Entrevista.
O arquiteto chileno Alejandro Aravena (foto) criou uma equação para atacar o que considera o ponto mais frágil dos projetos de arquitetura social: a qualidade da moradia. "É melhor fazer meia casa boa do que uma casa ruim", disse à Folha.
Aravena, 44, dirige o Elemental, grupo que ganhou o Leão de Prata da Bienal de Veneza de 2008 e fará o primeiro projeto no Brasil, em Paraisópolis, favela da na zona sul de São Paulo. As obras dos 120 apartamentos devem começar no próximo mês.
O percentual de autoconstrução caiu de 50% para cerca de 10% por causa de lei brasileira. Se fosse maior do que 50 m2, o apartamento não seria considerado habitação de interesse social e perderia os subsídios, o que inviabilizaria o projeto.
Aravena concilia projetos de moradia social com os de vanguarda. Tem obras nos EUA, na Alemanha e na China, pelas quais é apontado como um dos grandes criadores da arquitetura contemporânea.
Na fábrica da Vitra na Alemanha, a maior concentração de estrelas da arquitetura mundial, ele projetou um centro que ficará ao lado de obras da anglo-iraniana Zaha Hadid e dos suíços Herzog e De Meuron.
Em seu escritório em Santiago, uma torre de vidro de ar corporativo, ele critica o programa "Minha Casa, Minha Vida", do governo Lula, por não se valer da capacidade das famílias de construir por conta própria: "Se essa capacidade informal existe, não seria melhor usá-la?".
Folha - Como um arquiteto de vanguarda descobre que precisava fazer habitação social?
Alejandro Aravena - Foi por um sentido de vergonha própria. Eu estudava na Universidade Harvard, havia sido convidado para dar aulas e estava numa mesa com o ministro chileno de Habitações, um engenheiro e um advogado. Todos começaram a falar de habitação social e eu, o único arquiteto da mesa, Não tinha nada para dizer. Fiquei envergonhado por não poder dizer nada sobre habitação social numa discussão importante.
Harvard te põe em contato com o poder, um tipo de oportunidade que não se pode perder. Havia três ou quatro ganhadores do prêmio Pritzker. Eu não podia falar do estado da arte da arquitetura, porque as pessoas que estavam ali produzem o que eu consumo lendo livros ou revistas. O único assunto que eu poderia ter alguma vantagem em relação a eles estava relacionado com o contexto de escassez. Os prédios que eu projetara tinham a ver com isso. Comparando com outros prédios, nós tirávamos leite das pedras.
Quanto custaram esses prédios?
O edifício da faculdade de arquitetura da Universidade Católica custou US$ 125 o metro quadrado. Isso não é nada para arquitetura contemporânea. No Chile, somos treinados para trabalhar com escassez. Com a escassez, como não se pode fazer tudo, tem de fazer o mais relevante. Ao mesmo tempo, 60% do que se constrói no Chile tem algum tipo de subsídio. Era ridículo que eu não tivesse trabalhado em algo social no Chile. Eu fazia arquitetura para o 1% da população que vive como se estivesse em qualquer lugar do mundo.
Não te interessa trabalhar para a elite?
Fazer um edifício para uma universidade privada é trabalhar para a elite. Mas naquele mercado em que 60% das obras recebem subsídio não havia arquitetos de qualidade porque os valores pagos eram muito baixos. Um dos problemas mais difíceis do Elemental foi como pagar arquitetos de qualidade.
Outra pergunta difícil é como fazer moradia social. Não é só por uma questão humanitária ou porque é socialmente importante. Era um desafio profissional trabalhar onde é mais difícil dar uma resposta certa. É uma pergunta que tem mérito intelectual, como dizia outro chileno que estava em Harvard, Andrés Velasco, que foi ministro das Finanças. Um milímetro que se mova nessa área será multiplicado por mil metros quadrados.
A maioria dos arquitetos deu respostas arquitetônicas a essa pergunta. Por que você entrou no campo econômico?
