'Grito de revolta contra a injustiça'
Em entrevista por e-mail, Boaventura de Sousa Santos — que também está lançando no Brasil o livro “Epistemologias do Sul” (Cortez), organizado com Maria Paula Meneses — comentou sua incursão pelo rap e resumiu seu credo político: “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”, diz.
O que leva um sociólogo respeitado a deixar de lado a escrita acadêmica para compor um rap?
A modernidade ocidental, sobretudo a partir do século XVIII, distinguiu entre formas de racionalidade: a moral-prática, a estético-expressiva e a instrumental-cognitiva.
Esta última, sob a forma da ciência moderna, veio a dominar, colonizando inclusive as demais (tanto o positivismo jurídico como o futurismo são expressões disso). Cada racionalidade desenvolveu as suas formas de expressão e foi por via delas que procurou manter a sua identidade face às demais.
Assim surgiram os discursos jurídicos e políticos, as expressões estéticas das artes e da literatura e a escrita científica (internamente muito diversificada).
Todos estes discursos, expressões estéticas e escritas têm limites que lhes são impostos pelos seus códigos genéticos. Todas elas admitem transgressões e contaminações cruzadas mas são ciosas da sua identidade e punem quem as desrespeite. Tenho escrito cientificamente muito sobre a modernidade ocidental e tenho criticado sistematicamente os modos como ela, supostamente autolegitimada por uma promessa exaltante de emancipação, se transformou numa matriz de regulação e dominação social que assumiu três formas principais: o capitalismo, o colonialismo e o socialismo burocrático.
Ora isto, que pretende dizer muito, deixa muito por dizer. Onde estão as pessoas e os seus dramas íntimos; as lutas de resistência e as resistências na luta; a criatividade moderna entre a loucura, a violência e o fanatismo; a ruptura com o ancien régime e todos os novos silêncios do universo a que chamamos deus e com quem julgamos falar na farmácia, no ponto de droga, na meditação, nas massagens, no jogging; a poesia, sempre à beira de não existir; a brutalidade sedutora da ordem e do progresso; e sobretudo tanta coisa que nem imaginamos que existe porque existe sobre a forma de ausência e que no pior (melhor) dos casos nos cria mal-estar, provoca insônias e nos faz mudar de namorada ou namorado. Ora, nada disto pode ser dito academicamente (mesmo que o queira descrever em prosa) se o meu único objeto experimental for eu mesmo. É deste limite e do inconformismo perante ele que nasce o “Rap” como nasceram os meu livros anteriores de poesia, dois deles editados no Brasil (“Escrita INKZ” e “A janela presa no andaime”).
Seu “Rap Global” é extenso, possui variados temas e referências, mas por sua própria ambição e abrangência parece não dar conta de todos assuntos que levanta. De que trata afinal esse rap?
Escrito por um jovem de um bairro periférico de Lisboa, filho de um mulato angolano vindo para Portugal durante o processo de independência de Angola, este rap — que transgride o cânone letrista do rap — é um grito do Ipiranga de quem foi até os confins da mais louca e oculta modernidade ocidental para poder denunciá-la sem peso nem medida mas com conhecimento de causa e tonitroar aos cinco ventos (o quinto vem de dentro) que o rei e a rainha vão nus acolitados por uma legião de fariseus colonialistas, racistas, fascistas, rentistas, exploradores, violentos quase todos cidadãos honestos, filhos de boas famílias, com bons empregos, partidários dos bons partidos e defensores dos direitos humanos.
O senhor diz que esse rap “transgride o cânone letrista do rap”. Em que cânone está pensando? E que rappers o senhor admira?
Não há propriamente um cânone e mesmo as relações entre o rap e o hip-hop são complexas e variáveis.
Há um texto e um ritmo de batida. Mas há tendências e modas e é por isso que existem hoje o rap alternativo e o hiphop alternativo. Estes últimos surgiram como reação à “domesticação” comercial do rap que tendeu a marginalizar a radicalidade da mensagem política.
