Desiludido
com a democracia europeia, filósofo italiano clama por uma transformação
radical do capitalismo, mas não consegue imaginar uma revolução nos dias de
hoje: ‘Não duraria três dias’
OMÃ
— Aos 79 anos, o filósofo italiano Gianni Vattimo está cada vez mais
inconformado, revolucionário e à esquerda no tabuleiro político ideológico do
mundo. A ponto de se declarar um “anarco-comunista” e dizer que só não pega
hoje em armas para implodir o sistema porque “vão me destruir imediatamente”.
Na conferência “Valores compartilhadores em um mundo de pluralismo cultural”,
organizada pela Academia da Latinidade, no Sultanado de Omã, em novembro,
Vattimo queixou-se da falta de emoção na política do mundo ocidental. Em
entrevista exclusiva ao GLOBO, este filósofo do pós-modernismo, discípulo do
alemão Hans-Georg Gadamer e influenciado por Martin Heidegger, explicou sua
desilusão com o sistema capitalista. Vattimo reabilitou até a falida União
Soviética, ao falar sobre seu seu último livro, “Comunismo hermenêutico — De
Heidegger a Marx” (inédito no Brasil), escrito a quatro mãos com o espanhol
Santiago Zabala. Porém, depois de quase uma hora de entrevista pregando
revolução, ele encerrou a conversa reconhecendo que suas ideias incomodam — é
persona non grata na imprensa italiana — e pedindo para ser “poupado”: “Faça a
coisa mais razoável possível, hein?”, recomendou, em tom de brincadeira.
O
senhor diz que a política no mundo ocidental não tem emoção. Como assim?
Comecemos
por dizer que não há participação. Se examinar o histórico das recentes
eleições na União Europeia, numa eleição na região de Emilia Romagna (norte da
Itália), apenas 37% dos eleitores apareceram para votar. Há uma despolitização
geral.
Por
falta de emoção?
Por
falta de motivação, o que também é emocional. Nos pedem continuamente para
sermos comportados, isto é, não termos emoção e apenas considerarmos cifras,
orçamento, dívida. Por isso as pessoas não participam mais da política. Antes
nós éramos vítimas de uma doença ideológica. Eu mesmo sempre estigmatizei esta
ideia italiana de ideologizar tudo. Na Itália dos anos 50, se você era crente,
votava com os democratas cristãos. E se fosse comunista, era ateu. Isso durou
até os anos 60. Depois as pessoas se deram conta que sob o manto da
religiosidade, tolerava-se toda a corrupção do partido governante. A classe
dirigente italiana dos anos 50 vinha da resistência antifascista. Eram pessoas
engajadas que tinham uma moralidade na política.
Com
muita emoção na política, não há risco de se cair no populismo do estilo Hugo
Chávez (ex-presidente da Venezuela)?
(Risos)
Sou um chavista feroz! Ele fez uma grande revolução. O analfabetismo na
Venezuela foi quase eliminado durante o regime de Chávez. Tudo bem, não é a
perfeição. Mas se compararmos com a Europa, a América Latina é a única região
do mundo onde algo novo se passou dos pontos de vista político e social. Mesmo
no desenvolvimento da Índia ou da China, não houve nenhuma transformação
radical. Eles se desenvolveram seguindo uma linha tipo capitalismo de caridade,
moderado.
A
Venezuela está mesmo melhor hoje?
Por
que a Venezuela não está melhor hoje? Talvez porque (chavistas) viveram somente
da venda do petróleo, sem desenvolver suficientemente uma indústria local. Este
foi o erro, paralelamente aos erros dos governos anteriores, que atuavam
simplesmente como colonos, com os grandes países ocidentais indo lá para obter
lucro. Antes era pior. Não havia uma política de saúde pública, o que existe
hoje. É um pouco como Cuba: há muita gente da América do Norte que vai se curar
em Cuba porque a medicina é boa e não custa tão caro como nos países
capitalistas. A atitude dos Estados Unidos em relação à Venezuela é um pouco
como sua atitude em relação à Ucrânia. Há um descontentamento local e basta
cultivá-lo um pouco para estimular (a revolta) e dar ares de um conflito
social. Estimula-se e depois envia-se tropas para resolver as coisas. O
presidente da Ucrânia que foi afastado, por ter se eleito democraticamente…
É
difícil defender o caso da Ucrânia…
(Vattimo
interrompe a pergunta) É difícil ter uma revolução comunista num só país, este
é o problema. Foi o problema de Stalin e Lenin, nas discussões com Trotsky. Não
estou convencido de que Trotsky tinha razão, mas evidentemente o infortúnio do
stalinismo na União Soviética era também por conta da pressão exterior dos
capitalistas e também pressão psicológica. Stalin teve como único defeito ter
querido imitar o capitalismo rapidamente. Quis provocar um desenvolvimento
muito rápido da indústria pesada, mas foi isso que nos salvou do nazismo. Não
foram os Estados Unidos que nos salvaram do nazismo, foi o Exército Vermelho.