Isso é muito importante, esse é o ponto. Há variáveis econômicas, sociais, políticas, financeiras, urbanas. A minha resposta é, de certa forma, uma crítica à arquitetura, principalmente a que se desenvolveu na última década. A arquitetura só se ocupa de problemas que interessam a outros arquitetos, que é o uso estratégico da forma. Era um conhecimento específico para problemas específicos.
A sua pergunta tem a ver com o que aconteceu com a arquitetura nos anos 1930 e 1940 e foi uma das questões explícitas do começo do Elemental. Entre os anos 1960 e 1970, houve uma bifurcação no mundo da arquitetura e alguns arquitetos vivem uma espécie de foro criativo, como se dissessem: "Me deixem ser gênio. Sou talentoso. Deixem-me criar essas obras de arte, mas não me peçam para ter relação com o mundo real. Eu vou criar as regras do jogo".
Esse caminho vai dar numa certa arquitetura de impacto. Um professor de Harvard que foi muito importante para mim, um tipo do Oriente, Hashim Sarkis, dizia que arquitetura que tomou esse caminho adotou a estratégia do choque, do impacto. O preço que pagaram por isso foi serem irrelevantes. A estratégia que se seguiu à irrelevância foi o impacto.
Outro caminho que se abriu nos anos 1960 e 1970 foi o dos problemas inespecíficos: pobreza, segregação, desenvolvimento, violência. Esse discurso levou muitos arquitetos a tratar desses temas duros, que interessam à sociedade como um todo.
São problemas transversais, que poderiam ser tratados por um economista. Não é preciso ser arquiteto ou urbanista para opinar. Todos podem opinar. O problema é que os arquitetos que se dedicavam a essas questões abandonaram o projeto e os conhecimentos. Em vez de projetar, faziam "papers", informes, para organismos internacionais. Perderam a capacidade de fazer projetos. Entendem o fenômeno, mas não propõem nada.
O desafio a partir do ano 2000, quando começou o Elemental, foi cruzar conhecimento específico com problemas inespecíficos. Ocupamo-nos de problemas que interessam à sociedade em geral. Todo mundo pode opinar: o economista, o político e a senhora que não sabe ler nem escrever. Um comitê da periferia pode opinar tanto quanto um político. Usamos o conhecimento de arquitetura, o manejo estratégico da forma, o uso sintético do projeto, para tratar de problemas inespecíficos.
Você não acompanhou outros arquitetos que trabalham com habitação social?
Não, porque sou muito ignorante. Eu não tinha tempo para estudar o que fizeram outros arquitetos. No entanto, sei fazer projetos. No Elemental fomos muito rigorosos com a nossa ignorância. A imobilidade é um risco muito alto quando se enfrenta problemas em que há muita informação acumulada. Quanto se sabe muito, conhece-se tanto as consequências negativas de fazer mal alguma coisa, que você pode ficar paralisado. Por isso fazíamos perguntas estúpidas de quem não sabe nada. Muitas vezes essas perguntas bobas te levam a mover o estado das coisas.
Que tipo de pergunta boba?
Em 2001, quando estava em Harvard, havia uma política habitacional nova no Chile, que dava US$ 7.500 por unidade, para famílias que não podiam ter dívidas hipotecárias. Dava uma habitação de 36 metros quadrados.
Como era uma política nova, o mercado não sabia o que fazer. Eu tive a ideia de destinar o tempo em que estava na universidade a pensar em como fazer uma habitação melhor nessas condições. Aceitamos todas as regras do jogo: o tamanho, o valor, tudo. A pergunta que fiz em Harvard foi: qual é a melhor unidade que podemos fazer com US$ 7.500?
Começamos a fazer um exercício para cem famílias. Nunca se faz uma só casa nesses projetos. Hashim Sarkis propôs outra pergunta. Se são 100 casas, cada uma custando US$ 7.500, qual é o melhor edifício que dá para fazer com US$ 750 mil? Eu estava pensando em como fazer o melhor com US$ 7.500 multiplicando os projetos por cem.
