J.J. Camargo*
É difícil saber quando começamos a gostar de uma
pessoa. Não o gostar de querer bem, esse comum que reúne amigos,
confraterniza parentes e repele desafetos. Falo do gostar de quem marcou
nossas vidas e que, sem ele, pode ser que nem imaginemos como seríamos,
mas temos certeza que seríamos outros, e menores. Ivan Faria Correa,
cuja morte completou, recentemente, 36 anos, foi esse diferencial para
mim. Nunca se preocupou em agradar ninguém. Ele simplesmente era. E
sendo, seduzia.
Nosso primeiro encontro foi cruel. Depois de ter visto pela primeira vez um tórax aberto no Pronto Socorro, tinha passado a madrugada em claro na expectativa de que finalmente amanhecesse e eu pudesse contar para o mundo que era isso que ia fazer do resto da minha vida. Transbordando de adrenalina, finalmente cheguei ao Pavilhão e, feito o rapaz novo encantado da canção, e mesmo sabendo que ele costumava rejeitar estagiários, confessei que eu estava decidido a ser cirurgião torácico. Sacudindo a cabeça em aprovação, ele debochou: “Parabéns. Acho que não tens ideia do quanto não sabes nada, mas tenho certeza que chegaste ao melhor lugar para descobrir isso rapidamente”.
Não me cabia responder. O importante é que me aceitara, e o resto a gente resolveria depois. Ao menos ele decidira que haveria depois.
Nos primeiros tempos, deslumbrado com sua técnica prodigiosa, tentava inutilmente copiar todos os gestos, e depois, no convívio de escassos nove anos, foram inesgotáveis lições de como ser e o que evitar.
Passadas três décadas, ainda lembro com saudade da sua filosofia de bar, numa mistura de genialidade e irreverência, e de uma vez, em que ele interrompeu uma entrevista infrutífera com um paciente complicado para me ensinar: “Deste jeito não vais a lugar nenhum. Em conversa de louco tens de ser sempre o mais louco. Se não, ficas numa desvantagem insuportável”.
Tempos depois de sua morte, ao dar alta a um paciente idoso, operado de um câncer, expliquei-lhe que, a partir de então, iríamos revê-lo de seis em seis meses durante dois anos e, anualmente depois disso, em cinco anos. O velho, um fronteirista pachorrento, querendo fazer graça, olhou para a mulher e, com um ar debochado, perguntou: “Pois gostei do seu plano doutor, mas se eu morrer antes, como é que ficamos?”
Com a lembrança do Mestre ressuscitada naquele papo de pátio de hospício, respondi: “Se morrer antes, o senhor quebrou a combinação comigo e, por favor, não me apareça mais aqui”.
Inesquecível a cara dele olhando para a esposa com a expressão: “Meu Deus, ele é muito mais louco do que parecia”.
No mundinho monótono do politicamente correto, em que a criatividade está reprimida e a irreverência, amordaçada, precisamos festejar os que insistem em se rebelar contra o marasmo da mediocridade.
Anos depois, ao ler uma frase atribuída a Bill Gates, descobri que meu mestre não estava sozinho: “Para trabalhar aqui, não é preciso ser louco, mas se for, ajuda!”
Nosso primeiro encontro foi cruel. Depois de ter visto pela primeira vez um tórax aberto no Pronto Socorro, tinha passado a madrugada em claro na expectativa de que finalmente amanhecesse e eu pudesse contar para o mundo que era isso que ia fazer do resto da minha vida. Transbordando de adrenalina, finalmente cheguei ao Pavilhão e, feito o rapaz novo encantado da canção, e mesmo sabendo que ele costumava rejeitar estagiários, confessei que eu estava decidido a ser cirurgião torácico. Sacudindo a cabeça em aprovação, ele debochou: “Parabéns. Acho que não tens ideia do quanto não sabes nada, mas tenho certeza que chegaste ao melhor lugar para descobrir isso rapidamente”.
Não me cabia responder. O importante é que me aceitara, e o resto a gente resolveria depois. Ao menos ele decidira que haveria depois.
Nos primeiros tempos, deslumbrado com sua técnica prodigiosa, tentava inutilmente copiar todos os gestos, e depois, no convívio de escassos nove anos, foram inesgotáveis lições de como ser e o que evitar.
Passadas três décadas, ainda lembro com saudade da sua filosofia de bar, numa mistura de genialidade e irreverência, e de uma vez, em que ele interrompeu uma entrevista infrutífera com um paciente complicado para me ensinar: “Deste jeito não vais a lugar nenhum. Em conversa de louco tens de ser sempre o mais louco. Se não, ficas numa desvantagem insuportável”.
Tempos depois de sua morte, ao dar alta a um paciente idoso, operado de um câncer, expliquei-lhe que, a partir de então, iríamos revê-lo de seis em seis meses durante dois anos e, anualmente depois disso, em cinco anos. O velho, um fronteirista pachorrento, querendo fazer graça, olhou para a mulher e, com um ar debochado, perguntou: “Pois gostei do seu plano doutor, mas se eu morrer antes, como é que ficamos?”
Com a lembrança do Mestre ressuscitada naquele papo de pátio de hospício, respondi: “Se morrer antes, o senhor quebrou a combinação comigo e, por favor, não me apareça mais aqui”.
Inesquecível a cara dele olhando para a esposa com a expressão: “Meu Deus, ele é muito mais louco do que parecia”.
No mundinho monótono do politicamente correto, em que a criatividade está reprimida e a irreverência, amordaçada, precisamos festejar os que insistem em se rebelar contra o marasmo da mediocridade.
Anos depois, ao ler uma frase atribuída a Bill Gates, descobri que meu mestre não estava sozinho: “Para trabalhar aqui, não é preciso ser louco, mas se for, ajuda!”
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* Médico
Fonte: ZH on line, 28/09/2013
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