quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Conhecer os mitos judeus.

Gianfranco Ravasi*

Um aforismo popular afirmava que cada palavra da Torá, os cinco primeiros livros sagrados das Sagradas, tem 70 rostos, isto é, tem múltiplas iridescências semânticas, de natureza especialmente espiritual. Também se dizia que o texto sagrado é semelhante a uma pedra que, atingida pelo martelo, despedaçando-se, espirra milhares de centelhas de luz.


"Ouviu-se uma voz do céu: Moisés, chegou o fim da tua hora... O Senhor disse a Moisés: Cruza as pernas! Moisés obedeceu. Agora cruza os braços sobre o peito! Moisés obedeceu. Feche os olhos! Moisés fechou os olhos. Depois, o Senhor falou à sua alma: Minha filha, 120 anos eu tinha te atribuído para viver dentro do corpo deste santo homem. Não demora mais, minha filha. Chegou a hora. A alma respondeu: Tu me criaste e colocaste no corpo deste santo homem: existe, talvez, no mundo um corpo mais puro e imaculado e santo do que este? Eu estou bem aqui, não quero ir embora! Mas o Eterno repetiu: Não demora, minha filha, o teu fim já chegou... Quando percebeu que a alma se recusava a sair dele, Moisés se despediu da sua alma com estas palavras: Volta, alma minha, para a tua paz, porque o Senhor foi bom contigo! E foi assim que o Santo, bendito seja Ele, tomou a alma de Moisés, beijando-o na boca... Deus mesmo chorou pela morte de Moisés. Não choro por Moisés – explicou o Senhor –, mas por aquilo que os filhos de Israel perderam com a sua partida..."

Sintetizamos um capítulo mais amplo de uma obra cuja arquitetura monumental se articula em nada menos do que sete tornos, que o judeu lituano, que imigrou para os Estados Unidos na juventude, Louis Ginzberg (1873-1953), compôs e publicou entre 1909 e 1938.

A cena citada – sobretudo na sua escrita integral –, em certos aspectos, é até mesmo comovente. Já abandonado pela própria inspiração divina, deixado sozinho por aquele Deus com quem havia dialogado como um amigo fala com o seu amigo, para usar uma locução bíblica, colocado no cume do Monte Nebo diante daquela terra prometida por Deus a Israel, ao término da peregrinação de aproximação que durou 40 anos no deserto, o ultracentenário Moisés sentiu a vida fluir para fora do seu corpo.

É estupendo o diálogo entre a alma desse grande líder de Israel e Deus mesmo: ela não se resigna a ter que se retirar daquele corpo santo para retornar ao Criador e tenta quase negociar uma maior permanência em uma pessoa tão nobre e justa.

Mas, no fim, é Deus quem toma a iniciativa e, através de um beijo, suga dos lábios de Moisés a sua alma. E é poderosa a cena final de um Deus que chora com os filhos de Israel, compartilhando a sua dor, sobretudo porque ele também não teria mais um mediador como Moisés para dialogar com um povo tão difícil e rebelde.

Ora, se nos atemos à Bíblia, o fim daquele que os judeus chamam de Morenû, "o nosso mestre", é descrita de modo bem mais seco e sem nenhuma concessão ao sentimento. Lê-se, de fato, no livro do Deuteronômio:

"Moisés, servo do Senhor, morreu aí mesmo [o monte Nebo], na terra de Moab, conforme a palavra do Senhor. Foi sepultado no vale, na terra de Moab, na frente de Bet-Fegor. Até hoje, ninguém sabe onde fica a sepultura dele. Moisés tinha 120 anos quando morreu. Sua vista não tinha enfraquecido, nem se esgotara seu vigor. Os israelitas choraram por Moisés, nas estepes de Moab, durante 30 dias, até que terminou o luto por Moisés" (34,5-8).

Naturalmente, a tradição literária e teológica judaica posterior não se contentou com essas poucas linhas quase de crônica e – como acontece com outras páginas bíblicas – bordou ao redor delas uma série de fios narrativos de intenso impacto emotivo e espiritual. Na prática, era uma expansão quase "oratória" (para usar a linguagem cristã, "homilética"), de corte parenético e figurativo, a fim de envolver o leitor da Bíblia em uma adesão mais íntima.


Afinal, um aforismo popular afirmava que cada palavra da Torá, os cinco primeiros livros sagrados das Sagradas, tem 70 rostos, isto é, tem múltiplas iridescências semânticas, de natureza especialmente espiritual. Recorrendo a uma imagem do profeta Jeremias (23, 29), segundo o qual a palavra divina é "como um martelo que quebra a rocha", também se dizia que o texto sagrado é semelhante a uma pedra que, atingida pelo martelo, despedaçando-se, espirra milhares de centelhas de luz.

Ginzberg pacientemente colecionou e comparou essas obras teológico-narrativas ou jurídicas judaicas que, como um arco-íris, estendiam-se sobre as Sagradas Escrituras e as tinha recomposto em uma espécie de comentário contínuo. Agora, com este volume (veja abaixo), que é o quinto da série de sete previstos, abrangem-se tanto os eventos principais do percurso de Israel no deserto, depois de deixar para trás a opressão faraônica, quanto a chegada à Terra Santa.

Tem-se, assim, o início com a tensão dramática da escolha idolátrica do bezerro de ouro e do confronto entre Deus e Israel e o seu sacerdote Arão (o pensamento se volta também para Moses und Aaron, incompleto mas admirável oratório moderno de Schönberg).

Entra-se, depois, no complexa ritualidade relacionada com a preparação do santuário móvel com a arca da aliança; multiplicam-se, posteriormente, os golpes de cena das rebeliões de um povo cansado e duvidoso, assistem-se a tentativas de golpe de Estado contra Moisés (Coré, Datã e Abirão), cruzam-se estranhos profetas pagãos (Balaão), e assim por diante, em uma sequência ininterrupta de vicissitudes que, a partir da base da narrativa bíblica, florescem em criações apócrifas surpreendentes.
Em 1995, com muita coragem, a editora Adelphi empreendeu a versão italiana do setenário de Ginzberg e agora, como se dizia, depois de quatro tornos, chegou à conclusão do ciclo dedicado à Torá, com a epopeia final de Moisés. A tradução italiana – com todo o aparato necessário de referências às fontes judaicas, que são a mina em que o autor vasculha, com o marco das notas de complemento, com um glossário indispensável para o leitor não judeu (em particular, leiam-se os vocábulos 'aggadah, halakha, midrash, mishnah, talmud, targum) – foi confiada à grande competência e à fineza interpretativa de Elena Loewenthal.

Lendo essas e as outras páginas anteriores da coleção de Ginzberg, tem-se a confirmação mais incisiva, mas, paradoxalmente, também mais fluida da definição heideggeriana da hermenêutica: Auslegen ist das ungesagte sagen, "interpretar é dizer o não dito" de um texto.

 Louis Ginzberg. Le leggende degli ebrei. Verso la terra promessa. Organizado por Elena Loewenthal. Milão: Adelphi, 449 páginas.

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* A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 25-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 28/01/2015

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