Europa e EUA vão precisar mais e mais um do outro.
Eis um casamento tempestuoso
Simon Tisdall*
Coube a Barack Obama, como de costume, identificar o problema. Mas, como de costume, ele não soube como solucioná-lo. Discursando em Estrasburgo, na França, no coração das terras subsidiadas da União Europeia em abril do ano passado, Obama se queixou da crescente antipatia mútua entre Europa e Estados Unidos, que já beirava a hostilidade aberta. Os europeus com frequência eram culpados de um "insidioso" antiamericanismo, enquanto os americanos às vezes "se mostravam arrogantes, desmerecendo e até ridicularizando" as conquistas da Europa.
Para os ouvidos europeus, a análise do presidente Obama - uma peça característica de construção de consenso - soou plenamente razoável, até banal. Na quinta feira, José Barroso, presidente da Comissão Europeia, demonstrou concordar, dizendo ao jornal britânico The Times: "O relacionamento transatlântico não tem correspondido a seu potencial".
Mas, nos Estados Unidos, a crítica das atitudes americanas feita por Obama, sua humildade estudada e seu implícito pedido de desculpas pelo comportamento arrogante do governo de George W. Bush foram instantaneamente condenados por alguns comentaristas como uma traição extraordinária e sem precedentes, ainda mais grave por ter sido cometida em solo estrangeiro.
Fora de si de tanta indignação, o colunista e guru Charles Krauthammer comandou o ataque na Fox News: "Obama diz que ‘há nos EUA uma incapacidade de reconhecer o papel de liderança desempenhado pela Europa no mundo’. Bem, talvez isso seja porque quando houve uma guerra civil bem diante dos narizes europeus, nos Bálcãs, e um genocídio, o continente nada fez até que surgisse a liderança americana. Talvez seja porque quando o Kuwait foi invadido o continente nada fez até que surgisse a liderança americana. Talvez seja porque, com os EUA gastando mais de meio trilhão de dólares por ano para manter abertas as rotas marítimas e defender o mundo, a Europa tenha começado a gastar alguns trocados com a defesa. É difícil reconhecer o papel de liderança mundial desempenhado por uma entidade quando esta passou os últimos 60 anos mamando em nossas tetas".
Desprezo e amargura. Muitos americanos partilham dessa fúria. Mas, na pressa de condenar a "turnê de desculpas" de Obama pela Europa (o nome foi posteriormente criado pelo ex-assessor de Bush Karl Rove), o iracundo Krauthammer revelou inadvertidamente sofrer justamente do problema que Obama tentava abordar. Afinal, uma coisa é discordar de um presidente e de suas políticas. Outra é demonstrar tamanho desprezo e amargura diante de todo um continente e seu povo, especialmente em se tratando de países que, bem ou mal, são aliados históricos e próximos, do ponto de vista político, étnico, cultural e linguístico.
Sem saber se é melhor rir ou chorar, os europeus perguntam: isso deve ser levado a sério? O que está havendo? Sejamos honestos: Krauthammer tem algo de palhaço. E é dono de um sobrenome bastante europeu.
Vistas a partir da Europa, da qual a Grã-Bretanha é (discutivelmente) parte, as raízes do antieuropeísmo americano parecem ser muitas e variadas. Numa das extremidades do espectro, há a popular opinião de que a Europa não é capaz de sustentar o próprio peso num mundo que Washington gostaria de moldar de acordo com seus desígnios. Na outra extremidade, temos o desagradável fato da ignorância generalizada dos americanos - exacerbada pela indiferença - em relação a tudo que é europeu.
Não faltam exemplos dessa ignorância. Durante a cobertura do sítio aos membros do Ramo Davidiano em Waco, Texas, em 1993, um colega americano perguntou com toda sinceridade a um repórter europeu: "Suécia é um país ou uma cidade?" Em Richmond, Virgínia, um motorista de táxi parabenizou um turista britânico por não ter de se importar com eleições "porque vocês têm a rainha". E houve também a garçonete de Arkansas que perguntou a um inglês desavisado: "Que idioma vocês falam no seu país?".
