quarta-feira, 21 de julho de 2010

Os leitores de si mesmos



Emannuel Fraisse (foto), da Universidade de Sorbonne-Nouvelle,
diz que tecnologia mistura papéis de produção e
recepção de conteúdo

O professor francês Emannuel Fraisse, da Universidade de Sorbonne- -Nouvelle, Paris 3, tem respostas instigantes para o futuro do livro, o comportamento de escritores e leitores. Não faz exercícios futuristas, apenas reflete. E observa o que está acontecendo. Chama a sua atenção a profusão de blogs na internet – cita 200 milhões – e questiona: “Se há tantos escritores quanto leitores, quando vamos ter tempo de ler ou de escrever? Podemos ver essa loucura da qual não podemos escapar”. Deduz que os autores escrevem para lerem a si mesmos. Seriam esses relatos uma espécie de diários de adolescentes de décadas atrás? Explicitam o paradoxo dos tempos atuais: a solidão num meio acessível a todos. Decerto nesse cenário, a tecnologia passa a misturar os papéis da produção e da recepção de conteúdo.
No caso da literatura, Fraisse traduz a mudança com as novas tecnologias numa frase: “O texto brilha”. Como pesquisador, estudou o Romantismo no século 19, literatura e cultura da infância, Pedagogia e sociologia da leitura e Escola, patrimônio literário, cultura e transmissão. Fraisse foi diretor do Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica da França de 2003 a 2006 e preside o Conselho Escolar do Instituto Universitário de Formação de Professores da Academia de Versailles.
À revista PUCRS Informação o professor fala nos clássicos e best sellers, papel da escola e memória coletiva. Ele participou do 2.º Congresso Internacional de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, que tratou do tema A literatura e as novas tecnologias: leitores plurais ou pós-leitores?. O evento discutiu a emergência de uma concepção de sujeito, não mais entendido como mero leitor, mas interativo e parte de um sistema complexo histórico e sociocultural de um mundo globalizado.
Fraisse também ministrou curso paralelo ao evento sobre literatura e globalização. Para a entrevista à revista, colaborou com a tradução a artista plástica, escritora e doutoranda em Letras Paula Mastroberti.

O senhor escreveu, em Representações e Imagens da Leitura , que o século 20 foi da Crítica, num domínio separado da atividade criadora. O século 17 na França foi do teatro; o século 18, dos filósofos; e o século 19, do romance . O que o senhor projeta para o século 21, apesar de completada somente a primeira década?
Acredito que qualquer coisa irá se modificar em termos de leitura. Há tempos tínhamos o texto impresso, não havia som nem imagem. A imagem era apenas fixa, não era animada. A primeira revolução é quando vem a imagem com o som, na invenção do cinema. Em todas as narrativas, entrou o som e a imagem. Neste momento estamos num outro ponto de transformação. O texto impresso, a escritura, o som e a imagem animada e fixa estão integrados, misturados na interface do computador. Chegamos a ler as notícias, acessamos o YouTube e todos os sistemas para ver filmes e, ao mesmo tempo que lemos, vemos. A grande mudança é essa. O texto mudou de natureza, ele brilha. Isso é definitivo.

O que marcará é a transformação do meio?
Isso mesmo.

Isso modifica também o leitor? E que repercussão tem na produção, na escritura?
A internet muda a relação entre o produtor e o receptor. Todos os receptores podem se tornar autores. Essas funções vão se misturar. Os sites de compartilhamento de informações têm uma grande produtividade.

Esses novos meios não acabam por expandir os textos testemunhais? O que diferencia um relato num blog de um texto literário?
É pertinente discutir isso. As edições impressas têm a sua vantagem. Para ler um livro não é necessária nenhuma tecnologia. É mais cômodo, porque não depende de ligar uma máquina. O livro impresso tem uma certa etiqueta. Na internet não há nenhuma indicação da qualidade. A edição, a marca da editora garantem um certo tipo de texto. O editor seleciona alguns, não publica tudo. Nós tocamos numa espécie de contradição. Há blogs que têm qualidade e outros são terrivelmente repetitivos. Existem 200 milhões de blogs na internet. Se há tantos escritores quanto leitores, quando vamos ter tempo de ler ou de escrever? Podemos ver essa loucura da qual não podemos escapar. O escritor não escreve a não ser para ler a si mesmo. É um paradoxo. Você não escreve a não ser para ler sozinho.

