sábado, 31 de julho de 2010

De onde vem a nossa alma?

Em uma mistura de ensaio e ficção,
Eduardo Giannetti relata os avanços da ciência para explicar nossa consciência
- e o dilema filosófico que eles trazem

David Cohen

ESPECULAÇÃO
O economista e escritor Eduardo Giannetti, em sua casa em São Paulo.
 Seu livro investiga a relação entre cérebro e mente

Um professor de literatura especializado em Machado de Assis sofre de esquecimentos, dores de cabeça, sensações de calor repentinas e, após alguns exames, descobre que tem um tumor no cérebro. A cirurgia transcorre bem, com apenas uma sequela: ele fica surdo de um ouvido. A partir daí, sua vida muda. Aposentado precocemente, o professor se torna um recluso obcecado por desvendar os segredos da relação entre o cérebro e a mente. Seria a consciência apenas o produto de reações químicas no cérebro? Livre do tumor físico, ele passa a crer que sofre de um tumor da alma, uma crença que ameaça seu senso de identidade e propósito. Com essa trama ficcional, o economista Eduardo Giannetti criou A ilusão da alma – Biografia de uma ideia fixa (Companhia das Letras), em que destila sua erudição, como fez em livros como Autoengano e O mercado das crenças. Desta vez, é uma erudição a serviço de explicar uma angústia existencial. Se não controlamos nossos pensamentos, o que somos?

Trecho - A ilusão da alma, capítulo 35

Do relâmpago ao voo da libélula, tudo o que acontece no mundo físico é passível de explicação mediante a explicita­ção de leis e princípios físicos. O conhecimento científico da natureza mostrou que não é necessário recorrer a nenhuma variável extrafísica – como espíritos, forças ocul­tas, vontades, entes psíquicos, demônios ou intervenções do além – para compreender os fenômenos do mundo natu­ral. O mundo físico é autossuficiente, ou seja, ele abriga no interior de si tudo aquilo que é necessário e suficiente para entender e explicar o que sucede nele. Il mondo va da se.

Pois bem: é difícil conceber, para dizer o mínimo, que o ser humano de carne e osso, fruto da união de dois gametas, não pertença integralmente a este mundo. A natureza não dá saltos. Mas, se tudo o que tem lugar no mundo físico, do qual nosso organismo é parte e onde nossa vida trans­corre, pode ser plenamente entendido e explicado mediante variáveis físicas, então por que seria diferente conosco?

O cérebro humano é um órgão de extraordinária complexi­dade – o mais intrincado e intrigante de que se tem re­gistro –, no entanto isso não faz dele uma milagrosa “cai­xa‑preta”: um órgão extranatural, regido por princípios estranhos a tudo que sabemos sobre o mundo, e que teria de algum modo ficado isento das leis naturais de causa e efeito ou das relações de tempo e espaço que se verificam no resto da natureza.

Mas se os nossos corpos e organismos (cérebro incluso) são entes físicos que nascem, crescem e se movimentam no espaço físico, como acontece com todo ser vivo do planeta, então não é necessário recorrer a nenhuma va­riável extrafísica, como nossos pensamentos, desejos e vontade consciente, para dar conta da nossa existência e ações no mundo.

Daí que o entendimento estritamente científico do Homo sapiens, pautado pela busca de resultados claros, inteligí­veis e sujeitos à aferição pública, exclua o recurso a esta­dos mentais de qualquer natureza quando o que está em jogo é a elucidação do que nos faz ser como somos e agir como agimos. A neurociência não foge à regra. Como relata Roger Sperry, falando aqui em nome dos seus cole­gas de profissão, “a convicção da maioria dos estudiosos do cérebro – cerca de 99,9% de nós, segundo creio – é que forças mentais conscientes podem seguramente ser des­consideradas no que diz respeito ao estudo científico obje­tivo do cérebro”.

Note bem. Em nenhum momento se nega a realidade da consciência ou dos eventos mentais: o que se descarta é sua utilização como princípios válidos de explicação. Em nenhum momento se subestimam as lacunas que ainda per­sistem no estudo científico da relação mente‑cérebro. Quem quer que procure inteirar‑se dos resultados alcançados há de concordar com o bioquímico americano Julius Axelrod quando ele afirma que “a linguagem eletroquímica do cére­bro é tão rica e sutil como a de Shakespeare – e estamos apenas começando a aprender o nosso abc”.

