Performance de Viviany Beledoni, durante a Parada Gay de São Paulo deste ano. Foto: Reprodução. |
"Será mesmo
que Jesus foi desrespeitado por ela ou foram as ‘referências religiosas’ de
políticos, de pregadores e de uma parte da população cristã que se sentiu
ameaçada?”. Quem lança a pergunta é a teóloga feminista brasileira Ivone
Gebara, discutindo o porquê de tamanha repercussão em torno da performance da
atriz transexual Viviany Beledoni, durante a Parada Gay de São Paulo, no último
dia 07 de junho. A ativista desfilou no maior evento de resistência LGBT do
mundo, crucificada tal como Jesus Cristo e outros tantos de seu tempo, que eram
penalizados pelo Império Romano. A pretensão foi simbolizar a perseguição e o
sofrimento por que passa a população LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Transexuais].
Em entrevista
à Adital, a também filósofa e freira
católica questiona se, em vez de uma suposta ofensa às religiões cristãs, por
meio de uma blasfêmia ao símbolo de Cristo crucificado, não seria a relação de
gênero o centro da questão. Não seria a conexão entre essas doutrinas e a
exibição de um corpo feminino seminu, atuando como liderança de resistência e
proposição na representação do martírio do líder maior do Cristianismo, o
grande ponto de incômodo entre os setores conservadores?
"Creio que, no
fundo, há uma resistência em aceitar não apenas a liderança feminina nas
igrejas e na sociedade, mas, sobretudo, que o corpo feminino nu signifique mais
do que o ‘corpo objeto’ usado e abusado pelos homens de todos os tempos”,
discute Ivone. "Não se aceita que o INRI, ‘Jesus rei dos judeus’ em latim, se
transforme em grito de alerta contra a servidão feminina ou contra a homofobia
LGBT ou contra a exploração dos camponeses. Há muito mais coisas escondidas em
nosso aparente puritanismo do que ousamos revelar”, provoca a teóloga.
Ainda que
foque na questão de gênero, Ivone amplia o debate e afirma que o repúdio de parte
da população a essa manifestação de resistência pode ser compreendido de
diferentes maneiras. Ela sugere três pontos de reflexão relacionados à cultura
cristã que nos circunda e ao uso que se faz dela. O primeiro deles remete a uma
"concentração da sexualidade” e dos papéis de gênero como tendo de seguir
regras pré-estabelecidas por "Deus” ou pela natureza.
"A
‘transgressão’ a esta ordem afirmada como divina agride muitos espíritos.
Muitos/as acreditam numa normatividade sexual presente na cultura, proveniente
de ordens divinas ou de algo inscrito na natureza física, independentemente da
vontade dos seres humanos”, debate Ivone.
"Como aceitar
que uma transexual atrevida se aproprie de um símbolo tornado cristão para
expressar seu sofrimento e os sofrimentos coletivos, assim como a urgência de
direitos? Não apenas a cruz se tornou símbolo cristão, mas tornou-se
materialmente símbolo da excelência do sofrimento masculino. Dessa forma,
qualquer mudança pode ser vista como agressão e, consequentemente, repudiada”, assinala
a estudiosa feminista.
Atriz afirma que pretensão foi representar perseguição contra público LGBT. Foto: Reprodução. |
O segundo
ponto levantado por Ivone se refere a um "reducionismo da moralidade social à
sexual”. Neste aspecto, a teóloga aponta que a consideração e o respeito à
diversidade dos seres humanos e a questão da urgência de justiça social e
ecológica amplas acabam sendo tratadas como reivindicações menores. "A
moralidade reduzida à sexualidade é sujeita ao controle de um grupo que se
considera ‘eleito’ por Deus, representante e defensor das leis ‘ditas’ divinas”,
explica.
