Sobre rostificação e ataque terrorista aos cartunistas franceses
O rosto do bandido vai mudar. Ou melhor,
vai readquirir uma feição que já possuiu. O “negro” dará lugar não ao
“latino”, mas ao “árabe”. Isso ocorrerá nos Estados Unidos e na Europa.
Alguns podem dizer até que isso já ocorreu. Mas não, está em processo. A
“máquina abstrata de rostificação”, exibida por Deleuze e Guattari (Mil Platôs), ainda está trabalhando nessa missão.
Grosso modo a máquina funciona a partir
de muro branco e dois buracos negros, um esquema que se estabelece no
âmbito da cultura, e a partir daí gera expressões de modo a criar o
Rosto, este, por sua vez, pode então discriminar tipos
hierarquizando-os. Não é a foto dos assassinos dos cartunistas e
jornalistas franceses que estará aparecendo nos jornais, mas o que é
elaborado pela “máquina abstrata de rostificação”. A foto apresentada já
será lida segundo a produção chancela da máquina, ainda que o próprio
jornal faça parte dela, enquanto parte da cultura. Ninguém vai jamais
identificar os assassinos pelas suas fotos publicadas, mas, antes de
tudo, haverá uma identificação de todo e qualquer árabe como assassino. O
produto da máquina é inexorável, e rosto é alguma coisa que
dificilmente enxergamos sem o que ela faz.
Jesus é o Rosto. O homem europeu branco.
Ele dá a hierarquia da máquina, e esta formata a tipologia de faces
rostificadas, assim afirmam Deleuze e Guattari. Os elementos
hierarquizados no final da fila já podem ser considerados como os que
não possuem rosto, mas face, ou melhor, frente ou cara. De modo que
Marilin Monroe tem rosto porque ela é o rosto que está afinado com o
Rosto, com Jesus. Mas o vendedor de bola de futebol em uma feira do Irã
não tem um rosto, tem cara – careta até. Ele também foi hierarquizado
pelo rosto de Jesus e sua esposa pelo de Monroe, mas postos no fim da
fila, quase que já fora da fila. Só não fica fora porque nada fica fora
em uma sociedade como a nossa. Um muro branco com dois buracos negros
pode ir deslizando aqui e acolá e dizendo “este sim e este não”,
escolhendo o que “passa” e o “não passa”. Como um computador ou como o
próprio Cristo, a “máquina abstrata de rostificação” dará para todos
nós, e inclusive para os próprios árabes, os da periferia desse nosso
paraíso, algo que é a cara.
Aos poucos todo árabe será muçulmano e todo muçulmano será terrorista e, enfim, mais uma vez, quem não for M. Monroe que por sua vez está sentada à direita de Jesus no Céu, será assassino cruel.
Como disse, esse
processo ainda não ocorreu, está ocorrendo. Não se trata de uma
“identificação”, da criação de um “estereótipo” ou de um “produto da
mídia ocidental” etc. Trata-se da maneira como todos nós temos rosto,
desde sempre, segundo Deleuze e Guattari.
O que mais assusta hoje os europeus
rostificados pelo Rosto, ou seja, Jesus, não é a atrocidade do Estado
Islâmico que luta na Síria, mas outra ocorrência: há jovens que não têm feições requisitadas para o terrorismo, e estes podem estar desafiando a “máquina abstrata de rostificação.
São os jovens
do Reino Unido que deixam o Ocidente liberal para aderir ao projeto
totalitário e sanguinário. É como se faltasse uma extrema direita
realmente predisposta à violência no mundo europeu, e que pudesse
acolher esses jovens; então é necessário ir ao encontro dos que estão
lutando sem dúvidas, sem titubeios, sem conversação, mas com algo bom
para o coração: certeza. Essa busca de certeza que, enfim, já é o
próprio fanatismo, não causa problema que não seja passageiro. O que
realmente causa problema é se a fuga de jovens ocidentais para a causa
do terrorismo atual nuble o serviço da “máquina abstrata de
rostificação”.
Como expor pessoas sem rosto de bandido –
ainda – como sendo bandidos? Não irão os jovens ocidentais obrigar a
“máquina de rostificação” reorganizar-se? Não poderá ela, num futuro
próximo, reelaborar o rosto do bandido? Não poderão os bandidos ficarem
parecidos com os mocinhos? Se isso ocorrer, a “máquina abstrata de
rostificação” terá traído Jesus, terá cuspido no prato de M. Monroe?
Estaremos perdidos e os cartunistas, estes que morrem pelo humor
crítico, poderão ser eles mesmos pessoas não mais confiáveis, afinal,
como é o rosto deles? Não serão eles próprios caricaturas trocáveis
pelos seus assassinos? Na hora que isso ocorrer, as coisas vão ficar
mais difíceis. Aí sim, teremos algo como uma situação de terrorismo
internacional. Esse é o medo hoje na Europa, que a “máquina abstrata de
rostificação” escolha outro Rosto para hierarquizar todos. Os limites do
Rosto são os limites do meu mundo.
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Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo.
Fonte: Site do autor.
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