Em todo caso, eu exagero. Mas o que quero dizer é que a Venezuela é um país
rico em recursos. Tem defeitos e talvez tenha também a corrupção… Veja no
Brasil!
O
senhor vê, então, positivamente o que se passa também na Venezuela, no Brasil ?
No
Brasil, certamente. Dilma Rousseff venceu, apesar de o Brasil ter perdido a
Copa do Mundo. Pensei que seria a ruína. Isso significa que a política de Lula
criou uma situação social mais tolerável. As pessoas me dizem: mas você não
conhece isso ou aquilo (que acontece na América Latina). Porém, do ponto de
vista europeu, a única esperança que temos não é nos tornarmos um Chávez, mas
sim recuperar uma situação social onde há um interesse político que seja pelo
menos comparável ao da América Latina. É complicado julgar. Quando falo bem de
Chávez na Itália, as pessoas reagem, dizem “este caudilho, não tem democracia!”
Ok, não tem democracia. Mas a democracia ocidental que vemos na Itália hoje é
uma caricatura nojenta da democracia, porque quem ganha eleição é quem tem
dinheiro! Tudo bem, vivo na Itália e não quero uma revolução chavista.
Por
que não na Itália, se o senhor admira o modelo Chávez?
Porque
temos uma quantidade de bases americanas com bombas atômicas suficientes para
destruir todo o planeta, além da Itália. Sim, eu gostaria muito de uma
revolução. Mas hoje não consigo nem imaginá-la. Não duraria três dias. É por
isso que, para mim, o exemplo latino americano é um pouco mitológico. O que me
interessa é que a América Latina pode se transformar num polo de equilíbrio
internacional que limita a potência americana ou capitalista em geral. E falo
também da China, que hoje é proprietária de portos em Nova York, por exemplo.
Os
chineses deixaram de ser comunistas há muito tempo…
A
China permanece um grande mistério. É verdade que o maoísmo se tornou numa
espécie de capitalismo de Estado, se vestindo como socialismo. Não sei quem são
os proprietários de hoje na China, se são uma classe burocrática… Na China
veem-se todos os limites do comunismo. Como sistema constituído é ainda pior
que o capitalismo.
Já
se via isso com a União Soviética, não ?
Sim,
claro. Mas hoje meu julgamento da União Soviética se tornou muito mais doce. Me
dou conta de que o único pecado de Stalin foi querer um país capitalista. Quis
imitar (o capitalismo), ao acelerar o desenvolvimento da indústria, o que
acabou por matar pessoas e transferir populações internas.
Mas
ele matou muita gente por outras razões também, políticas, eliminando todos os
seus opositores e foi um dos mais terríveis ditadores, não?
Stalin
forçou um desenvolvimento acelerado, impôs uma ditadura etc… Mas a democracia
como ela está se tornando na Europa de hoje não é uma democracia: é um sistema
gerido por regras puramente econômicas. São os banqueiros. É igual a quando
falávamos de pós-modernismo há dez anos, quando as pessoas reagiram dizendo
“sim, mas tem isso, aquilo...” No fundo, era apenas a pós-modernidade. Tenho a
impressão que é preciso um pouco de mitologia na política para fazer as coisas
se mexerem. É preciso utilizar um canhão para matar um mosquito. É preciso um
grande mito para poder fazer mudança.
O
senhor critica a teoria de justiça de John Rawls (filósofo americano) e o que
chama de “utilitarismo moderado”, isto é , atitudes que respeitam os direitos
humanos. Mas não é este o ideal de uma sociedade?
Estou
de acordo. Mas atenção quando nos limitamos a descrever a sociedade ideal como
fez Rawls ou também Habermas (filósofo alemão), que estimo muito, e (a filósofa
americana) Martha Nussbaum… Em nenhum momento eles questionam sobre como vamos
chegar a uma sociedade deste tipo. Eles imaginam que ela existe. Mas imaginar
que sociedades antigas já estavam no capitalismo atual, é uma apologia do
capitalismo que eu não compartilho. Por isso falo de paixão. Eu gostaria de
mais paixão na maneira na qual possamos realizar um pecado ou começar uma
transformação radical da sociedade capitalista. Hoje funciona assim: os
capitalistas nos impõem regras a respeitar. E na Europa temos muitos governos
técnicos. A Espanha é governada pela direita, e a França por um, dizem,
socialista. Mas os dois praticam exatamente a mesma política, a sugerida pelo
Fundo Monetário Internacional (FMI).
"Eu
acredito, até como filósofo e como leitor de Nietzsche,
que a situação do mundo
parece como se nada possa
acontecer ou ser mudado. Heidegger sublinha
sempre a
falta de emergência, a falta até da possibilidade
de um problema. Porque se não
há solução,
não tem problema."
Depois
da queda do muro de Berlim, não há alternativa. O senhor vê alguma?