No dia seguinte, disse aos estudantes: peguem tudo o que fizeram até agora e joguem no lixo. A questão agora era como fazer um edifício de US$ 750 mil, em que caibam cem famílias e que possa crescer. Um edifício não pode crescer, a não ser no último piso e no térreo.
Então o que vamos fazer é um edifício do qual vamos retirar todos os andares que não sejam o térreo e o último. Para cada apartamento de 36 m2, deixamos 36 m2 para a família aumentar. Com 72 m2 você tem um apartamento de classe média. Isso duplica a densidade, dá para ter duas famílias por lote. Com isso, você pode comprar terreno não na periferia, a duas horas do centro. Dá para comprar em bairro de classe média. Toda a nossa preocupação era que as casas aumentassem de valor com o tempo.
A ideia de valorização era uma estratégia para mudar a vida dos moradores?
No Chile, a política habitacional era orientada pela ideia de propriedade. O Estado financia, dá subsídio e as pessoas tornam-se proprietárias. Para uma família pobre isso significa a ajuda mais importante que ela vai receber do Estado de uma só vez. Uma casa é a garantia de valorização segura com o tempo. Minha casa, sem que eu tenha feito nada, custa o dobro do valor que paguei há sete anos. Como o solo é um recurso escasso, há valorização. A casa precisa ser um investimento, não gasto social.
O economista peruano Hernando de Sotto diz que uma casa de favela, no Rio ou em São Paulo, é um ativo caro, custa US$ 20 mil, US$ 30 mil. Ele pode ir a um banco e usar esse patrimônio como garantia para comprar um táxi, por exemplo. Se projetarmos essa casa para aumentar de valor com o tempo, ela vai poder pegar mais dinheiro no banco quando precisar. Foi o que ocorreu com a maioria dos projetos do Elemental. As casas valem o dobro do que quando foram construídas. Valorização depende muito da localização. Você só pode pagar por uma boa localização, se tem alta densidade de moradores. A equação que fizemos é a seguinte: a densidade tem de ser suficientemente alta para pagar terrenos bem localizados na cidade, em bairros que valorizem o imóvel.
No Brasil, os projetos de habitação social ficam distante das áreas valorizadas.
As famílias pobres se mudam para as cidades por uma razão muito clara: as cidades concentram oportunidades. Quando você está bem localizado, está inserido na rede de oportunidades: oportunidade de trabalho, de educação, de saúde, de transporte.
As pessoas que mais necessitam da rede de oportunidades estão excluídas dessa rede. Demoram duas horas para chegar até aonde estão concentradas as oportunidades. Temos que inserir as famílias no local que reúnem as oportunidades. Esse solo é mais caro. Para pagá-lo, a única maneira é ter uma densidade suficientemente alta para ratear o preço. O filho de uma família que mora num local assim vai poder frequentar escolas melhores do que as da periferia, hospitais melhores. E o patrimônio familiar valoriza.
Isso nos fez entender que a casa deve ser mais investimento do que gasto social.
Se não houver um projeto, isso não ocorre. A pergunta que precisa ser feita não é quantos metros quadrados terá o imóvel, mas onde ele fica. O que faz o mercado?
A classe média, em São Paulo, Santiago ou Londres, vive em imóveis de 70 a 80 m2. Quando há dinheiro, você compra casas com esse valor, com mais luxo ou menos luxo. É o grosso do mercado imobiliário do planeta. Quando não há dinheiro [para pagar esse imóvel], o que faz o mercado? Pega esse imóvel e o faz menor, com 36 m2. Faz duas coisas: diminui e isola. Isola ao comprar terreno onde ele custa bem pouco. Isso explica a periferia latinoamericana. Se tem dinheiro, compra na cidade. Se não tem, reduz o imóvel e o constrói onde o solo custa quase zero. O que fez o Elemental? Quarenta metros quadrados, em vez de uma casa pequena, podia ser a metade de uma casa boa.
