Maurício Gomide Martins*
[EcoDebate] A Natureza registrou nos genes de cada espécie animal todos os comportamentos necessários à sobrevivência, que se manifestam inconscientemente no momento adequado e necessário. A isso se dá o nome de instinto. A lista desses códigos varia segundo a espécie, como modo de distingui-la de outra e manter, em princípio, a pureza biológica.
Os humanos também possuem esse ordenamento básico. A manifestação desses atributos genéticos nos humanos geralmente é conhecida pelas suas variantes: pulsão, intuição, inspiração, índole, aptidão, caráter, pendor, altruísmo, compaixão e outras. O conjunto de tais qualificações move ações e estabelece uma diferenciação individual, tal como suas feições faciais.
Entre essas condicionantes genéticas, destacamos a que impele o indivíduo a não agredir ou mesmo querer proteger os infantes de sua própria espécie. Uma onça pintada ataca e se alimenta de filhotes de outros animais, mas não dos da própria estirpe. Essa atitude e outras consentâneas, no seu conjunto, são chamadas de instinto de sobrevivência da espécie. O comando instintivo induz a onça a preservar a linhagem a que pertence o que constitui uma atitude plena de coerência. Para melhor entendimento, chamaríamos a essa faceta instintiva de “onçacentrismo”, isto é, um tipo de egoísmo de espécie, caráter inerente a toda a categoria animal. Pensaria uma onça, com justa razão: “tudo se justifica em benefício da onçanidade; as outras espécies existem exclusivamente para nosso proveito”.
A convivência de indivíduos de classes diferentes, desde a infância, desenvolve uma forte empatia recíproca, tornando-os amigos. Isso é possibilitado pela ausência daquele instinto na infância, que somente sobressai após aquele estágio primário. Mas essa anulação de instinto se dá apenas com relação ao indivíduo-amigo, prevalecendo na maturidade o egoísmo de espécie, ou exclusividade de um grupo em relação às demais classes.
Os humanos, quando se comportam de forma a afirmar sua individualidade com exclusão de outros, esse procedimento é chamado de egoísmo, uma atitude condenável aos interesses dos demais componentes do grupo. O antropocentrismo é o mesmo egoísmo, mas se manifesta em relação à espécie e influencia negativamente toda a sociedade biológica, inclusive a própria categoria humana. E o pior: não a deixa enxergar os danos causados ao essencial equilíbrio do ecossistema, o que podemos traduzir como suicídio lento.
Numa situação de existência ideal e equilibrada, essa mola propulsora ajudaria a coordenar a normalidade nos mecanismos ambientais. Mas, com o advento do fenômeno do crescimento excessivo de humanos e aceleração de suas ações destrutivas, em escala geométrica, o salutar equilíbrio ambiental foi quebrado. Isso é extremamente prejudicial aos outros seres vivos, nossos irmãos da flora e fauna, que habitam o mesmo planeta.
Tal situação representaria o mesmo desequilíbrio vivencial se o mundo se visse ante a população faminta e exigente de 6,7 bilhões de ursídeos. E eles somente pediriam alimento e espaço. Imaginem se eles exigissem automóveis, aviões, cidades, confortos, produtos supérfluos e tudo o mais que os humanos tanto desejam e incorporam à sua vivência como itens “necessários”?
Numa simples amostra, felizmente localizada e reduzida na área e no tempo, é do conhecimento geral a ocorrência eventual de superpopulação de gafanhotos que, na ânsia de se alimentarem arrasam tudo o que é comível em seu caminho.
Na linguagem da civilização predatória em que estamos inseridos, as atitudes provenientes do instinto exclusivista humano são tidas como corretas e legítimas, como se pode perceber em cenas de matadouros de animais para retirada de peles para enfeite humano; de glândulas sudoríparas para fabricação de perfumes; de matanças covardes sob justificativa de esporte, e outras barbaridades que, a bom juízo, convulsionam e desequilibram todo o ecossistema e nossas qualificações espirituais. São tidas como normais também atitudes de assistência médica para prolongar vidas humanas indistintamente, sob o impulso inconsciente do antropocentrismo. Até criminosos – escória viva que comete ações absurdas de morte a pais, mães e crianças inocentes por motivos vis – quando feridos são transportados para hospitais no afã de serem salvos.