"O
reducionismo decorrente e suas nefastas consequências têm crescido
assustadoramente, como forma de impor uma nova moralidade política através de
um falacioso discurso moralizador dos costumes. Este tem rendido a eleição de
muitos lobos vorazes vestidos de pele de cordeiro. O reducionismo tem sido
liderado por grupos religiosos com amplo acesso aos meios de comunicação e a
espaços políticos nacionais”, discorre Ivone. "Promovem uma guerra cultural
contra a diversidade, confundem muitos adeptos e acabam tendo grande apoio
popular. Os adeptos passam então a repudiar o que eles repudiam”.
O terceiro
tópico tem a ver com uma produção desenfreada de violência, não só por
organizações criminosas nacionais e internacionais, mas também por aqueles que
encetam "guerras santas” contra os que são julgados "desviados” das "leis de
Deus” e da natureza. "Leiam-se aqui também leis do capitalismo do mercado
protecionista e individualista. Os ‘justiceiros’ são, na realidade, produtores
de uma violência social incomensurável, visto que se disfarçam nos discursos
religiosos, mostram-se pacíficos, pessoas de bem, mas iludem os mais simples,
tornando-os partidários de suas interpretações da História e das intervenções
divinas nela”, destaca a Ivone.
De acordo com
a teóloga, tudo isso leva ao fundamentalismo religioso e à acentuação do
repúdio a qualquer manifestação que fuja dos moldes do permitido. "O medo de
reprimendas advindas das autoridades, representantes de Deus e dos possíveis
castigos divinos também entram nessa pauta”, acrescenta.
Ivone Gebara estuda teologia feminista. Foto: Reprodução. |
Ressignificação do símbolo
A teóloga
contrapõe a tese de que Viviany tenha insultado uma crença religiosa por meio
de uma agressão ao seu maior símbolo. Ela explica: "no caso da atriz Viviany
Beleboni, o uso da cruz como ela o fez, não foi para destruir um símbolo caro a
um grupo. Ela apenas ressignificou a cruz a partir de sua experiência de
rejeição e agressão pessoal, e de outras companheiras. Assumiu o significado da
cruz de Jesus injustiçado pelos poderes de seu tempo como referência à sua cruz
atual ou ao suplicio que muitos grupos da sociedade brasileira atual lhe
impõem”, argumenta.
"A cruz, na
realidade, pode ter vários significados, para além da crucifixão de Jesus de
Nazaré. De uma maneira experiencial, chamamos de cruz as situações impostas, as
situações em que não há escolha ou saídas imediatas. Da mesma forma, situações
e relações difíceis que duram longo tempo são identificadas como ‘nossa ou
minha cruz’”, afirma.
Nesse sentido,
Ivone lembra que também se crucifica uns aos outros através da ganância, da
incapacidade de enxergar a diversidade e o pluralismo do nosso mundo, do
cultivo da violência. "Somos, na realidade, algozes uns dos outros, juízes
corruptos uns dos outros, mas também podemos ser ‘próximos’ solidários uns dos
outros”, assevera a filósofa.
Ivone rejeita,
enfaticamente, que o ato de protesto seja considerado uma heresia. "No caso
específico de Viviany, não há heresia! Ao contrário, através da cruz ela
manifestou a humilhação vivida pelos novos crucificados de hoje, que ela estava
representando”, justifica. "Nessa perspectiva, não podemos esquecer que a cruz
imposta a Jesus era para humilhá-lo e matá-lo. Por isso, é a luta contra a
humilhação que nós seres humanos impomos uns aos outros e às outras que se
elabora o discurso da ressurreição, ou seja, o discurso sobre a dignidade da
vida e a busca contínua dessa dignidade. Os crucificados clamam por vida digna,
por direitos, anunciam a necessidade de libertar-se, de saírem da ignomínia do
sofrimento imposto”, afirma.
"Se quisermos
polemizar, poderíamos até dizer que heréticos em relação ao Evangelho são
aqueles que, hoje, atiram pedras nas vítimas da fome, que deixam morrerem
refugiados, que impõem pesados fardos à vida das mulheres, que viram o rosto
para a violência cometida contra os homossexuais e transexuais”, provoca a
teóloga.
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Fonte: Adital
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