Existe um hiato inexplicado, seria descabido negar, entre a alma vista de fora para dentro (os fenômenos fisiológicos do cérebro), de um lado, e a alma vista de dentro para fora (os fenômenos subjetivos na mente), de outro. A descoberta da chave que decifra esse hieróglifo e franqueia a exata tradução do código de uma alma no alfabeto da outra é o santo graal da neurociência.

Seja qual for a resposta, porém, a questão crucial perma­nece: qual é a direção de causalidade entre o universo mental e a neurofisiologia do cérebro? A cada uma de nos­sas experiências mentais, conscientes ou não, corresponde uma configuração definida e particular do cérebro. Quem pilota quem? Existe, afinal, “um piloto”?

Que alterações da anatomia e da química cerebrais afetam os nossos estados de consciência é algo por demais evi­dente: ninguém precisa extirpar o hipocampo ou tomar LSD para constatar isso, basta um cafezinho ou um analgésico.

E na direção contrária? Como seria partir de um estado men­tal – uma sensação subjetiva como, por exemplo, “estou com fome” – para daí entender como isso afeta o cérebro e as ações decorrentes? Como um evento mental – algo de que me torno ciente ao pensar no que me vai pela cons­ciência – poderia direcionar ou afetar objetivamente a ativi­dade dos neurônios, as sinapses e os fluxos eletroquímicos observáveis e passíveis de mensuração em meu cérebro?

Procure imaginar. Primeiro, como surgiu a sensação? Obvia­mente, não veio do nada; o mais provável é que a fome subjetiva reflita uma condição de carência do tecido celular que se fez transmitir ao sistema nervoso e por fim subiu a rampa da consciência (“tenho fome”). E depois? À sensa­ção de fome seguem‑se, na ordem natural das coisas, outro estado mental, que é a intenção de comer (“preciso almo­çar”), e a ação prática da natureza esfaimada a caminho de uma bem‑vinda repleção (o almoço). O que estaria se passando aqui?

Um mentalista dirá: os eventos mentais, neste caso a sensa­ção de fome e a intenção de comer, produzirão de cima para baixo os processos fisiológicos do cérebro e ordena­rão ao córtex motor que acione os músculos voluntários do corpo visando agir e saciar a fome.

Repare: o que se tem aqui são entes psíquicos imateriais sacudindo neurônios e disparando sinapses para cá e para lá, em inescrutável balé, até que o disparo dos pulsos ele­troquímicos agite as fibras nervosas ramificadas pelo corpo e anime os músculos a dançar. Coreografia de rara e inefá­vel sutileza.

Por mais boa vontade que se tenha, a noção de que algo semelhante possa estar de fato acontecendo chega a ser tão obscura e alheia a tudo que se conhece sobre as leis natu­rais que regem o mundo, além de exigir um contorcionismo intelectual de tal monta daqueles que se dispõem a con­cebê‑la, que o único remédio é recorrer à máxima de Tertu­liano, teólogo e Pai da Igreja, diante dos mistérios da fé: Credo quia absurdum est (“Creio porque é absurdo”). Não deve andar longe o tempo em que o credo mentalista será visto como o criacionismo é encarado hoje em dia.

Um fisicalista, diante do mesmo desafio, dirá: apesar de vedado à nossa introspecção (tal como ocorre, aliás, com o funcionamento do aparelho digestivo), tudo o que nos vai pela mente – a cornucópia da vida subjetiva – tem cau­sas objetivas concretas e resulta de processos neurofisioló­gicos passíveis de observação e análise.

Nossos estados subjetivos coexistem com as mudanças objetivas no cérebro, mas isso não implica que possuam um real papel na sua explicação. É ilusão tomar como causa aquilo que sobe à consciência como um ato de von­tade, fruto da intenção de agir. A experiência subjetiva é o sopro derradeiro na cadeia de eventos neurais que a pre­cede, como o rumor produzido pelo ruflar de uma revoada de pássaros – o farfalho é o reverberar do voo. Os even­tos mentais que embalam a nossa vida consciente e incons­ciente (como os sonhos, por exemplo) são efeitos a serem explicados, porém desprovidos de eficácia causal.