O comportamento de corporação constitui uma forte variante subconsciente de exclusivismo de classe. Como exemplo, vemos a livre manifestação desse dominador genético nas contendas futebolísticas, quando o indivíduo passa a extravasar ódio ao antagonista, ao ponto de cometer atos agressivos e insanos para lhe tirar a vida.
Esse exclusivismo genético, na forma de instinto condutor, já foi muito útil quando os humanos eram poucos nos tempos primitivos e lutavam para sobreviver como espécie. Hoje, com excesso superlativo e absurdo de quantidade e ações humanas, esse atributo se tornou prejudicial em todos os seus aspectos, seja no campo social, religioso, econômico e, essencialmente, no ambiental. Tornou-se altamente impeditivo para que a razão possa livremente se manifestar e nos conduzir pelo rumo adequado.
Nos humanos, o exclusivismo de espécie ora se apresenta como inconsciente, ora como subconsciente. Quando neste último aspecto, a razão nos proporciona condições de trazê-lo para o consciente, tornando-o perceptível e sujeito a análise crítica, o que torna mais clara e justa a visão de conjunto.
Quiséramos que essa força interna se aflorasse à humanidade para que ela tomasse a necessária consciência ambiental que ameaça a Vida. Mas, como a linguagem vivencial dominante é a dos interesses econômicos materialistas, temos que atingir aquele objetivo por meio das argumentações ecológicas fundamentadas. As pregações emocionais virão tardiamente: quando os fatos se expuserem irreversíveis, como a subida do nível dos oceanos e conseqüente destruição de obras da atual civilização; quando o clima mundial se manifestar furiosamente com os poderosos recursos de que dispõe, cujas conseqüências convencem qualquer mente, por mais inerte que ela seja.
Devemos pôr em evidência que o instinto do exclusivismo de espécie (antropocentrismo) deve ser ignorado pelo comando do senso mental a fim de adquirirmos a capacidade de enxergar a realidade. Devemos ter a razão liberada para, na reflexão, retirar de nossa visão o tapume antropocentrista que nos impede de perceber a verdadeira e real posição do ser humano no planeta.
Algo de grande sabedoria deve ocorrer com os lemingues, pequenos animais da família dos roedores e que habita o círculo polar norte. Eles não possuem predadores e têm fartura de alimentos. No entanto, quando percebem que sua população está muito crescida, grande parte deles se joga nos precipícios de beira-mar, em holocausto ao sadio equilíbrio populacional. Seriam eles animais filósofos?
A eliminação mental do antropocentrismo abre caminho para que os ambientalistas superficiais passem a perceber, com profundidade, os diversos aspectos do problema. Isso aclarará a mente para que possam entender quão frágeis são seus conselhos para economizar água, eletricidade, embalagens plásticas e outras insignificâncias. Esses ambientalistas vêem a degradação ambiental como minúsculo incêndio que pode ser apagado com pequenas colheradas de água. Ainda não perceberam que estamos frente à beira do precipício e que o incêndio total se aproxima pelas costas.
Livrem-se do antropocentrismo quando meditarem sobre os assuntos pertinentes ao nosso meio ambiente. Sejam justos em seus julgamentos.
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*Maurício Gomide Martins, 82 anos, ambientalista e colunista do EcoDebate, residente em Belo Horizonte(MG), depois de aposentado como auditor do Banco do Brasil, já escreveu três livros. Um de crônicas chamado “Crônicas Ezkizitaz”, onde perfila questões diversas sob uma óptica filosófica. O outro, intitulado “Nas Pegadas da Vida”, é um ensaio que constrói uma conjectura sobre a identidade da Vida. E o último, chamado “Agora ou Nunca Mais”, sob o gênero “romance de tese”, onde aborda a questão ambiental sob uma visão extremamente real e indica o único caminho a seguir para a salvação da humanidade.
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