Que impactos haverá na consolidação da memória coletiva, já que cada um expõe o vivido privadamente ?
É cedo para responder a isso. Se pensarmos na função tradicional da memória, é classificar, colocar em fichas. Para que funcione, é preciso às vezes esquecer. Se a gente não é capaz de esquecer, não é capaz de lembrar porque a memória é uma seleção. Se nós fixamos, classificamos tudo o que for memorizável, nós não podemos mais nos lembrar. Isso é verdade para os indivíduos e para a sociedade também. O que é mais perigoso hoje em dia é esse acúmulo de informações que nós não somos capazes de selecionar, hierarquizar, ordenar. Um romance de Borges tem um personagem que não consegue viver porque se lembra de tudo. Para poder se lembrar, é preciso esquecer.

"Hoje em dia se percebe que os bons alunos não
necessariamente são leitores.
Os que amam ler e leem muito às vezes
 não são mais os melhores."


Tudo isso remete à função da escola de hierarquizar as informações para os alunos. Pelo que ainda se nota, essa instituição tem uma estrutura mais conservadora.
Felizmente. Se a escola vivesse exclusivamente da atualidade, seria incapaz de modificar a memória coletiva. A norma da escola é transmitir conhecimento que possa ser compartilhado pelos cidadãos.

Como estimular as crianças a ler ?
Falarei da situação francesa. Os alunos que liam eram os bons e se fazia necessária a leitura para que tivessem esse desempenho. Isso acontecia no passado. Hoje em dia se percebe que os bons alunos não necessariamente são leitores. Os que amam ler e leem muito às vezes não são mais os melhores. Eles esperam da escola essa renovação técnica. A tecnologia não é capaz de medir a emoção da busca do conhecimento. A leitura já não garante que o aluno supere as etapas escolares.

O que faz um bom aluno hoje ?
Para a sociedade, aquele que corresponde ao que se espera dele e passa nas provas. É uma definição externa. Eu penso que é mais importante um bom cidadão do que um bom aluno. Deveria desenvolver sua capacidade, sensibilidade, criatividade de uma forma menos institucional. Os parâmetros escolares de avaliação são diferentes do que a sociedade exige lá fora.

Ainda recomenda os clássicos?
Cada época tem o seu modo de lê-los. Essa releitura revive os clássicos. Cada geração tem uma maneira de revisitar e reavaliar o passado. São diferentes, conforme as leituras: tem um que está morto e outro vivo. Essa é uma operação que sempre continua.

Como diferencia um texto universal de um best seler ? O paradoxo entre a visão dos críticos literários e a preferência maciça dos leitores .
Os best sellers são os que esqueceremos rapidamente. Toda obra literária fica presente na memória quando é excepcional e se torna clássica. O cinema tem um papel importante na preservação da memória do best seller. Se a gente observa uma lista de 50 ou 100 anos atrás, não conhecemos quase nada. Por exemplo, E o Vento Levou, justamente porque é um filme que se conhece. A verdade é que o livro desaparece rápido, cai no esquecimento. O que sobrevive como literatura são os clássicos.

Os novos meios transformam a literatura, em suas bases ?
Sim. Ela vai mudar ainda e já mudou. O que parece mais importante hoje em dia é a distribuição da literatura, que fica entre a imagem e o texto. Não sou pessimista de modo algum. Não há razão para ser pessimista em relação à cultura e a tudo isso.

Antes a imagem (imaginação) era do leitor. Com os novos meios, se acopla ao texto na produção?
As combinações são muito variadas. As transformações mais importantes aconteceram nos últimos anos, os quadrinhos, que tinham algo de novo. A gente vê um livro impresso, onde aparece a influência da decupagem cinematográfica, inicialmente dirigido à juventude e hoje lido por adultos. É uma combinação interessante.
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Reportagem por  Ana Paula Acauan
Fonte: Revista PUCRS informação online, nº150 julho-agosto/2010 - pg.24-25

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