Marcelo Garcia*
O Círculo quer estar em toda parte. Nessa rede social
definitiva, quase toda nossa vida é integrada e pública.
Será ainda
possível viver fora do seu controle?
(foto original: Thomas Christensen/
Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)
Livro apresenta inquietante visão de um futuro distópico
muito possível: quando a vida for totalmente pública, não haverá
segredos e tudo será compartilhado na rede social definitiva.
Seria possível que uma empresa dominasse o mundo? Nada de armas ou
exércitos aqui, estamos falando de algo bem mais sutil: uma rede social
que se ramificasse de forma tão profunda na sociedade que se tornasse
indistinguível dela. Essa é a ideia por trás de O Círculo, uma
fábula distópica escrita por Dave Eggers que apresenta um futuro não
muito distante e inquietantemente possível. A obra, lançada em 2014,
levanta questões cruciais em tempos digitais sobre temas como
privacidade, superficialidade das relações sociais, memória, democracia e
limites do conhecimento humano.
Esqueça
Facebook, Google, Microsoft, Apple, Twitter – o Círculo é uma espécie
de amálgama de todos eles, a rede social definitiva. Jovem, ousada,
inovadora, visionária, ela representa o futuro. Embora sejam obras muito
diferentes, é difícil não traçar paralelos com clássicos como 1984 e Admirável mundo novo.
O Círculo soa quase como uma atualização desse pesadelo de
futuro tecnocrático de vigilância total, quase um guia de primeiros
passos para dominação global – inclusive mostrando como é simples no
mundo digital incriminar e desmoralizar as poucas vozes ousadas o
suficiente para se levantar. Dessa vez, porém, as ações e palavras dos
indivíduos não precisam ser seguidas de perto por algum ministério
especial, pois são registradas on-line e em tempo real para serem vistas, acompanhadas – e julgadas – por uma infinidade de amigos virtuais, para sempre.
Paraíso?
A história começa quando Mae Holland é contratada para trabalhar no
Círculo por indicação da amiga Anne e larga seu burocrático trabalho em
uma repartição pública. Tudo parece cor-de-rosa e, aos poucos, ela – e
nós – conhece melhor a organização, sua incrível sede que parece um
parque temático e seus ambiciosos projetos. A exemplo de outras bem
conhecidas do mundo real, a empresa atua muito além dos serviços para
internautas: mapeia o fundo do oceano, por exemplo, e até se propõe a
contar os grãos de areia do deserto do Saara. No sonho do Círculo, tudo é
possível.
É difícil não se maravilhar com as possibilidades e não pensar que a
maioria delas poderia se tornar real dentro de pouco tempo. Braceletes
para acompanhamento da saúde em tempo real, câmeras em cada canto do
globo com transmissão ininterrupta, pessoas ‘transparentes’ transmitindo
24h de seus dias na internet, chips para prevenir raptos de crianças e armazenar históricos médicos e escolares. Ótimas e palpáveis ideias. Ou não?
No leitor, cada novidade também desperta certo incômodo, crescente,
sobre os rumos que esse futuro conectado parece tomar: transparência
total, memória permanente e conexão plena – sempre, é claro, para o bem
de todos. “Segredos são mentiras”, “compartilhar é cuidar” e
“privacidade é roubo”, máximas cunhadas pela própria empresa rumo à sua
‘completude’ já deixam ver o caráter desse novo mundo. Recado, no
entanto, ignorado pela sociedade fascinada e empenhada em compartilhar e
curtir tudo o que vê pela frente enquanto ignora a democracia que rui
ao seu redor.
Vida transparente
A trajetória da própria Mae traz o ponto de vista de alguém que faz
parte da ‘revolução’. É fácil se identificar com ela, compartilhar seu
começo reticente e entender o seu fascínio pelo Círculo, mérito da
narrativa de Eggers. À medida que ela cresce na empresa, nos leva em um
fundo mergulho no imediatismo da sua frenética nova vida digital,
construída completamente na rede, sem distinção entre público e privado,
valorada e medida por zings (tweets?), curtidas e
‘caras felizes’ e sustentada em frágeis laços. Percebeu alguma
semelhança com a vida que muitos de nós já levamos hoje?
A protagonista nos leva em um fundo mergulho no imediatismo da sua frenética nova vida
digital, construída completamente na rede, sem distinção entre público e
privado, valorada e medida por zings (tweets?), curtidas e ‘caras felizes’
Seus pais e seu ex-namorado, além de Anne, são praticamente os únicos
laços reais de Mae. Eles funcionam como contraponto que permite
enxergar melhor as mudanças na protagonista e o ‘lado negro’ da
bem-aventurança trazida por suas novidades tecnológicas. São eles que
questionam e jogam luz mais claramente no que o resto do livro deixa
subentendido quanto a questões relacionadas a privacidade, liberdade,
controle e banalidade no mundo digital.
Também vale destacar a relação de Mae com os três ‘sábios’ que
comandam o Círculo – que não por acaso lembram personalidades do mundo
atual: o jovem-prodígio, o supremo capitalista e o tiozão carismático,
rosto público da empresa. A interação deles com Mae guia suas decisões e
leva a trama à beira do mundo distópico das melhores obras da ficção.
Seu envolvimento amoroso com o misterioso Kalden, único fio solto no
mundo perfeito da sede do Círculo, apesar de não decolar, serve de chave
para um final interessante – e até inesperado.
Alerta
Por fim, O Círculo é uma obra interessante, que coloca em
perspectiva os avanços tecnológicos e a própria organização social dos
dias de hoje. As questões que levanta não poderiam ser mais atuais e
envolventes. O futuro traçado pela obra de Eggers é palpável, com
pequenas extrapolações tecnológicas que nem precisam ir tão além das
tecnologias atuais (como fazem outras obras do gênero) para traçar o
nascimento de uma sociedade de controle total, uma bela atualização do
tema. Trata-se de uma mostra de que, se nós ainda não vivemos no mundo
de O Círculo, nada impede que ele esteja logo adiante, nos esperando. A conferir. E quem gostou, curta e compartilhe.
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Marcelo Garcia é jornalista.
Fonte: Ciência Hoje On-line
Marcelo Garcia é jornalista.
Fonte: Ciência Hoje On-line
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