Esse é o projeto de Elemental em Paraisópolis?
Originalmente era. Depois tivemos de mudar o projeto e a porcentagem de auconstrução será mínima. Os políticos não gostam da ideia de auconstrução. No Chile foi parecido. Em 2001, havia uma política nova de habitação, e 95% das licitações não tinham concorrentes. Aproveitamos essa oportunidade. Foi sorte. Havia dinheiro, pressão social, mas o mercado não sabia como fazer.
Foi quando o Elemental teve a ideia da meia casa boa?
Sim. Tem de ser boa. Não é a mesma coisa fazer uma casa pequena de 40 m2 e fazer a metade de uma casa boa também de 40 m2. A política previa 40 m2 para sala, cozinha, banheiro e dois dormitórios. Tudo ruim. Foi aí que surgiu a ideia central do Elemental: é melhor fazer meia casa boa do que uma casa ruim. Mas se você olha 40 m2 com metade de uma casa boa, a pergunta é: que metade fazemos? A resposta foi: a metade que uma família nunca vai fazer bem.
A casa precisa estar na frente do lote. Pelo menos 50% da frente do lote seria construída por nós. Tinha a estrutura para os 80 metros finais. Como tinha uma estrutura pronta, os primeiros 40 m2 custavam US$ 7.500 e os 40 m2 seguintes, US$ 1.500. Porque a estrutura é cara. Custa 70% do preço da obra. E sei que a casa não vai cair porque fui eu que a projetei. Os primeiros 40 m2 têm de ter o banheiro, a cozinha, o muro que separa do vizinho, a escada. Porque é muito pouco provável que uma família saiba fazer bem um banheiro. Não fazíamos um banheiro de 1,2 m x 1,2 m. Ficaria defasado para uma casa de 80 m2. Fazíamos banheiro de 1,5 m x 2 m. Cabe uma banheira. Como o banheiro era mais caro, teríamos de deixar de fazer algo para pagar esse banheiro.
Era uma negociação?
Sim. Sugerimos que a casa fosse entregue sem pintura. Houve 100% de aprovação. A pintura é acessória. Porém, pedimos coisas mais extremas. Pedimos às famílias que os dormitórios não tivessem acabamento em troca de um banheiro de classe média. Também houve 100% de aprovação. Tivemos que ir ao Ministério da Habitação e pedir que não cumpríssemos a lei que obrigava a entrega a casa pronta. As famílias concordavam com a troca. Quando um banco olha um banheiro assim, diz que é de uma propriedade de US$ 20 mil, não de US$ 7.500.
O projeto da Quinta Monroy era tão inovador que tivemos que fazê-lo contra a lei. Foi o momento mais difícil do projeto. Fizemos porque havia o respaldo das famílias.
Normalmente, nos movimentos sociais as pessoas querem mais coisas, não menos coisas. O ponto era ter não mais coisas, mas melhores coisas. Eles perceberam que estávamos dando coisas que custam meses de salário. Fazer metade de uma casa boa, em vez de uma casa pequena, foi de longe a mais importante reconceitualização. É o tipo de pergunta que só fazem os ignorantes. É uma pergunta boba. Os especialistas olham e riem de você.
A ideia é levar para as favelas um DNA de classe média?
Sim. É preciso levar o DNA da classe média para a favela para que a habitação se transforme em investimento e deixe de ser gasto social. O DNA de classe média é uma das cinco condições dos projetos do Elemental: 1) localização; 2) projeto do conjunto urbano; 3) 50% de frente para o lote urbano; 4) estrutura para os 80 metros finais, não para os 40 metros iniciais; 5) DNA de classe média nas partes mais complexas da casa --banheiro, cozinha e escada.
O governo brasileiro criou um dos maiores programas habitacionais do mundo, o "Minha Casa, Minha Vida", que repete o conceito de conjuntos longe das áreas mais valorizadas. Isso faz sentido hoje?