Neste sentido, pode dizerse que o “Rap Global” é alternativo. Partilha com as tradições rap o fato de que o texto é mais importante que a melodia e a harmonia. Neste domínio, o rap é igual ao canto gregoriano.
Partilha o ritmo da batida. Mas não o respeita inteiramente.
Há pausas para frases solitárias e de solidão (“ninguém sai vivo da vida”) em que o rapper se interrompe a si próprio como se bebesse um copo de água mental. Tem uma duração imensamente maior como se fosse uma jam session. Bem na tradição do melhor rap é um grito de revolta contra a injustiça social, o racismo e a violência.
Mas é também um grito de revolta contra os gritos de revolta que até agora deram em nada. Por isso tem de interpelar toda a tradição eurocêntrica, mesmo a mais transgressiva, fazendo dela uma amálgama obscena onde Gertrude Stein tem de medir forças com o Eminem e Nietzsche surge como criador de touros bravos na cidade portuguesa de Salvaterra de Magos. Esta interpelação confere ao “Rap” uma dimensão detetive.
Sei que com o Google é hoje fácil detectar referências ainda que quase todas corrompidas. Mesmo assim, estou convencido de que algumas delas vão exigir muito esforço a decifrar (quem estará para isso?). Quem será a comadrita de Borges? Os meus rappers preferidos estão citados, Kanye West, o primeiro Jay-Z, Eminem etc.
Já a partir do título e pela forma como é composto, este rap sugere uma visão global sobre os problemas do mundo contemporâneo. O senhor acredita na possibilidade de se reduzir os atuais problemas da Humanidade a uma única causa comum? A própria ideia de um rap global não termina por desconsiderar a diversidade e as peculiaridades locais?
Não, não há causa comum. As consequências é que são comuns: opressão, marginalização, humilhação, silenciamento, fome, desrespeito, violência, a mutilação física e moral. A diversidade e as peculiaridades estão no modo como causas tão diferentes como a exploração operária, a desapossessão dos camponeses, indígenas e quilombolas, a homofobia, o racismo, a indiferença, o tédio, o individualismo, a banalização do horror, a repetição da novidade que não inova procuram convergir nas consequências e como essa convergência é contrariada pela diversidade e pelas peculiaridades das diferentes lutas de resistência.
Entre autores e personagens citados em seu livro estão Baudelaire, Ezra Pound, Rimbaud, a Liga da Justiça e Wolverine. O que há de comum entre eles?
O existirem e portanto serem passíveis da pergunta fundadora de Leibniz: porque é que existem em vez de não existirem? Menos enigmaticamente: eles e muito outros exprimem a diversidade daquilo que procuramos retratar com a palavra modernidade e que, como conceito, diz tanto sobre o que quero dizer como as palavras mar e areia dizem sobre Copacabana.
Qual sua relação com a cultura pop? Além de Wolverine e da Liga da Justiça, o senhor cita também Hulk, X-Men, Thor, Super-Homem... O senhor é um grande leitor de quadrinhos?
Sim e um dos meus filhos é considerado um dos mais profundos conhecedores de quadrinhos (em Portugal: banda desenhada) e sobre os quais escreve regularmente no JL (o “Jornal de Letras” do meu querido amigo José Carlos de Vasconcelos).
Entre os vários autores citados está o brasileiro Oswald de Andrade. Foi uma citação casual ou o senhor é um leitor dele? Caso seja, o que acha interessante em sua obra?
Nada é casual no rap. O verdadeiro determinismo é o da poesia. Oswald de Andrade é a modernidade barroca, a única que pelo excesso atinge a medida. Ele representa melhor que ninguém a dialética mais profunda da modernidade ocidental (só experienciável a partir da periferia): o desejo da universalidade e a nostalgia do único.