Mas, historicamente, o antieuropeísmo não é um fenômeno novo. O primeiro presidente americano alertou contra "alianças permanentes" depois de uma bem-sucedida conspiração em aliança com os franceses contra os ingleses na Guerra Revolucionária. O presidente James Monroe definiu sua famosa doutrina especificamente para manter as potências europeias fora de um Novo Mundo que Washington - na época, muito mais fraca - tinha a presunção de desejar para si (Moore se esqueceu de mencionar que a encarregada de garantir o respeito à sua doutrina seria a Marinha Real Britânica).
Ruptura. Medo, inveja, anticolonialismo, anti-imperialismo, complexos de superioridade e inferioridade cultural, comércio, rivalidades políticas e militares e a busca americana por sua identidade foram fatores que alimentaram o sentimento antieuropeu conforme o novo país buscou se diferenciar dos velhos países dos quais a maioria de sua população era proveniente. Muitos desses fenômenos continuam relevantes até hoje.
"Para os americanos, a expressão do sentimento antieuropeu pode ser uma forma de construir e demonstrar sua identidade e patriotismo", disse Patrick Chamorel num estudo do Instituto Universitário Europeu publicado na Itália em 2004. "O antieuropeísmo sempre fez parte do diferencial americano, que se definiu pelo contraste em relação à história, política e sociedade da Europa."
Para os europeus, seria fácil desmerecer as generalizações eurofóbicas e os estereótipos se tais fenômenos se restringissem aos pseudointelectuais neoconservadores, aos evangélicos do Cinturão Bíblico e aos provincianos xenófobos do Meio Oeste.
Mas, desde que a União Europeia deixou a peteca cair nos Bálcãs nos anos 90, uma poderosa mistura de influentes pensadores, governantes e comentaristas americanos conferiu ao antieuropeísmo uma respeitabilidade que não pode ser descartada imediatamente. Nos principais temas que preocupam os americanos - defesa, segurança, terrorismo, intervenção, livre comércio, soberania e nacionalismo -, o argumento de que a Europa perdeu o rumo ganhou força. E, enquanto uma endividada União Europeia encara o abismo fiscal, é quase possível sentir a alegria do outro lado do Atlântico com o fracasso do Velho Continente.
Nos EUA, o debate sobre a Europa ganhou e perdeu força ao longo da última década, nunca chegando a uma conclusão e sempre repleto de paixão e fúria. Em Os Últimos Dias da Europa: Epitáfio para um Velho Continente (2007), o historiador Walter Laqueur resumiu os argumentos negativos. A Europa está "em vias de desaparecimento" enquanto força no mundo, defende ele, pois a integração política por meio da União Europeia perdeu impulso, as políticas de bem-estar social são insustentáveis, as taxas de fertilidade estão abaixo do nível de reposição e a assimilação de populações de imigrantes muçulmanos cada vez mais hostis e raivosas fracassou. A Europa não pôde e não quis se defender, de acordo com Laqueur. Inspirado na obra de Gibbon, Decline and Fall: Europe’s Slow Motion Suicide (Declínio e Queda: O Lento Suicídio Europeu), de Bruce Thornton, também traz uma compilação de fatores que supostamente explicariam a morte inevitável do fracassado experimento utópico europeu: um crescimento econômico lerdo e regulado pelo Estado, alto desemprego, volumosos benefícios sociais, uma deprimente cultura de museu e o abandono da cultura cristã, que estimulou o crescimento de "pseudo-religiões" - entre elas o ambientalismo, o multiculturalismo e o hedonismo.
Terra de leis x lei da selva. Houve nos EUA uma reação correspondente, ainda que discreta, contra o sentimento antieuropeu nativo. O livro de T. R. Reid, ex-correspondente internacional do Washington Post, intitulado The United States of Europe (Estados Unidos da Europa) e publicado em 2004, retratou esse outro lado. Reid elogiou especialmente o advento da moeda comum - o euro - e a criação de uma Constituição Europeia, fatores que, na opinião dele, seriam prova da crescente influência da Europa no mundo. Outros, como Jeremy Rifkin e Steven Hill, demonstraram entusiasmo semelhante quando escreveram sobre o advento da "Geração E" - jovens europeus que não se importam com as fronteiras nacionais e mergulham na autonomia de uma cultura comum.
