quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

AS ARMAS DO HUMOR


Isabel Lustosa*
 
Manifestação em solidariedade à revista “Charlie Hebdo”, alvo de atentado na quarta-feira, em Paris
Foto: Xavier Leoty / AFP
 Manifestação em solidariedade à revista “Charlie Hebdo”, alvo de atentado na quarta-feira, em Paris 
- Xavier Leoty / AFP

Atentado na França mostra que sátira continua a ser vista como ameaça por tiranos e radicais

RIO - O massacre dos caricaturistas franceses é algo tão inusitado que, mesmo em um mundo em que tantas barbaridades ocorrem todos os dias, tem sua nota de ineditismo. Há algo muito simbólico para os da minha geração no desaparecimento de Wolinski dessa maneira tão trágica. Os que, como eu, tomaram contato com seu humor radical através da revista “O Grilo” ainda nos anos 1970, tinham por Wolinski uma afeição especial pelo que ele representava das liberdades conquistadas, mas também pela forma irreverente com que lidava com elas. Se alguns o taxavam de sexista e talvez machista, ele estava no espírito dos de sua geração, como o nosso quarteto fantástico que marcou época no “Pasquim”: Henfil, Jaguar, Millôr e Ziraldo, que burlava a censura produzindo humor político nos intertextos de suas criações, mas que, como Wolinski, representaram a mulher como objeto de desejo, mas também como dona do seu desejo. Foi o “Pasquim” que deu a Leila Diniz o título de mulher-símbolo de sua geração.

A sátira de Wolinski brincava com um sexo que já era assunto natural, corriqueiro, banal até. E o fazia desmoralizando os moralistas da Igreja, da sociedade e do Estado. Cactus Joe ou as incríveis aventuras de Paulette — onde Wolinski comparece com roteiro, texto e diálogos junto aos desenhos de Pichard — são registros de uma época de ousadia e irreverência em que se afirmavam justamente hábitos e práticas que os fundamentalistas religiosos de hoje tentam extinguir. E isto inclui a liberação da mulher, o sexo livre, o homossexualismo, o direito ao aborto, etc. Práticas que para nós pareciam já fazer parte da cultura moderna, que já tinham se tornado tradições e que, mesmo entre nós, encontram hoje opositores nos fundamentalistas religiosos cristãos e, no Oriente, como também na Europa, de forma mais violenta e efetiva, nos fundamentalistas islâmicos.

A sátira foi sempre objeto de tensão entre a sociedade e os que a produziam. No teatro, na literatura ou na imprensa, sob a forma de texto ou de desenho, ela atinge os poderosos, que reagem tentando censurá-la. Em protesto contra a ordem vigente na França revolucionária, Maria Antonieta, Luis XVI e o Antigo Regime que eles representavam foram caricaturados das formas mais infamantes. Na Inglaterra, a imprensa livre do começo do século XIX, por meio de seus notáveis caricaturistas, não teve pejo de representar príncipes e princesas, ministros e lordes em situações vexaminosas. Ao longo da História, mesmo nos países mais avançados em termos de direitos, alternaram-se momentos de censura e de liberação. 

Nestes tempos de ampla liberdade política e de opinião, quem exerce o controle sobre manifestações que atinjam determinados setores da sociedade são os movimentos sociais organizados. Com isto, a imposição de uma linguagem “politicamente correta” eliminou ou tenta eliminar do acervo de anedotas frequentes entre nós as que possam ser consideradas manifestações de preconceito contra negros, mulheres, judeus e homossexuais, entre outros. Se há quem se queixe do que isto representou de empobrecimento dos recursos humorísticos, é preciso lembrar que a cultura é uma expressão viva da sociedade e que se modifica com a modificação de seus costumes e valores. Assim é que as anedotas e caricaturas ofensivas aos judeus, tão comuns na Alemanha nazista, mas também em muitos países democráticos, foram banidas do repertório dessas nações depois do Holocausto ao qual elas ficaram definitivamente associadas. 

A reação ao humor tendo como alvo Maomé e os muçulmanos teve sua manifestação mais intensa em 2007, em torno das caricaturas do profeta publicadas primeiro na imprensa dinamarquesa e, depois das ameaças terroristas feitas ao jornal em que saíram, repercutidas em quase toda a grande imprensa europeia. O Ocidente exaltava ali seu valor maior conquistado desde a Revolução de 1789: a liberdade de opinião e de imprensa não pode ser limitada por nenhum poder. O “Charlie Hebdo”, especialmente seu editor Charb, foi certamente o que mais se empenhou na defesa desse direito e, em resposta às ameaças que continuou a sofrer, intensificou suas publicações como uma forma de ação afirmativa da liberdade de imprensa contra o obscurantismo fundamentalista. 

Pode-se dizer que os editores do “Charlie Hebdo” agiram movidos também por uma fé. A fé nos valores tradicionais do Ocidente, fé na existência de um homem único, ser pensante capaz de ser iluminado pela razão e pelo conhecimento. Talvez essa fé pudesse ser resumida na frase atribuída a Wolinski em que este diz que “o humor é o caminho mais curto entre um homem e outro”. Ou na convicção expressa por Tignous numa entrevista em que diz que a caricatura na verdade salva vidas de homens públicos porque “enquanto o povo se diverte, ele não pensa em por a cabeça dos políticos em estacas (au bout d’une pique)”. Wolinski, Cabu, Tignous e Charb acreditavam que o riso funcionava como um bálsamo para as feridas da sociedade. Seus assassinos são movidos por outra fé, para a qual as manifestações da cultura associadas à alegria e à liberdade representam ameaças perigosas.
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*Isabel Lustosa é pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e organizadora de “Imprensa, humor e caricatura: a questão dos estereótipos culturais” (Editora da UFMG, 2011), entre outros livros 
Fonte: Jornal O Globo online, 15/01/2015

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