Um estado mental (“preciso almoçar”) nunca é realmente produzido por outro estado mental (“estou com fome”); todos são produzidos por estados do cérebro. Quando um pensamento parece suscitar outro por associação, não é na verdade um pensamento que puxa ou atrai outro pensa­mento – a associação não se dá entre os dois pensamen­tos, mas sim entre os dois estados do cérebro ou dos ner­vos subjacentes a esses pensamentos.

Um desses estados do cérebro gera o outro, fazendo‑se acompanhar, em sua passagem, do estado mental particular que ele produz. A execução do ato pelos músculos do corpo (“garfo à boca”) e a digestão regida pelo hipotálamo coroam o processo. O intermediário mental, em suma, é um redundante fenômeno de superfície – epifenômeno – em relação ao funcionamento do organismo físico.

O quebra‑cabeça da relação mente‑cérebro não está com­pleto – há peças importantes faltando. Mas o contorno geral da figura que se desenha e o teor das descobertas que vêm se multiplicando, em especial nos últimos 20 anos, deixam pouca margem à dúvida. Todas as flechas da pesquisa científica voam afinadas para o mesmo alvo.

Quanto mais se aprofunda o conhecimento dos segredos da “caixa‑preta”, mais incontornável se torna a “hipótese espantosa” (Francis Crick) e mais se confirma a conclusão desconcertante de que os nossos estados mentais estão para o nosso cérebro assim como o apitar de uma panela de pressão está para o seu mecanismo de funcionamento. Ao contrário do que a nossa psicologia intuitiva nos acostu­mou a pensar, não é o apito que faz a água ferver; mas é porque ela ferve que o apito começa a tocar, como vai mostrando de maneira cada vez mais precisa e detalhada a pesquisa em neurociência e áreas afins.

A experiência mental que nos absorve e embala desde que nos tomamos por gente não passa, portanto, de um subpro­duto caprichoso e intrigante de processos físicos – daí o termo fisicalismo em vez do tradicional, porém inexato, materialismo – que ocorrem de modo autônomo e autossu­ficiente no organismo; um subproduto dotado de inesgotá­vel riqueza e fascínio, é inegável, mas inteiramente inócuo e desprovido de poder causal sobre o mundo físico obje­tivo a que pertence.

O cérebro humano é um órgão que responde sozinho por todas as nossas ações; por todas as nossas crenças e senti­mentos mais íntimos; por tudo que acreditamos. É ele que nos faz escolher uma profissão e nos faz sentir mais atraí­dos ou menos atraídos por alguém; é ele que nos leva a agir ou não de acordo com as normas de convivência vigentes; é ele que responde pelas nossas ideias políticas e religiosas. Embora tenhamos uma sensação de controle sobre o nosso pensamento e nossas ações, essa sensação não passa, também ela, de um subproduto do nosso cére­bro; ela é uma ilusão remanescente do ambiente arcaico no qual prevalecia a crença de que tudo que se mexe na natureza tem alma.

O fisicalismo subverte a nossa psicologia intuitiva e lança uma luz perturbadora sobre tudo que nela repousa. Não foi à toa que La Mettrie, médico e filósofo, autor de L’homme machine, o grande e corajoso manifesto fisicalista do século XVIII, alcançou o feito inusitado de unir contra ele todas as religiões da Europa, mesmo as que viviam em guerra entre si. É sintomático que nem o intrépido Diderot, ghost‑writer de diversas passagens do Système de la nature do barão D’Holbach – “a bíblia dos ateus”, como foi cha­mada, mas na verdade um compêndio prolixo e burocrá­tico da obra‑prima de La Mettrie –, ousasse referir‑se aber­tamente a ele, não obstante a clara influência, temeroso da onda de censura e perseguição que a simples menção do seu nome desencadearia.