Uma frase repetida em corpo ampliado e negrito ao longo do texto é “real life tribal brother/ improve comedy”, algo como “a vida real irmão tribal aprimora a comédia”. É também uma citação, ou uma frase sua que para você resume o tom do texto, ou apenas uma espécie de refrão?
A frase é do Queni N.S.L. Oeste. É um anúncio de néon intermitente que anuncia o rap como se anuncia um restaurante ou um motel.
Essa transição do ensaio para o rap atende apenas a um desejo de comunicação com um público maior, ou a uma necessidade de dizer algo que não se poderia dizer num trabalho sociológico?
Mentalmente, na minha hora-a-hora, eu transito entre diferentes formas de escrita e a sua gestação é mais simultânea e caótica do que se pode imaginar. Curiosamente, nunca imagino públicos distintos.
Mas vivo obcecado pelo que não consigo dizer quando estou a ser claro para mim e para os outros. Por isso, os fragmentos da construção, desde os mais imaginados aos mais assentes em protocolos empíricos, começam por ser mais livres e disponíveis. Depois, como tenho de sair à rua da comunidade científica bem vestido, adequo os fragmentos à lógica do vestuário-registro. Não faz muito sentido botar gravata e calções de praia. Tenho um guarda-roupa imenso e de fato só uso uma pequena parte. Como vê, tenho saído à rua da poesia poucas vezes, e quase nunca dão por mim. Estou admirado com a sua ousadia.
Como intelectual interessado na transformação social, o senhor ainda conserva crença no poder revolucionário da arte? De que maneira pensa a relação entre arte e política?
Não há emancipação social; há emancipações sociais unidas (porque diferentes) por uma aspiração que uma vez resumi assim: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.
A arte afirma o seu poder revolucionário na medida em que colabora neste projeto.
A modernidade ocidental, ao mesmo tempo que, como referi acima, separou a racionalidade estética da racionalidade política angustiou-se sobre as relações entre elas. Desde Richard Wagner (“Arte e Revolução”, de 1849) a Leon Trotski (“Literatura e Arte”, de 1923) o que separa a arte e a política é também o que as une: são dois modos de fazer emergir o possível, o “aindanão” das sociedades. Os meios que usam e os modos como surgem fazem toda a diferença e por isso é que a relação entre elas é tão complexa. Uma coisa é certa: o rap, tal como o blues, não podia ter sido inventado pela classe dominante.
Rimbaud dizia que a arte, como a poesia, vai sempre à frente. Mas à frente de quê? O futurismo foi parte do movimento revolucionário que dominou a Rússia depois de 1917 mas alguns anos mais tarde os futuristas italianos faziam a apologia de Mussolini e do fascismo.
E Dali, apesar de toda a sua estonteante criatividade surrealista, foi expulso do movimento por apoiar o fascismo de Franco na Espanha.
Num texto recente o senhor chamou Cuba de “um problema difícil para a esquerda”. Seria possível fazer um rap apontando os problemas do regime cubano?
Esse texto foi muito acarinhado e lido em Cuba por democratas, socialistas e comunistas apesar de ter sido banido pela ortodoxia ideológica. Muitos dos problemas do regime cubano tal como muitos dos problemas da democracia portuguesa e brasileira estão no rap. É só ver em vez de olhar e sentir em vez de ler.
O senhor pensou em gravar o rap global? Alguém já propôs um ritmo para sua letra?
Claro que gostaria de o gravar com rappers e sob a magnífica batuta do meu amigo Gilberto Gil, que escreveu o prefácio para a “Escrita INKZ”. O ritmo está na letra.
Ora ouça: “Jesus caminha/ caminha com alguém/ que pode ser ninguém/ Allah caminha/ nas ramblas de granada/ e não acontece nada”.
__________________________________________A entrevista é de Miguel Conde e publicada pelo jornal O Globo, 24-07-2010.
Fonte: IHU online, 23/07/2010
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