sábado, 10 de janeiro de 2015

Deleuze e o rosto do bandido

Sobre rostificação e ataque terrorista aos cartunistas franceses

O rosto do bandido vai mudar. Ou melhor, vai readquirir uma feição que já possuiu. O “negro” dará lugar não ao “latino”, mas ao “árabe”. Isso ocorrerá nos Estados Unidos e na Europa. Alguns podem dizer até que isso já ocorreu. Mas não, está em processo. A “máquina abstrata de rostificação”, exibida por Deleuze e Guattari (Mil Platôs), ainda está trabalhando nessa missão.

Grosso modo a máquina funciona a partir de muro branco e dois buracos negros, um esquema que se estabelece no âmbito da cultura, e a partir daí gera expressões de modo a criar o Rosto, este, por sua vez, pode então discriminar tipos hierarquizando-os. Não é a foto dos assassinos dos cartunistas e jornalistas franceses que estará aparecendo nos jornais, mas o que é elaborado pela “máquina abstrata de rostificação”. A foto apresentada já será lida segundo a produção chancela da máquina, ainda que o próprio jornal faça parte dela, enquanto parte da cultura. Ninguém vai jamais identificar os assassinos pelas suas fotos publicadas, mas, antes de tudo, haverá uma identificação de todo e qualquer árabe como assassino. O produto da máquina é inexorável, e rosto é alguma coisa que dificilmente enxergamos sem o que ela faz.

Jesus é o Rosto. O homem europeu branco. Ele dá a hierarquia da máquina, e esta formata a tipologia de faces rostificadas, assim afirmam Deleuze e Guattari. Os elementos hierarquizados no final da fila já podem ser considerados como os que não possuem rosto, mas face, ou melhor, frente ou cara. De modo que Marilin Monroe tem rosto porque ela é o rosto que está afinado com o Rosto, com Jesus. Mas o vendedor de bola de futebol em uma feira do Irã não tem um rosto, tem cara – careta até. Ele também foi hierarquizado pelo rosto de Jesus e sua esposa pelo de Monroe, mas postos no fim da fila, quase que já fora da fila. Só não fica fora porque nada fica fora em uma sociedade como a nossa. Um muro branco com dois buracos negros pode ir deslizando aqui e acolá e dizendo “este sim e este não”, escolhendo o que “passa” e o “não passa”. Como um computador ou como o próprio Cristo, a “máquina abstrata de rostificação” dará para todos nós, e inclusive para os próprios árabes, os da periferia desse nosso paraíso, algo que é a cara.

Aos poucos todo árabe será muçulmano e todo muçulmano será terrorista e, enfim, mais uma vez, quem não for M. Monroe que por sua vez está sentada à direita de Jesus no Céu, será assassino cruel.

Rostos de dois terroristas que assassinaram os cartunistas.Rostos de dois terroristas que assassinaram os cartunistas.

Como disse, esse processo ainda não ocorreu, está ocorrendo. Não se trata de uma “identificação”, da criação de um “estereótipo” ou de um “produto da mídia ocidental” etc. Trata-se da maneira como todos nós temos rosto, desde sempre, segundo Deleuze e Guattari.

O que mais assusta hoje os europeus rostificados pelo Rosto, ou seja, Jesus, não é a atrocidade do Estado Islâmico que luta na Síria, mas outra ocorrência: há jovens que não têm feições requisitadas para o terrorismo, e estes podem estar desafiando a “máquina abstrata de rostificação.

Rostos das garotas austríacas que aderiram ao Jirad, o Estado Islâmico
Rostos das garotas austríacas que aderiram ao Jirad, o Estado Islâmico

São os jovens do Reino Unido que deixam o Ocidente liberal para aderir ao projeto totalitário e sanguinário. É como se faltasse uma extrema direita realmente predisposta à violência no mundo europeu, e que pudesse acolher esses jovens; então é necessário ir ao encontro dos que estão lutando sem dúvidas, sem titubeios, sem conversação, mas com algo bom para o coração: certeza. Essa busca de certeza que, enfim, já é o próprio fanatismo, não causa problema que não seja passageiro. O que realmente causa problema é se a fuga de jovens ocidentais para a causa do terrorismo atual nuble o serviço da “máquina abstrata de rostificação”. 

Como expor pessoas sem rosto de bandido – ainda – como sendo bandidos? Não irão os jovens ocidentais obrigar a “máquina de rostificação” reorganizar-se? Não poderá ela, num futuro próximo, reelaborar o rosto do bandido? Não poderão os bandidos ficarem parecidos com os mocinhos? Se isso ocorrer, a “máquina abstrata de rostificação” terá traído Jesus, terá cuspido no prato de M. Monroe? Estaremos perdidos e os cartunistas, estes que morrem pelo humor crítico, poderão ser eles mesmos pessoas não mais confiáveis, afinal, como é o rosto deles? Não serão eles próprios caricaturas trocáveis pelos seus assassinos? Na hora que isso ocorrer, as coisas vão ficar mais difíceis. Aí sim, teremos algo como uma situação de terrorismo internacional. Esse é o medo hoje na Europa, que a “máquina abstrata de rostificação” escolha outro Rosto para hierarquizar todos. Os limites do Rosto são os limites do meu mundo.
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Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.
Fonte: Site do autor.

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