Você
tem razão. Mas quando penso na situação italiana, por exemplo, sou
absolutamente contra o governo atual, feito por um jovem (o primeiro-ministro é
Matteo Renzi, do Partido Democrata), que se diz comunista mas não é. Silvio
Berlusconi (ex-primeiro ministro, de direita) continua a governar com ele. Se é
só isso que temos, este tipo de democracia, isso não quer dizer que é a boa
escolha. Não se deve fazer apologia da única possibilidade existente.
Sobre
a falta de alternativa, então, pode-se concluir que…
Eu
acredito, até como filósofo e como leitor de Nietzsche, que a situação do mundo
parece como se nada possa acontecer ou ser mudado. Heidegger sublinha sempre a
falta de emergência, a falta até da possibilidade de um problema. Porque se não
há solução, não tem problema. Nós não podemos nem definir a situação
problemática em que nos encontramos. Uma riqueza que se multiplica por si
própria sem modificar a condição da população: é o que Marx chamava de produção
de dinheiro pelo dinheiro. O que fazemos? Deixamos o bancos falirem? Se não
salvamos os bancos, não teremos dinheiro para pagar os funcionários públicos no
final do mês. Portanto, é preciso salvar os bancos, não importa como! Sei que
descrevo isso tudo de uma forma filosófica e que vejo como uma grande
maquinaria que nos condiciona e nos controla. O controle social dos indivíduos
aumenta progressivamente. Sempre nos explicaram que, se mantivermos o bem estar
coletivo, a democracia vai ser mais estável. A estabilidade é exatamente manter
a ordem atual. A diferença entre ricos e pobres que existia há 40 anos é
mantida hoje. Portanto, não é verdade que democracia atual leva à estabilidade!
Temos que pensar em outra coisa.
Falando
de emoção, qual a sua opinião sobre o extremismo no Oriente Médio?
Na
minha opinião, não é um fenômeno religioso, evidentemente. É político. É um
extremismo que se dá como razão o religioso, o filosófico, para se revoltar
contra um sistema que não funciona. Quero dizer, extremistas são, em geral,
pessoas que não vivem bem. Eles são o novo proletariado de Marx motivado não
apenas pela pobreza, mas também por uma tradição cultural. O que assusta mais
são os jovens ocidentais que vão lutar (ao lado do Estado Islâmico).
Como
se explica isso ?
É
a fraqueza e a intolerância do nosso sistema de vida, penso.
É
culpa de nossa democracia, então ?
Sim,
é a culpa de nossa democracia. E não é só isso. Há uma violência urbana que se
espalha mesmo no esporte. Há uma tal quantidade de revolta que assume formas
diferentes. Às vezes toma a forma da violência de uma equipe de futebol contra
a outra. Às vezes, toma a forma de violência urbana, criminalidade etc. Temos
realmente um sistema de disciplina social que estimula a indisciplina e a
necessidade de se opor.
Não
é muito fácil criticar o Ocidente, explicando o fenômeno de ocidentais que se
uniram ao Estado Islâmico por culpa da democracia? E os regimes árabes, não têm
culpa ?
Não
sei muito sobre isso. Conheci um pouco o Irã, que não é árabe, mas muçulmano.
Tenho a impressão que não é tão violento quanto acreditamos. Hoje o Estado
Islâmico decapita os reféns. É apenas uma linguagem local. É como apedrejar por
adultério.
E
o senhor acha isso normal?
Não
acho isso normal. Digamos que é parte de uma civilização diferente da minha,
que eu não aprovo nem compartilho. Mas você sabia que, no final da Segunda Guerra
Mundial, os americanos poderiam não ter jogado a bomba atômica no Japão? Se
quisessem demonstrar algo, poderiam ter convencido os japoneses, mas tiveram
centenas de milhares de mortos. Me dá arrepio esta ideia de ser decapitado como
uma galinha. E não concordo de jeito nenhum. Mas é toda uma imagem acentuada
para desenvolver o terror. Vivemos num regime de terrorismo exercido,
sobretudo, pelas nossas mídias. O verdadeiro terrorismo, este do Estado
Islâmico, ajuda a manter a disciplina no interior (dos grupos). Sei — e repito
— que é difícil imaginar um sistema diferente. Por exemplo, um sistema de mídia
menos monopolizado, menos dirigido pela vontade única de estabilização da
desordem atual, poderia ajudar.
Se
o senhor fechar os olhos e imaginar um mundo utópico, qual seria ele?
O
que me impede de imaginar um mundo utópico é justamente o fator utópico da
nossa civilização, que é a tecnologia. Não dá mais para pensar numa
transformação basicamente agrícola de nossas sociedades, de trabalho humano, de
grupo. Uma divisão social do trabalho que não seja autoritária, e que não
comporte muita diferença de posição social. O que me escandaliza no nosso mundo
é que a diferença entre a riqueza e a pobreza cresceu nos últimos 30 anos.
Então, deve ter algo que não funciona.
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Reportagem por Deborah Berlinck / Correspondente na Europa
Fonte: O Globo online, 03/01/2015
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