Juremir Machado da Silva*
Foi em 2006. Eu estava em Paris para uma reunião do conselho editorial da revista Hermès, do qual faço parte. A publicação, uma das mais importantes da Europa em Ciências Sociais, é dirigida por Dominique Wolton e editada pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica, o prestigioso CNRS da França. Duas vezes por ano, o Conselho, que conta com quase 50 pesquisadores do mundo inteiro, reúne-se. A outra importante revista científica francesa da qual integro o conselho editorial é a Sociétés, criada por Michel Maffesoli e especializada em estudos do imaginário. Na época que me vem agora, aproveitei uma brecha para visitar meu amigo Jean Baudrillard, que morreria em 6 de março de 2007.
A doença já havia marcado Jean, que foi um dos homens mais inteligentes da sua geração.
Eram onzes horas da manhã. Ele me ofereceu um cálice de vinho branco.
– Não tenho mais tempo para esperar o final da tarde –– brincou.
Aceitei o vinho.
Baudrillard tinha bom gosto. Depois do brinde, apesar da melancolia
que nos embaçava, ele começou a falar da falsa oposição entre real e
virtual produzida pelas discussões em torno da internet.
Com a sua tradicional ironia sempre suave, profetizou:
– Dentro de dez anos, ninguém mais falará em virtual e real. Ainda se
fala disso porque as pessoas continuam assustadas com a novidade, que
já vai se fazendo velha e rançosa. Quando isso acontece, a tendência é
negar o real. O virtual é o mordomo chamado a depor.
É tudo real. Tão real quanto a imagem da televisão. Tão real quanto a
voz saindo do rádio. Tão real quanto a letra impressa no papel. Fiquei
esperando que ele continuasse. Era maravilhoso ouvi-lo falar.
Ele saltava de um assunto para outro com certa volúpia:
– Na vida, meu amigo, tudo é questão de legitimação.
– De que está falando agora? –– arrisquei.
Ele bebeu mais um gole. Deu uma olhada pela janela. E disse:
– Do trabalho das ideias, do caminho que se tem de trilhar. Não basta
ter uma boa ideia. É preciso lutar por ela. Quanto mais uma ideia
contraria o senso comum, mais é combatida e menos legitimação ela
encontra. Ter ideias muito boas e diferentes traz sofrimento.
Baudrillard teve ideias originais. Escreveu grandes livros. Teve
reconhecimento.
A legitimação, porém, não é permanente. Li um texto de um jornal
inglês afirmando que não há mais pensamento original na França. Paris já
não produziria ideias renovadoras.
– As ideias fazem greve – me dissera Baudrillard.
Foi nossa última conversa pessoal. Ainda falamos por telefone em
fevereiro de 2007. Quando publiquei meu livro História Regional da
Infâmia, o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras,
pensei nele. O combate seria duro e permanente. Os inimigos, ensinavam
Jean, usam três estratégias alternadas: ataque, indiferença e
deslegitimação pela biografia. Entre tantas grandes frases, Jean nos
legou esta: “Esperamos que a inteligência artificial nos salve da nossa
estupidez natural”.
Ou esta: “O pior num ser humano é mesmo saber demais e ser inferior ao que sabe”. Na mosca.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo online, 29/06/2015
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