Não. As evidências mostram que há uma capacidade de investimento das próprias pessoas. Elas são capazes de construir 30, 40 m2 sem qualquer tipo de apoio estatal. Se essa capacidade informal existe, não seria melhor usá-la nas políticas públicas? Se os fundos públicos não são capazes de construir casas de boa qualidade, por que não fazer a parte que as famílias não farão bem por conta própria? O ponto é que essas pessoas não conseguem construir com qualidade, e por qualidade entendo aumentar o valor do imóvel com o tempo e fazê-lo com segurança. Essa estratégia de aproveitar as capacidades individuais gera sociedade com responsabilidade compartilhada.
O Elemental defende a construção feita pelos moradores por razões econômicas ou estratégia antiautoritária?
Defendemos por uma razão pragmática. Mas o pragmatismo tem certas direções que são muito profundas. Como não há dinheiro para fazer tudo, a personalização e a customização da casa iriam ocorrer naturalmente. Como há um projeto para a metade mais difícil da casa, dá para conduzir na direção correta os metros quadrados que serão feitos pela própria família. O espaço que eu deixo, em vez de funcionar como deterioração, vira espaço de personalização. Alguns veem isso como uma filosofia antiautoritária, mas só respondemos às evidências de como as pessoas constroem.
Não era uma preocupação do Elemental. Essa ideia de personalização pode ser aplicada às construções prefabricadas, que é a melhor maneira de fazer habitação social. A crítica que se fazia é que o prefabricado deixava tudo monótono e repetitivo.
Quando vou fazer só a metade de uma casa, quando mais repetitivo e monótono eu for, o crescimento será incerto.
Junta-se uma questão filosófica com outra pragmática e uma econômica. É socialmente desejável, economicamente eficiente e politicamente correto. Quando a família constrói a sua parte, ela terá mais responsabilidade pelo imóvel. Não é a casa que lhe deu o Estado. É a casa que ela fez.
Em todos os lugares do mundo em que os fundos públicos não podem construir todas as habitações necessárias, que é o caso de dois bilhões de pessoas, é melhor construir a parte mais difícil e deixar aberto o processo de autoconstrução, que inevitavelmente iria ocorrer.
Todas as obras do Elemental foram feitas para o Estado. O mercado não poderia adotar essa solução?
Pode. No Chile, o Estado dá um subsídio para as famílias e elas vão ao mercado buscar uma solução de moradia.
O financiamento é estatal, mas a operação imobiliária é privada. As construtoras vivem de lucro. Mas há no México um projeto que é quase puro mercado. Lá, a habitação mais barata custa US$ 35 mil e são vendidas por empresas que têm ações na Bolsa. O projeto do Elemental custa US$ 20 mil, 50% mais barato que a mais barata das moradias. Construímos em bairros em que as casas ao redor valem US$ 50 mil. É um local estratégico.
As pessoas mais pobres são as que mais necessitam viver em lugares assim. Elas são as mais pobres porque não têm renda regular. Os programas baseados em dívidas hipotecárias não atingem os mais pobres. Isso explica o grau de informalidade da América Latina: 50% no México, 40% no Brasil, 60% na Venezuela e só 5%, 10% no Chile.
O Elemental pode fazer moradia por US$ 10 mil. Por isso é tão importante encontrar mecanismos que permita focalizar os mais pobres, os que não tem salário regular.
É possível conciliar criação de vanguarda, como seus projetos nos EUA e na Alemanha, com habitação social?
Não são atividades incompatíveis. Habitação social é o que você faz quando não tem alternativa, não tem mais dinheiro. A palavra Elemental é por definição retirar tudo que não é necessário, é atender o núcleo mais irredutível de algo. Pode ser na química, num projeto financeiro ou de moradia.
O projeto que fazemos na Suíça ou Alemanha também vai no osso do problema. É como um golpe seco de espada. Não tenho oportunidade de fazer 35 pequenos cortes.
