segunda-feira, 19 de julho de 2010

O melhor amigo do homem

Gláucio Soares*

Por que os cachorros podem sentir determinados cheiros e os homens, não? A resposta está na tremenda acuidade olfativa desses animais. Quão maior do que a humana? Syrotuck, há mais de três décadas, comparou homens e cachorros, concluindo que o olfato dos cachorros era 44 vezes mais apurado. O’block, Doeren e True, em 1979, ampliaram essa diferença para 100 mil vezes! Eu suspeito de cifras redondas, mas mesmo 44 vezes é uma diferença considerável. Por que essa diferença? Os cachorros têm receptores a mais do que os homens — vinte e cinco vezes mais.

Não há dúvida de que os cachorros podem distinguir os cheiros de pessoas diferentes, nem é novidade: Kalmus apresentou dados demonstrando esse ponto há mais de meio século, em 1955, confirmados por Moulton, em 1975. Essa habilidade legítima o uso de cachorro na busca por desaparecidos, sobretudo em áreas rurais.

Os cachorros, hoje, são regularmente usados pela polícia em vários países. Muitos foram treinados para detectar drogas e são vistos frequentemente em aeroportos. São muito usados pela polícia e por equipes de salvamento, mas suas habilidades ainda não são admissíveis em julgamentos, ponto debatido em profundidade por Charles Mesloh, da University of Central Florida.

Alguns países levam a participação de cachorros a sério. Mohammad Hossein Nasr-Esfahani diz que o Irã está clonando quatro mil cães cuja matriz foi escolhida com base na alta capacidade de detectar drogas pelo olfato.

O tema não é pacífico. Há erros e conflitos. Um homem foi detido numa estação de metrô pela British Transport Police porque um cachorro farejou drogas nele. A inspeção física detalhada mostrou que ele não levava substâncias ilícitas. O cachorro errou.

O uso de cachorros pela polícia para detectar drogas (mas não explosivos, área que é mais consensual) está gerando uma guerra legal e midiática. Evidentemente, os cachorros são usados para detectar drogas e não traficantes. Claudia Rubin nos lembra que um cada três cidadãos da Inglaterra e do País de Gales já usou drogas proibidas e que nada menos de um milhão usam drogas classe A todos os anos. Uma campanha dura, repressiva, seria uma cujo alvo incluiria muitos britânicos. O direito de uso de algumas drogas é visto como parte dos direitos civis da cidadania. E o direito de não ser examinado é colocado em questão. Os cachorros, coitados, entraram nessa disputa legal (que também é ideológica) sem saber por quê. Há legislação a respeito, como o Misuse of Drugs Act, aprovado há quatro décadas. O ato permite que a polícia faça a busca numa pessoa suspeita de possuir drogas, mas o relativismo anglo-saxão entra na jogada: “se houver razoável suspeita”. A “denúncia” feita por um cachorro torna uma suspeita razoável? E tome artigo para cá e processo para lá.

Não obstante, há áreas nas quais o uso de cachorros (e da habilidade olfativa deles) pode vir a ajudar mocinhos e bandidos. Pesquisa nova, mas reduzida, confirma que podemos treinar cachorros para detectar o câncer de próstata. Os cachorros podem reconhecer o cheiro de uma molécula que é produzida por células cancerosas, mas é necessário treiná-los. Essa é a conclusão a que chegou Jean-Nicolas Cornu, um pesquisador francês. Ironicamente, o pesquisador nos informa que ainda não sabemos qual é exatamente a molécula e o cachorro não nos pode dizer qual é. Não obstante, biópsias e outros testes confirmam a alta percentagem de acertos.

A urina tem cheiro e sabemos disso. Moléculas diferentes da urina são responsáveis por esse cheiro. Há moléculas associadas ao câncer de próstata que alteram o cheiro do líquido. A última evidência nessa direção foi dada pelo treinamento de um cachorro Malinois Belga durante um ano, que logrou separar as urinas de cancerosos das de não cancerosos, acertando em 95% dos casos — 63 em 66.

Com efeito, o excelente olfato de cachorros pode vir a ser usado e, assim, reduzir os falsos negativos e falsos positivos do PSA, o teste que, com o toque retal, constitui o padrão na detecção daquele câncer. Mas a controvérsia é grande porque há falsos positivos e falsos negativos e há casos de câncer pouco agressivos que são acompanhados, mas não tratados. E até as biópsias podem produzir falsos negativos. Houve uma publicação no British Medical Journal de 2004, do estilo proof of principle, para testar a exequibilidade da capacidade canina em identificar carcinomas da bexiga. Foram usados vários cachorros, mas o treinamento foi limitado — em 27 amostras apenas.

No teste, os cachorros identificaram corretamente 41% dos casos. Aleatoriamente seria de esperar apenas 14%. A diferença é estatisticamente significativa. Os cachorros identificaram os odores do câncer, mesmo controlando diversos fatores por análise da urina.

A única dificuldade é treinar muito bem um número suficiente de cachorros que possam ser de utilidade para a saúde pública. Creio que serão necessários vários anos até que encontremos um cachorro nos consultórios dos urologistas e oncólogos.
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*Sociólogo, pesquisador da Uerj
Fonte: Correio Braziliense online, 19/07/2010

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