A ideia é tremenda, mas basta um silogismo para resumi‑la. As leis e regularidades que regem o mundo são indepen­dentes da minha vontade (premissa maior); a minha von­tade é fruto das mesmas leis e regularidades que regem o mundo (premissa menor); logo, a minha vontade é indepen­dente da minha vontade (conclusão). Se as premissas são verdadeiras, então a conclusão é incoercível.

Trecho - A ilusão da Alma - Capítulo 7

termos inteligíveis a natureza do alerta que o meu cérebro tenta me enviar. Que tipo de anomalia estaria por detrás da fumaceira que escancarou a vastidão da minha ignorância
sobre mim? Tudo isso, é claro, supondo que o médico esteja na pista certa. E se os exames não revelarem nada — haveria outros a serem feitos? E se eu estiver simplesmente enlouquecendo?

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Delírio inaugural, racionalizações, novos delírios, consulta, bateria de exames, diagnóstico: o circuito foi tortuoso, mas a mensagem cifrada do meu cérebro finalmente alcançou a consciência do destinatário — e veio clara e contundente como um torpedo. “O resultado da ressonância é inequívoco”, sentenciou o dr. Jordão, “a sequência de transtornos e alucinações hipnagógicas que o vêm atormentando ultimamente resulta de um pequeno tumor alojado no lobo temporal direito do seu cérebro.”
Fiquei petrificado. “O quadro é potencialmente grave, exige uma pronta resposta, mas não é o caso de desesperar”, prosseguiu o médico, “tudo vai depender da biópsiaque revelará o tipo e a agressividade do tumor. Recomendo fortemente que você faça uma cirurgia, o mais depressa

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possível, a fim de extirpa‑lo; felizmente, pelo tamanho e localização do neoplasma, a operação em si não representa maior risco.” Em seguida, ele abriu a pasta com os meus exames e indicou com o dedo o ponto exato onde era possível visualizar o tumor. “Aqui está: é próximo à área do cérebro ligada ao sistema auditivo cortical primário; não há um minuto a perder”, emendou. “E, se você aceita uma sugestão, o dr. Tardelli, estamos juntos na clínica há muitos anos, é um cirurgião perfeitamente qualificado, tem vasta experiência em cirurgias desse tipo e com certeza vai deixa‑lo novo em folha. Minha secretária, se você quiser, pode agendar agora mesmo uma consulta com ele.”
No caminho de volta para casa, aturdido pelo golpe inesperado, fui tragado por um turbilhão de pensamentos.
“Logo comigo!”
A ideia de que o fim podia estar próximo, de que a minha vida, então, tinha sido aquilo, só aquilo e nada além daquilo, pareceu‑me insuportavelmente sombria e macabra, como o riso de hienas num funeral.
“Não vai acontecer comigo, não pode ser!” Procurei me consolar imaginando cenários ainda piores que o meu: podia ter sido atropelado; podia ter sido convocado para uma guerra; podia estar em coma, na uti, vítima de um derrame ou de uma bala perdida...
Logo a seguir me veio à mente o caso de Dostoiévski, absolvido da pena de morte a que fora injustamente condenado por um delito político, jovem ainda, graças a um indulto do czar Nicolau i recebido minutos antes do fuzilamento, quando tudo parecia terminado para ele. Recordei

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ter lido e me animado a copiar em algum lugar — onde estaria? — a impressionante carta que ele escreveu ao irmão mais velho, Mikhail se não me engano, sob o impacto do trauma, antes de partir para o presídio na Sibéria — a “casa dos mortos” — onde haveria de cumprir a pena de exílio e trabalhos forçados a que fora condenado. (Dostoiévski e seus companheiros de paredão nunca souberam, nem eu tinha noção quando li sobre o caso na faculdade, mas o drama da execução e do perdão providencial não passava de uma elaborada farsa: uma encenação montada pelo regime czarista com o propósito de quebrar o ânimo e aterrar o espírito dos jovens agitadores.)