O projeto Elemental é algo desejável de se fazer sempre porque elimina o supérfluo, o arbitrário.
Me parece um desafio interessante fazer o estritamente necessário nesses projetos de alto perfil. É como escalar uma montanha com as mãos desnudas, sem equipe e sem apoio. É uma escolha.
Em habitação social, eu não tenho opção: sou obrigado a fazer isso. É melhor ter treino para fazer o estritamente necessário porque não há espaço para o supérfluo. Aqui há uma polinização cruzada entre os projetos de alto perfil, que funcionam no limite da disciplina, como uma corrida de 100 metros, e a moradia social. Precisamos desse treino do alto perfil para fazer moradia social. Se não tivéssemos feito os projetos na Alemanha, provavelmente seríamos maus criadores num projeto de 30 m2, em operações que têm de ter o máximo de efetividade. Em projetos de moradias sociais, treinamos para fazer a elementaridade das coisas, o núcleo mais duro das respostas, e levamos essa filosofia para os projetos de alto perfil. O projeto de alto perfil é um treino para a pergunta mais difícil de todas: como fazer uma moradia de 30 m2? Há uma certa tensão na escassez que me parece desejável. Aprendemos a trabalhar melhor quando fazemos projetos tão extremos.
O Brasil tem uma tradição de arquitetos comunistas Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi, Vilanova Artigas que praticamente não tinham propostas para a habitação social. Qual é a origem desse descompasso?
A resposta vale para a esquerda e para a direita. A discussão sobre a cidade tende a ser demasiado ideológica. São discussões ferozes sobre se a cidade dever ser compacta ou extensa, se deve ter transporte público ou automóveis. Por serem discussões ideológicas, as respostas são pouco eficientes. Há cidades extensas que são boas e cidades extensas que são ruins. É a mesma discussão sobre o tamanho do Estado. Há Estados gigantescos, como na Escandinávia, que são supereficientes, e casos de Estados gigantes que são ineficientes, como na Argentina. O que é preciso saber é em que condições uma cidade compacta é boa ou uma cidade extensa é boa.
A discussão de urbanismo, quando é ideológica, perde a oportunidade de ser rigorosa e precisa com as condições do problema. É preciso estar desnudo diante de cada problema específico.
A ideologia é equivalente a uma religião, que te dá uma certa certeza e uma certa debilidade para enfrentar os problemas. A ideologia é uma rede de segurança quando não tem tempo, disposição, força e segurança suficiente para partir da incerteza total cada vez. Não tenho religião nem fetiche com formas nem materiais.
Você já disse que a arquitetura contemporânea brasileira é muito ruim. Por quê?
Não tenho uma resposta porque não estudei o fenômeno. Mas me chama muitíssimo a atenção que, dado o tamanho e a tradição arquitetônica do Brasil, o país não tenha suficiente massa crítica de arquitetura de qualidade sendo construída.
O mercado imobiliário tem paixão pelo neoclássico.
Pelo neoclássico e pelo pós-modernismo. Não posso acreditar que no Brasil tenha havido um pós-modernismo tão forte e tão ruim. No Chile, uma das coisas boas que a ditadura fez foi nos deixar distante do resto do mundo e do pós-modernismo. Éramos também muito pobres para fazer as coisas pós-modernistas. Ficamos de certa forma protegidos por um certo isolamento intelectual e por uma certa pobreza.
Vou fazer uma especulação. Em 2008, quando estive em São Paulo, no Urban Age, fiz esse comentário com pessoas do Banco Mundial e da Universidade de Londres.
No Brasil, pode-se ouvir música brasileira quase o tempo todo. O Brasil não precisa olhar para o resto do mundo. O chileno médio sabe da cena musical de Londres ou da Holanda. A cultura chilena é suficientemente fraca para termos que olhar para fora.
No Brasil, não é necessário saber dessas coisas porque a cultura interna é muito potente. Os melhores momentos acontecem quando você está exposto à concorrência externa, quando nada está assegurado. Quanto mais concorrência, melhor.
