segunda-feira, 19 de julho de 2010

Usos e abusos da ideologia política

O setor financeiro domina o emprego não acadêmico de economistas.


Adair Turner*


John Maynard Keynes disse numa frase memorável, que "as ideias dos economistas e filósofos políticos, seja quando estão certas como quando estão erradas, são mais poderosas do que se entende normalmente. Pessoas práticas, que julgam estar completamente isentas de qualquer tipo de influência intelectual, são geralmente escravas de algum economista falecido".

Mas suspeito que um perigo maior resida em outro lugar, com os homens e mulheres práticos empregados na elaboração de políticas de bancos centrais, agências reguladoras e departamentos de gestão de risco de financeiras, que tendem a gravitar na direção de versões simplificadas das crenças predominantes de economistas, que estão, de fato, muito vivos.

Na verdade, uma versão da teoria do equilíbrio começou a prevalecer nos anos que precederam a crise financeira, retratando a complementação de mercado como cura para todos os problemas, e sofisticação matemática desconectada do entendimento filosófico como a chave para gestão de risco. Instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), nas suas Análises da Estabilidade Financeira Global (GFRS), estabeleceram uma descrição confiante sobre um sistema autoequilibrado.

Assim, apenas 18 meses antes que a crise irrompesse, em abril de 2006, o GFSR registrou favoravelmente "um crescente reconhecimento de que a dispersão de riscos de crédito a um grupo mais amplo e mais diversificado de investidores... ajudou a tornar o setor bancário e o sistema financeiro mais amplo mais resiliente."

Portanto, gestores de risco nos bancos aplicaram as técnicas de análise de probabilidade para cálculos de "valor em risco", sem perguntar se amostras de eventos recentes realmente implicavam consequências sólidas para a provável distribuição dos eventos futuros. Além disso, em agências reguladoras como o Financial Services Authority do Reino Unido (que eu dirijo), a crença de que a inovação financeira e a crescente liquidez de mercado eram valiosas porque completam os mercados e melhoram a descoberta de preços não era apenas aceita; era parte do DNA institucional.

Esse sistema de crença não excluiu, naturalmente, a possibilidade de intervenção no mercado. Mas certamente determinou premissas sobre a natureza e os limites apropriados da intervenção.

Por exemplo, a regulamentação para proteger clientes do varejo poderia, algumas vezes, ser apropriada: exigências de divulgação de informação poderiam ajudar a superar assimetrias de informação entre corporações e consumidores. Igualmente, a regulamentação e a fiscalização para evitar abusos do mercado foram justificáveis, pois os agentes racionais podem também ser gananciosos, corruptos, ou até criminosos.

Mas o sistema de crenças dos reguladores e formuladores de políticas nos centros avançados se inclinava a excluir a possibilidade de que a busca de lucro racional por parte dos participantes de mercado profissionais pudesse gerar comportamento de busca de renda e instabilidade financeira, em vez de benefício social - apesar de vários economistas terem mostrado claramente o que poderia acontecer.

O senso comum dos formuladores de políticas refletia, portanto, uma crença de que apenas intervenções que visassem identificar e corrigir as imperfeições muito específicas que impediam atingir o nirvana do equilíbrio de mercado seriam legítimas. A transparência foi essencial no intuito de reduzir custos de informação, mas transcendia os limites da ideologia reconhecer que as imperfeições da informação pudessem ser profundas a ponto de se tornarem irremediáveis, e que algumas modalidades de atividades mercantis, por mais transparentes que fossem, pudessem ser socialmente inúteis.

Com efeito, o economista Jagdish Bhagwati, da Universidade Colúmbia, no famoso ensaio intitulado "Capital Myth" (mito do capital) falou sobre um complexo "Wall Street/Tesouro", que fundia interesses e ideologias. Bhagwati argumentou que essa fusão desempenhou um papel na transformação da liberalização dos fluxos de capital de curto prazo num artigo de fé, apesar dos sólidos motivos teóricos que pediam cautela e da magra evidência empírica dos benefícios. Ademais, no triunfo mais amplo dos preceitos da desregulamentação financeira e complementação de mercado, os interesses e a ideologia, juntos, certamente desempenharam um papel.

Interesses puros, manifestados pelo poder lobista - foram incontestavelmente importantes para várias medidas cruciais de desregulamentação nos EUA, cujo sistema político e regras de financiamento de campanhas são peculiarmente propícios ao poder de grupos de pressão específicos.

Interesses e ideologia frequentemente interagem de formas tão sutis que é difícil separá-los, e a influência dos interesses é obtida por meio de uma ideologia aceita inconscientemente. O setor financeiro domina o emprego não acadêmico de economistas profissionais.

Por serem humanos, eles se inclinarão implicitamente a apoiar - ou, ao menos, não desafiar agressivamente - o senso comum que se presta aos interesses do setor, por mais rigorosamente independentes que forem nos seus critérios relativos a temas específicos.

As teorias da eficiência de mercado e da complementação de mercado podem ajudar a renovar a segurança dos executivos mais graduados das mais importantes instituições financeiras de que eles devem de alguma forma sutil estar realizando a obra de Deus, mesmo se à primeira vista parecer que parte das suas transações seja simplesmente especulação. Os reguladores precisam contratar especialistas do setor para regulamentar eficazmente; mas os especialistas do setor estão quase propensos a compartilhar as premissas implícitas do setor. Entender esses processos sociais e culturais poderá ser, em si, um importante foco de novas pesquisas.

Mas não devemos minimizar a importância da ideologia. Instituições humanas sofisticadas - como as que formam o sistema de formulação de política e de regulamentação - são impossíveis de administrar sem um conjunto de ideias suficientemente complexas e internamente coerentes para serem intelectualmente confiáveis, mas simples o bastante para proverem uma base viável para tomadas de decisão do dia-a-dia.

Essas filosofias norteadoras são mais tentadoras quando oferecem respostas claras. E uma filosofia que afirma que inovação financeira, complementação de mercado e crescente liquidez de mercado são sempre e axiomaticamente benéficas fornece uma base clara para descentralização regulatória.

Nesse ponto, suspeito, reside o maior desafio para o futuro. Isso porque, enquanto o simplificado senso comum pré-crise parecia ter fornecido um conjunto completo de respostas apoiadas sobre um sistema intelectual e uma metodologia unificadas, o pensamento econômico realmente benéfico deve fornecer múltiplos entendimentos parciais, baseados em diversas abordagens analíticas. Esperemos que homens e mulheres práticos aprendam essa lição.
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*Adair Turner é presidente do conselho de administração da Financial Services Authority (órgão regulador do mercado financeiro) do Reino Unido e membro da Câmara dos Lordes. Copyright: Project Syndicate, 2010.
Fonte: Valor Econômico online, 19/07/2010

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