O escritor americano Robert Kagan sintetizou de maneira célebre esses pontos de vista conflitantes em seu influente ensaio Marte e Vênus, publicado em 2002 na Policy Review. "É hora de parar de fingir que europeus e americanos partilham de um mesmo ponto de vista em relação ao mundo, e até de que possam habitar o mesmo mundo", disse. Um grupo habita a terra fantasiosa das leis, e o outro, uma terra governada pela lei da selva.
Inversão de papéis. Mas o resumo de Kagan se mostrou casual demais diante de um escrutínio mais rigoroso. Será que Kagan é capaz de explicar como exatamente os dois "lados" inconciliáveis descritos por ele conseguiram trocar de papel ao longo dos últimos cem anos? Assim como as potências europeias do século 19 usaram a força bruta para impor sua vontade e sua visão imperial enquanto os insuportavelmente constitucionais Estados Unidos mantinham as mãos limpas e observavam impassíveis (enquanto se tornavam mais fortes e mais ricos sob a proteção de facto da Grã-Bretanha), agora os EUA brandem o martelo enquanto os europeus olham de soslaio, protegendo-se enquanto isso sob o guarda-chuva do sistema de defesa de Washington.
Além disso, Kagan não foi capaz de prever as fraquezas inerentes à argumentação de cada um dos lados. O modelo coletivista europeu do soft power encontra-se diante de desafios graves após a quase implosão da tão elogiada Constituição da UE e em meio a amargos debates sobre o resgate à falida Grécia e o possível colapso do euro. O modelo americano do hard power viu-se prejudicado pela incapacidade militar dos EUA de "vencer" duas guerras importantes, no Iraque e no Afeganistão, e pela crise financeira mundial, um ataque cardíaco capitalista do qual o paciente ainda não se recuperou.
Mas, no fim, as preferências da política externa não são o principal catalisador do persistente choque cultural transatlântico. De todas as diferenças enxergadas pelos americanos na Europa, é a decadência moral do Velho Continente a que mais os indigna. Esse lamento ético é, das muitas cisões, a mais insuperável, pois não envolve um debate sobre políticas e medidas, e sim o status do modo de vida de uma civilização. Citando conservadores como Richard Perle, que lamentou a "desorientação moral" europeia e a perda de "fibra moral" na França, Timothy Garton Ash resumiu, na New York Review of Books, o estereótipo de covardes sem deus que os americanos em geral projetaram para os europeus durante o processo que culminou com a guerra do Iraque em 2003. "Eles (os europeus) são fracos, petulantes, hipócritas, desunidos, ambíguos e apaziguadores que às vezes se mostram antissemitas e, com frequência, manifestam seu antiamericanismo", escreveu Garton Ash sobre o implícito desdém dos americanos pelos seus aliados. As tendências sociais parecem reforçar constantemente essa opinião. Na Europa, o avanço do secularismo e a difusão das atitudes sociais ultraliberais contrastam cada vez mais com o novo puritanismo americano.
Como disse Obama, é uma pena que não possamos viver em harmonia. Levando-se em conta quanto o mundo globalizado está desgastando cada vez mais a cooperação internacional, quanto o poder absoluto dos EUA está recuando com o fim do momento unipolar e quanto a China e as demais potências ascendentes do século 21 estão contestando o equilíbrio de poder atual e os valores e crenças que estão por trás dele, parece inevitável que Europa e EUA se vejam precisando cada vez mais um do outro. Trata-se de um casamento turbulento, mas ainda um casamento. E todas as alternativas são piores.
Mas acho que isso não passa da conversa mole de um europeu fracote e liberal, certo? Eu consideraria este um ponto de vista pragmático sobre a Realpolitik, mas que poderia ser equivocadamente interpretado como tentativa de apaziguamento, coisa que jamais seria aceita nos EUA. Nas palavras contidas em um e-mail que certa vez recebi de um leitor nova-iorquino: "Não esqueça quem foi que salvou seus traseiros duas vezes, meu chapa. Se não fossem pelos bons e velhos Estados Unidos da América, todos vocês estariam falando alemão".
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*SIMON TISDALL É EDITOR ASSISTENTE E COLUNISTA DE THE GUARDIAN
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Fonte: Estadão online, 25/07/2010
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