sábado, 17 de julho de 2010

Psiquiatra forense critica 'telediagnósticos' de psicopatia



Crimes brutais como o caso Bruno costumam trazer à cena
a caracterização do suspeito como "psicopata".

Para Daniel Martins de Barros, do núcleo de Psiquiatria Forense do Instituto de Psiquiatria da USP, "diagnosticar" transtornos psiquiátricos dessa forma é um desserviço à sociedade.
Ele diz que rotular comportamentos não ajuda a buscar soluções para o crime, e aproveita para criticar o determinismo biológico, corrente segundo a qual as causas do ato criminoso estão em configurações do cérebro ou de genes.
Em entrevista à Folha, Barros explica por que é tão difícil para a medicina lidar com a psicopatia.

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Folha - Faz sentido chamar supostos autores de crimes bárbaros de psicopatas?
Daniel Martins Barros - A vulgarização da palavra psicopata é um desserviço para a sociedade, a psiquiatria, a justiça, todo mundo.

Por quê?
Antes, nas novelas, havia o mocinho e o bandido. Hoje, é o mocinho e o psicopata. A pessoa não tem mais direito de ser bandido, é de cara rotulada de psicopata. É o uso indevido de uma caracterização que se pretende científica. Há psicopatas de fato, e eles têm características que são um transtorno de personalidade. É uma forma disfuncional de se relacionar que é permanente, refratária a modificações. Se você pega uma pessoa que cometeu um crime, por mais bárbaro e bizarro que seja, e fala que ela é psicopata, está dizendo que ela sempre foi assim, que desde muito cedo é fria e indiferente ao sentimento alheio, que nunca vai mudar. O pior é o telediagnóstico: você vê uma cena na TV e fala que o cara é psicopata. É tratar o diagnóstico de forma muito leviana.

Que tipo de dano isso traz?
Há uma tendência de querer considerar crimes como fruto de uma alteração psíquica. A sociedade tenta buscar nas ferramentas médicas a solução para o crime.
Nós já passamos por isso na história e sempre nos demos mal. Um exemplo atual e polêmico é um diagnóstico criado no Reino Unido chamado "transtorno de personalidade grave e perigoso". Se uma pessoa tem esse diagnóstico, pode ter a liberdade cerceada para "tratamento", independentemente de ter cometido um crime.
A banalização da psicopatologia aponta para o reducionismo do crime, que tira a sua multicausalidade.
Você não pode falar: crime é fruto [apenas] da pobreza, da falta de educação, da ausência de Estado. É uma conjunção de fatores. Da mesma forma, você não pode falar que o crime é [apenas] fruto do psiquismo do indivíduo.

O que define o psicopata?
A psicopatia já significou um monte de coisas na história da psiquiatria. No início, era qualquer doença mental. Depois, designou transtornos de personalidade.
Hoje, as principais correntes a definem como um subtipo de personalidade antissocial caracterizada pelo desapego às normas sociais, por certa indiferença e propensão à criminalidade.
O psicopata é o grupo mais grave desse tipo de personalidade, com características como extrema frieza, total indiferença ao outro e maior vivência criminosa. Não são necessariamente crimes violentos. O cara pode ser um político, um médico, não um criminoso comum, ele vai exercer sua frieza e sua crueldade em outros contextos.

Essas características podem se manifestar ou não?
Exato. Um cara que é mais frio e não se afeta com o sofrimento alheio pode ser um bandido ou um socorrista de ambulância. Para o sujeito pegar miolo no asfalto ele não pode se afetar muito com o sofrimento alheio. A frieza não é necessariamente um defeito. Só estou querendo matizar a questão.

Mas há correntes para as quais exames de neuroimagem mostram alterações que determinam um psicopata.
É um erro de interpretação científica. O sujeito está fazendo ciência, mas não está refletindo, não tem visão do todo. Faz estudo de neuroimagem e vê que, na maioria dos psicopatas, há função reduzida do córtex frontal.
Bom, tem todo o sentido, o córtex frontal é o que nos dá capacidade de autocontrole. Aí, o cara fica feliz: "encontrei a causa da psicopatia, é a função reduzida do córtex!".
Calma aí. Associação é diferente de causa. A associação entre o córtex e a personalidade psicopata pode ser a causa ou a consequência.

E se uma pessoa que não manifesta sintomas tem a imagem cerebral com essa alteração no córtex?
Aí é que está. A alteração no córtex aparece em 80% dos psicopatas e em 30% dos não psicopatas. A ligação está estatisticamente provada.
Mas há 20% dos psicopatas que não têm alteração nenhuma e, pior, 30% de pessoas sem transtorno de personalidade que mostram alteração na imagem cerebral.

Quais são as outras supostas causas da psicopatia?
Não sabemos. Como tudo em psiquiatria, é multifatorial. É uma conjunção como predisposição biológica, funcionamento cerebral, influência do meio etc.

Como é feito o diagnóstico?
É clínico, apoiado em um questionário.

O diagnóstico de psicopatia pode mudar a pena?
O psicopata não tem prejuízo do entendimento ou do autocontrole. É imputável, se for condenado, é um preso comum. Pode merecer tratamento psiquiátrico, mas não significa que tenha a responsabilidade diminuída.

Há cura para a psicopatia?
Não há tratamento comprovado. Se o sujeito é mais impulsivo ou muito irritado, pode tomar remédio para diminuir essas características, mas é só sintomático. As terapias psicológicas, em alguns casos, até pioraram o quadro do transtorno.

Qual é a incidência de psicopatas na população?
Cerca de 1% da população mundial e, em média, 10% da população carcerária.
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Reportagem IARA BIDERMAN COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Fonte: Folha online, 17/07/2010

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