Muitos arquitetos brasileiros criticaram o fato de Herzog e De Meuron terem sido convidados para projetar um teatro de dança em São Paulo.
Isso é pura insegurança. O Brasil tem uma cultura que pode se dar ao luxo de não olhar para o resto do mundo.
É como a Índia. O Brasil mandou nos anos 1970 e 1980 um contingente enorme de gente para estudar fora. E os anos 1970 foram o último momento poderoso da arquitetura brasileira. Provavelmente era o momento em que o país estava mais contaminado pelo mundo.
Hoje, os programas de mestrado e doutorado de arquitetura no Brasil são todos internos nas universidades. Em engenharia aeronáutica, o Brasil precisa competir com o mundo. Mas em arquitetura o país se fechou. Acontece como em "Cem Anos de Solidão" de Gabriel García Marquez: as sociedades endogâmicas produzem filhos com rabo de porco. Os termos com que se discute arquitetura no Brasil são de 20, 25 anos atrás. É muito impressionante que um país que está exposto ao mundo, de frente para o Atlântico, para a Europa, tenha uma discussão tão obsoleta em arquitetura.
A hipótese de isolamento é correta?
É um cruzamento de isolamento com autocomplacência. O modernismo frutificou no Brasil porque o modernismo europeu sonhava com climas como o brasileiro.
Não consigo entender como em milhões e milhões de metros de arquitetura imobiliária, e com o clima que o Brasil tem, tudo é fechado.
Seria mais econômico, mais eficiente e mais fácil de fazer, se a relação entre exterior e interior fosse mais fluída.
A arquitetura do Brasil parece o pós-modernismo italiano dos anos 1980. Parece que os arquitetos sonham com o clima mais frio da Europa.
O modernismo brasileiro parece que nunca se repensou.
As reinvenções culturais passam para matar os pais. No Brasil, porém, não se pode matar os pais. São os mesmos pais de sempre. O Chile tem uma vantagem: não tem pais. Qual é a grande figura do movimento moderno há no Chile? Nenhuma. No Brasil, o ciclo de matar os pais dos anos 1970 não acabou.
PERFIL
Jovem arquiteto é reconhecido mundialmente
O chileno Alejandro Aravena, 44, é considerado um dos mais influentes dos jovens arquitetos do mundo.
Professor de Harvard entre 2000 e 2005, Aravena não tem um material predileto. Ele pode usar vidro ou tijolo com concreto, como ocorre no prédio que fez no Texas para a St.Edward's University (2006-2007) ou gravetos como telhado.
O graveto aparece no teto de uma espécie de oca que ele criou para a Vitra, fábrica alemã que concentra a maior constelação de estrelas da arquitetura no seu campus, como Zaha Hadid e Herzog e De Meuron.
Aravena escolheu o graveto porque a Vitra queria material que não emitisse carbono na construção. Ele diz que achou esse material ao pesquisar a pré-história da região da fábrica.
Jovem arquiteto é reconhecido mundialmente
O chileno Alejandro Aravena, 44, é considerado um dos mais influentes dos jovens arquitetos do mundo.
Professor de Harvard entre 2000 e 2005, Aravena não tem um material predileto. Ele pode usar vidro ou tijolo com concreto, como ocorre no prédio que fez no Texas para a St.Edward's University (2006-2007) ou gravetos como telhado.
O graveto aparece no teto de uma espécie de oca que ele criou para a Vitra, fábrica alemã que concentra a maior constelação de estrelas da arquitetura no seu campus, como Zaha Hadid e Herzog e De Meuron.
Aravena escolheu o graveto porque a Vitra queria material que não emitisse carbono na construção. Ele diz que achou esse material ao pesquisar a pré-história da região da fábrica.
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Reportagem: MARIO CESAR CARVALHO Fonte: Folha online, 19/07/2010
ENVIADO ESPECIAL A SANTIAGO
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