quarta-feira, 24 de junho de 2015

O que os outros percebem do que somos

J.J. Camargo*

J.J. Camargo: o que os outros percebem do que somos Edu Oliveira/Arte ZH
As atitudes que consideramos normais são apenas modelos precários, forjados pela convivência superficial com o mais comum. O número de pessoas que não se encaixam no estereótipo do normal certamente é maior do que o perceptível. Em grande parte porque a maioria prefere ter suas excentricidades ignoradas, pois são naturalmente retraídas e ponto. Mas há as que camuflam seus gostos e preferências porque não têm coragem de se expor como diferentes. 

O João Ignácio era capataz de estância na fronteira e se via, pelo cuidado e pelas recomendações com que foi trazido para a enfermaria, que era o mimoso da patroa. Durante os poucos dias de convívio, mostrou-se meio tímido, conversa restrita ao essencial, sempre lendo alguma coisa. 

Lembro que, em uma quinta-feira, chegou ao ambulatório um negro velho do interior, traumatizado de tórax, várias costelas quebradas e a história de que dormira no banco da praça, gemente de dor, à espera que a Santa Casa abrisse. 

Com a necessidade óbvia de internar, a sequência de perguntas era sempre a mesma: primeiro, “onde?”, e depois, “no lugar de quem?”.

Repassando a lista de pacientes internados, paramos no João Ignácio. “Ele está bem, não está? Por que ainda não teve alta?” E a descoberta: a patroa avisou que vai mandar um carro buscá-lo no sábado, poupando-o do ônibus. Mandei chamá-lo: 

— Seu João, o senhor vai ter alta hoje, não podemos manter um leito bloqueado só à espera de seu transporte. O senhor pode perfeitamente ir de ônibus. 

— Pois até me animava, mas acontece que eu não tenho dinheiro!

— Isso não é problema, a gente paga a sua passagem.

Não sei qual era a moeda na época, mas lembro do total: 97. Quando entreguei-lhe o valor exato, ele contou o dinheiro e, com uma cara enviesada, queixou-se: 

— Mas nem uma sobrazinha? Se vê que o doutor não tem noção de quantas rodoviárias tem daqui até a fronteira. Nem um pastelzinho, nada? 

Foi assim que me encantei com o João Ignácio insuspeitado. Inteligente, debochado e com senso de humor. Mas descobri, com o tempo, que esse tipo de gente nunca se revela por inteiro. Muitos anos depois, em uma das diversas revisões que fizemos, ele expôs outra faceta, essa, para mim, a mais surpreendente. No fim da consulta, do nada, abriu uma sacola de pano puído e retirou de lá um caderno de capa grossa com as bordas meio esfiapadas e, quase balbuciante, alcançou-me o seu segredo: nas horas vagas, ele escrevia. Textos curtos, causos e versos, muitos versos.

— Nesta sacola, nem a mulher velha nunca botou a mão. Nunca contei para ninguém porque tenho vergonha do que os outros vão pensar. Mas agora que descobri que o meu doutor é metido a escrever em jornal, achei que ia entender e resolvi lhe contar. Na verdade, o mais perto que me arrisquei foi emprestar uns versos para o meu neto mais velho quando ele me contou que estava acabrunhado porque a professora exigiu que cada aluno levasse uma poesia para ler na aula. Não disse que era eu que tinha escrito, mas fui dar uma espiada. E quando o moleque declamou, fiz o maior fiasco: chorei que nem uma criança.

Na despedida, prometi que contaria esta história porque ela é linda demais. E, então, ele abriu um sorriso emocionado, espanou uma lágrima com as costas da mão e anunciou: 

— Mas bah, imagina se me faz uma coisa dessas! Não sei o que vai ser de mim, agora que até aprendi a chorar!
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 * Médico
Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
Fonte: ZH online, acesso 24/06/2015

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