J.J. Camargo*
As atitudes que consideramos normais são apenas modelos precários,
forjados pela convivência superficial com o mais comum. O número de
pessoas que não se encaixam no estereótipo do normal certamente é maior
do que o perceptível. Em grande parte porque a maioria prefere ter suas
excentricidades ignoradas, pois são naturalmente retraídas e ponto. Mas
há as que camuflam seus gostos e preferências porque não têm coragem de
se expor como diferentes.
O João Ignácio era capataz de estância na fronteira e se via, pelo
cuidado e pelas recomendações com que foi trazido para a enfermaria, que
era o mimoso da patroa. Durante os poucos dias de convívio, mostrou-se
meio tímido, conversa restrita ao essencial, sempre lendo alguma coisa.
Lembro que, em uma quinta-feira, chegou ao ambulatório um negro velho
do interior, traumatizado de tórax, várias costelas quebradas e a
história de que dormira no banco da praça, gemente de dor, à espera que a
Santa Casa abrisse.
Com a necessidade óbvia de internar, a sequência de perguntas era
sempre a mesma: primeiro, “onde?”, e depois, “no lugar de quem?”.
Repassando a lista de pacientes internados, paramos no João Ignácio.
“Ele está bem, não está? Por que ainda não teve alta?” E a descoberta: a
patroa avisou que vai mandar um carro buscá-lo no sábado, poupando-o do
ônibus. Mandei chamá-lo:
— Seu João, o senhor vai ter alta hoje, não podemos manter um leito
bloqueado só à espera de seu transporte. O senhor pode perfeitamente ir
de ônibus.
— Pois até me animava, mas acontece que eu não tenho dinheiro!
— Isso não é problema, a gente paga a sua passagem.
Não sei qual era a moeda na época, mas lembro do total: 97. Quando
entreguei-lhe o valor exato, ele contou o dinheiro e, com uma cara
enviesada, queixou-se:
— Mas nem uma sobrazinha? Se vê que o doutor não tem noção de quantas
rodoviárias tem daqui até a fronteira. Nem um pastelzinho, nada?
Foi assim que me encantei com o João Ignácio insuspeitado.
Inteligente, debochado e com senso de humor. Mas descobri, com o tempo,
que esse tipo de gente nunca se revela por inteiro. Muitos anos depois,
em uma das diversas revisões que fizemos, ele expôs outra faceta, essa,
para mim, a mais surpreendente. No fim da consulta, do nada, abriu uma
sacola de pano puído e retirou de lá um caderno de capa grossa com as
bordas meio esfiapadas e, quase balbuciante, alcançou-me o seu segredo:
nas horas vagas, ele escrevia. Textos curtos, causos e versos, muitos
versos.
— Nesta sacola, nem a mulher velha nunca botou a mão. Nunca contei
para ninguém porque tenho vergonha do que os outros vão pensar. Mas
agora que descobri que o meu doutor é metido a escrever em jornal, achei
que ia entender e resolvi lhe contar. Na verdade, o mais perto que me
arrisquei foi emprestar uns versos para o meu neto mais velho quando ele
me contou que estava acabrunhado porque a professora exigiu que cada
aluno levasse uma poesia para ler na aula. Não disse que era eu que
tinha escrito, mas fui dar uma espiada. E quando o moleque declamou, fiz
o maior fiasco: chorei que nem uma criança.
Na despedida, prometi que contaria esta história porque ela é linda
demais. E, então, ele abriu um sorriso emocionado, espanou uma lágrima
com as costas da mão e anunciou:
— Mas bah, imagina se me faz uma coisa dessas! Não sei o que vai ser de mim, agora que até aprendi a chorar!
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* Médico
Foto:
Edu Oliveira / Arte ZH
Fonte: ZH online, acesso 24/06/2015
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