domingo, 14 de junho de 2015

MORTAIS

 

O PrOA antecipa nesta página trechos de livros no prelo ou às vésperas do lançamento. Leia a seguir um excerto de Mortais: Nós, a Medicina e o que Realmente Importa no Final, livro do médico e jornalista americano Atul Gawande. Com especialização em procedimentos cirúrgicos e colaborador regular da revista The New Yorker, Gawande apresenta, em Mortais, um ensaio sobre o que considera o despreparo da medicina ocidental contemporânea para lidar com a inevitabilidade de processos como o envelhecimento e a morte. Misto de reportagem e depoimento, Mortais elenca experiências pessoais da prática do autor com histórias de casos nos quais o alto progresso tecnológico da medicina contemporânea ainda não preparou os médicos para lidar com a fragilidade emocional de cada um diante do inevitável. O livro sai este mês pela editora Objetiva.

Por que envelhecemos é assunto de debates acalorados. A visão clássica é a de que o envelhecimento ocorre devido ao desgaste aleatório. A visão mais recente sustenta que o envelhecimento é mais organizado e geneticamente programado. Os proponentes desta visão apontam que animais de espécies similares e com exposições ao desgaste também semelhantes têm expectativas de vida bem diferentes. O ganso-do-canadá tem uma expectativa de vida de 23,5 anos; o ganso-imperador, de apenas 6,3. Talvez animais sejam como plantas, com vidas que são, em grande medida, regidas internamente. Certas espécies de bambu, por exemplo, formam bambuzais densos que crescem e prosperam por cem anos, florescem de uma só vez, depois morrem.

A ideia de que seres vivos deixem de funcionar em vez de simplesmente irem se desgastando vem recebendo apoio substancial. Pesquisadores trabalhando o agora famoso verme C. elegans (por duas vezes na mesma década, o prêmio Nobel foi concedido a cientistas que estudavam o pequeno nematódeo) conseguiram, alterando um único gene, produzir vermes que vivem duas vezes mais e envelhecem mais lentamente. Desde então, os cientistas produziram alterações de um único gene que aumentam a expectativa de vida de moscas-das-frutas, camundongos e fungos.

Apesar dessas descobertas, a maior parte das evidências vai contra a ideia de que nascemos com um ciclo de vida pré-programado. Lembre que durante a maior parte de nossos 100 mil anos de existência – à exceção das últimas duas centenas de anos – a expectativa de vida média dos seres humanos era de trinta anos ou menos. (Pesquisas sugerem que os súditos do Império Romano tinham uma expectativa de vida de 28 anos.) O curso natural era morrer antes de chegar à velhice. Na verdade, durante a maior parte da história, a morte era um risco em qualquer idade e não tinha absolutamente nenhuma ligação óbvia com o envelhecimento. Como escreveu Montaigne, observando a vida no fim do século 16, “morrer de velhice é uma morte rara, singular e extraordinária, muito menos natural do que outras mortes: é o último e mais extremo dos tipos de morte”. Então hoje, com nossa expectativa de vida média na maior parte do mundo subindo para mais de 80 anos, já somos singularidades vivendo muito além da hora marcada para a morte.

Quando estudamos o envelhecimento, o que estamos tentando entender não é tanto um processo natural, mas sim um antinatural.

Acontece que nossa herança genética tem muito pouca influência sobre nossa longevidade. James Vaupel, do Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica, em Rostock, na Alemanha, observa que apenas 3% do tempo de vida de uma pessoa, comparado com a média, é explicado pela longevidade de seus pais; por outro lado, até 90% da altura de alguém é explicado pela altura dos pais. Até gêmeos geneticamente idênticos podem ter uma longevidade bem diferente: a lacuna típica é de mais de 15 anos.

Se nossos genes explicam menos do que imaginávamos, o modelo clássico de desgaste pode explicar mais do que supúnhamos. Leonid Gavrilov, pesquisador na Universidade de Chicago, argumenta que os seres humanos falham da mesma maneira que todos os sistemas complexos: aleatória e gradualmente. Como os engenheiros há muito tempo reconhecem, dispositivos simples normalmente não envelhecem. Funcionam de maneira confiável até que um componente crucial falha, fazendo com que em um instante a coisa toda deixe de funcionar. Um brinquedo de corda, por exemplo, funciona bem até uma engrenagem enferrujar ou uma mola quebrar, então para completamente. Porém sistemas complexos – usinas de energia, por exemplo – precisam sobreviver e funcionar apesar de conterem milhares de componentes cruciais, potencialmente frágeis. Os engenheiros, portanto, projetam essas máquinas com múltiplas camadas de redundância: com sistemas de backup e backups para os sistemas de backup. Esses sistemas podem não ser tão eficientes quanto os componentes originais, mas permitem que a máquina continue funcionando mesmo com o acúmulo de danos. Gavrilov argumenta que, de acordo com os parâmetros estabelecidos por nossos genes, é exatamente assim que os seres humanos parecem funcionar. Temos um rim extra, um pulmão extra, uma gônada extra, dentes extras. O DNA em nossas células é com frequência danificado sob condições rotineiras, mas nossas células têm diversos sistemas de reparo de DNA. Se um gene crucial for permanentemente danificado, há normalmente cópias extras do gene por perto. E se a célula inteira morrer, outras podem substituí-la.

No entanto, conforme os defeitos de um sistema complexo vão aumentando, chega um momento em que apenas um defeito a mais é suficiente para danificar o todo, resultando na condição conhecida como fragilidade. Acontece com usinas de energia, carros e grandes organizações. E também acontece conosco: mais cedo ou mais tarde, o número de articulações danificadas e de artérias calcificadas é simplesmente grande demais. Não há mais backups. Nós nos desgastamos até não termos mais o que desgastar.
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MORTAIS:

Nós, a Medicina e o que Realmente Importa no Final

Atul Gawande

Tradução de Renata Telles.

Objetiva.

264 páginas.

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POR ATUL GAWANDE
Imagem da Internet 
Fonte: ZH online, 14/06/2015

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