritores que ensinaram ou estudaram no Iowa Writers’
Workshop, o mais antigo e consagrador dos EUA.
Por considerá-los massificados, Hall deu
aos versos concebidos nas universidades o título de “McPoems”, “poemas
tão instantâneos quanto um pó de café ou uma mistura de sopa de cebola”.
De acordo com Seth Abramson, poeta formado pelo Iowa Writers’ Workshop,
ao menos 250 programas de pós-graduação em escrita criativa formam
perto de 22 mil poetas a cada década. Nos anos 1980, apesar da
popularidade crescente, eram apenas 25 programas. “Um grupo reduzido de
poetas e críticos na academia coordena hoje a nossa cena boêmia e
vanguardista”, diz Abramson, editor do recém-lançado Best American Experimental Writing
(Omnidawn). “Os mais jovens não serão nacionalmente reconhecidos sem
receber primeiro o carimbo desses professores.” Boa parte da energia
criativa, segundo Abramson, é gasta com os relacionamentos profissionais
e não a busca de novidades. O aumento da “comunidade de poetas” não
reflete o seu ecletismo. “Em vez de florescer um novo período de
dinamismo, vemos obras avessas ao risco contempladas por premiações
cobiçadas como o Pulitzer e o National Book Awards.”
A poeta Mary Jo Salter apresenta o
investimento decrescente nas ciências humanas como a principal
explicação para o estudo reduzido das obras poéticas do passado.
Recentemente, a University of California, Los Angeles (Ucla), encerrou
um curso dedicado aos poemas de Chaucer, Shakespeare e Milton para
oferecer uma pós-graduação sobre gênero, sexualidade, raça e classe. “A
filosofia, a literatura e a história têm perdido importância diante da
ênfase em disciplinas mais úteis para conseguir um emprego”, diz Salter,
professora de escrita criativa na Johns Hopkins University e editora da
prestigiosa The Norton Anthology of Poetry.
Salter afirma que
“a poesia da identidade”, de caráter confessional e autorreferencial, é
extremamente comum nos EUA. “Hoje em dia, os poemas tendem mais a
abordar raça, etnia e gênero do que em meados do século XX, quando os
poetas confessionalistas Robert Lowell, John Berryman, W.D. Snodgrass,
Anne Sexton e Sylvia Plath escreveram sobre as suas lutas pessoais com a
sexualidade, o divórcio ou a loucura”, opina. “A poesia lírica sempre
teve a ver com a vida interior, mas é triste perceber que os poemas se
tornaram previsíveis por flertarem com a mesmice.” Contudo, onde Salter
vê homogeneidade, David Lehman enxerga “diversidade”: “A demografia dos
Estados Unidos mudou. Muito mais mulheres, além de pessoas de diferentes
cores, com ascendências diversas (africana, hispânica, indígena,
asiática), estão atualmente voltadas para a produção e publicação de
poesia”.
Se a escrita criativa cortou os laços com
o passado, deu voz a setores silenciados. “Temas considerados
proibidos, como as experiências sexual e social desses poetas, são
tratados com uma franqueza inédita e em formas experimentais antes
desprezadas, como o poema em prosa”, afirma Lehman, o criador da série The Best American Poetry
(Scribner) e professor de escrita criativa da The New School (Nova
York). “Nada mais é um tabu.” Os autores têm agora um canal imediato de
divulgação. “Um poema postado em um blog pode se tornar viral e
estimular grande reação em mídias sociais como o Twitter.”
Tanto Salter quanto Abramson
veem na internet a possibilidade de propagar um poema sujeito à
rejeição dos editores ou universitários. Mas Abramson acredita que “as
mídias sociais têm envenenado” a poética dos EUA. Ele diz que, como
prescrição para o sucesso, muitos poetas se viciaram em três elementos
das comunidades literárias virtuais: “A associação de capital cultural a
indivíduos com personalidade carismática, apesar da qualidade da sua
escrita, o isolamento de poetas cuja obra pode surpreender ou ofender
demais os leitores e a celebração da conquista de prêmios, bolsas de
estudo e cargos de professor”. O crítico entende que é hora de desafiar a
poesia institucional com o engajamento da arte ao cotidiano. “Chegamos
ao momento em que os poetas vão reivindicar a sua relevância social,
histórica e cultural, ainda que essa atitude signifique um afastamento
dos seus pares”, afirma. “O primeiro passo é sair das mídias sociais.
Elas aniquilam a iconoclastia.”
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Texto por Francisco Quinteiro Pires
Fonte: Revista Carta Capital online, 12/01/2015
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