Preciso achar e reler essa carta, anotei na memória, e foi precisamente o que me pus a fazer assim que cheguei em casa e subi correndo as escadas rumo ao escritório. E lá estava ela, copiada à mão na contracapa de um antigo caderno de estudo: Não me sinto abatido, não perdi a coragem, meu irmão. A vida está em toda parte, a vida reside em nós e não no mundo que nos rodeia. Perto de mim haverá homens, e ser um homem entre homens, e se‑lo sempre, em quaisquer circunstâncias, sem desfalecer nem tombar, eis o que é a vida, o verdadeiro sentido da vida. “Isso é grandeza, isso é coragem!”, repeti comigo, buscando tonificar o ânimo. Em nenhuma hipótese posso me deixar abater, fraquejar o espírito, perder a fibra; se tiver mesmo de morrer, pois bem, que seja! — morro de pé, sem lamúrias, sem refecer o brio, morro como um guerreiro.
O fato, porém, é que no fundo da alma, apesar de tudo, eu não me sentia pendurado à vida por um fio. Por algum

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motivo obscuro, simples desejo cego e irrefreável talvez, eu pressentia que aquele não seria ainda o meu fim; alguma coisa aconteceria e me salvaria do pesadelo, só podia ser isso, por mais que o meu intelecto frio teimasse em contrapor, sem dó ou comiseração, que aos trinta e poucos anos, com um tumor alojado no cérebro, a sombria verdade era só uma: o prognóstico era péssimo. O intervalo entre a descoberta do tumor e a cirurgia foi misericordiosamente curto. Pedi licença da universidade, avisei parentes e amigos, todos impecáveis na expressão de choque e solidariedade, e cumpri os exames pre‑operatorios. O dr. Nelson Tardelli, de quem vim a me tornar amigo, inspirava minha total confiança; logo que nos vimos, na primeira consulta, percebemos que já nos conhecíamos de vista, pois ele era o irmão mais velho de um ex‑colega de ginásio. A expectativa da operação exacerbou a minha veia supersticiosa; passei a detectar sinais e presságios do meu futuro em toda parte, quase sem pensar no que fazia. O reencontro de um rosto familiar naquela hora crítica não tardou a se encaixar no esquema e foi prontamente assimilado, sabe‑se lá por quê, como ótimo augúrio.
Da cirurgia em si, mais de oito horas na mesa, só recordo as preliminares: a cabeça sendo raspada e a agulha do anestésico intravenoso picando a dobra do antebraço.
Era minha primeira viagem desse tipo: um mergulho no breu. Um sono de outra ordem e potência, se é que a palavra sono é cabível: absoluta supressão do tempo e do fluxo da consciência — um sono de ninguém. Haveria prévia

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mais completa e definitiva do que o apos‑a‑morte e o pre‑nascimento, eternidades fora do tempo, por tudo quesabemos, podem representar? Para todos os efeitos, podia ter empacotado ali mesmo. O retorno ao reino dos vivos foi gradual. Ao recuperar uma nesga de consciência, senti os membros do corpo paquidérmicos e doloridos, como se tivesse sido espancado a pauladas; depois adormeci de novo, despertei melhor, e fui me acostumando. O clímax do dia — momento mágico e inesquecível — foi quando o dr. Jordão entrou de repenteno quarto, cumprimentou a enfermeira, esboçou um sorriso, e disse ter ótimas notícias. “Você tem muita sorte.” A operação tinha sido bem‑sucedida, e, melhor, o tumor era não só de baixa malignidade — um tipo de câncer chamado oligodendroglioma (dou o nome completo, preciso manter boas relações com ele) — como de reduzida probabilidade de reincidência. “O próximo passo”, avisou antes de se retirar, “é a radioterapia, coisa de um a dois meses no máximo, dosagem mínima; terminado o tratamento, você poderá ter uma vida normal.” Exultei. Depois de tantas notícias ruins, aquela me fazia ressurgir das trevas. Sentenciado e salvo pelo giro da roleta molecular, sobrevivi. Desvairada alegria. Tive ímpetos de sair saltando de felicidade e golpeando o ar pelo quarto, como quem acaba de marcar o gol da vitória na final do campeonato, como se um megaton de sombra e terror tivesse se despregado do peito, como um súbito transbordar da alma (perdoe a efusão, mas era a minha vida no patíbulo). Inebriante alívio.

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Fonte: Revista ÉPOCA (Ed.da semana) online, 30/07/2010

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