As muitas histórias e peripécias do funcionário que faz serviços de manutenção da FCM
Aliança
de chiclete para os noivos, uma volta de três anos com o circo na
adolescência, fantasma no hospital. Cordel, comédia, ou realidade?
Descontínuo, Humberto Teixeira da Silva emenda suas peripécias cada vez
que é chamado para realizar um serviço de manutenção na área de Relações
Públicas da Faculdade de Ciências Médicas, segundo o jornalista
Edimilson Montalti. Seus argumentos (texto pré-roteiro), pórem, deixam
sempre com – como popularmente se diz – a pulga atrás da orelha. Verdade
ou ficção? Da forma como se falavam no programa de TV na adolescência:
senta que lá vem história.
– Aos 9 anos de idade, minha mãe
queimou meus dedos. Porque tive um sarampo muito forte, e ela, achando
que eu estivesse morrendo, acendeu vela em minha mão, mas eu via e
escutava a conversa. Por outro lado, a gente passava fome e, vendo a
preocupação de meus pais, passei a admirar mais o circo; talvez pela
vontade de viver no mundo e aliviar a preocupação deles.
Foi então que pensou na possibilidade de um dia pegar carona na boleia do caminhão de uma trupe. Queria ser palhaço.
Mas na boleia, aos 9 anos, seria difícil. Aos 11, tomou coragem.
– Você não pode ir com a gente, sem seus pais.
Já
não sonhava em ser somente de seus pais. Queria ser do mundo. E para o
mundo. Conseguiu rodar o Brasil. Sem bilhete, sem pedido, sem desculpa.
Mas não na boleia, na carroceria, escondido. Sem medir consequências.
–
Isso mesmo, quando tinha 11 anos, chegou um circo. Sei lá, deu vontade.
Não foi um “não” para minha mãe. Foi um “sim” para o circo. Aproveitei a
distração das pessoas, peguei poucas peças de roupa molhada do varal e
coloquei numa sacolinha. Enquanto não me davam a oportunidade de me
apresentar como palhaço, comecei a vender balinhas para o público. Foi
quando comecei a me virar para viver.
Diz o contador de casos que,
não vendo alternativa e nenhuma possibilidade de voltar a Belém, cidade
da Paraíba, tão cedo, admitiu-o como assistente de palhaço. E já que
queria brincar com a vida, sua e da família, foi fazer graça no
picadeiro.
No circo, aprendeu muito sobre a arte circense, a arte de encenar e tomou gosto por ouvir música clássica:
–
Hoje que estou mais assentado, chego a minha casa e ouço música
clássica. Também gosto de nostalgia e música romântica. Graças ao circo.
Mãe
e pai ficaram sabendo de seu paradeiro somente depois de três anos,
quando já tinha 15 anos, e ele bateu à porta com a maior cara lavada.
–
Voltei por impulso. O circo foi para uma divisa da Paraíba com
Pernambuco, e eu peguei algumas caronas até chegar a minha casa. Para
minha família, eu havia morrido. Fiquei três anos sem dar notícia. Minha
mãe chorava e meu pai, ria. Ela não queria mais que eu voltasse, mas
ele disse a ela que se eu já havia experimentado, tinha condições de
viver sozinho.
Mais seis meses em Belém, para relembrar o que é
viver em família, e pé na estrada novamente. Outro circo? Não, não.
Dessa vez, tentou girar o Brasil nas cadeiras de uma roda gigante,
comendo algodão-doce entre as luzes coloridas do chapéu mexicano e dos
carrinhos que se batiam e ouvindo música romântica. Afinal, o que era um
parquinho sem os hits românticos da época.
Para não perder a
graça da ficção, não conformado apenas com a assinatura de papéis em
cartório, queria viver o ritual de um casamento religioso, com direito a
aliança, padre, testemunhas. E filho?
– Sim. Tínhamos 20 anos, e
nosso filho tinha três meses. As alianças foram compradas de um
“doceiro”, daquelas que vinham grudadas num chiclete.
Um dos padrinhos, conta Humberto, patrocinou o brinde com caldo de cana.
Coisa de palhaço, ou de contador de histórias? Humberto garante que não, assim como a tentativa de fugir do compromisso.
–
Quando fiquei sabendo que ela estava grávida, lembrei que tinha pai e
mãe esperando notícias minhas em Belém. Não pensei duas vezes. Mas, como
minha irmã morava em Campinas, entrou em contato com meu pai para
explicar o motivo de minha viagem. Exigente, ele me mandou de volta para
Campinas na hora.
E veio. Sacramentar a união na Capela da
Poeirinha, no bairro Rosolém, em Hortolândia, São Paulo. Veio para
assumir a família. Trabalhar duro para não faltar nada, até hoje, aos
filhos e à esposa, da qual acabou se separando.
A história com a
Unicamp também tem as voltas da boa conversa. Um vaivém que, de acordo
com Humberto, terminará na Faculdade de Ciências Médicas, onde aplica
tudo o que teve de aprender ao querer fazer carreira solo pelo mundo.
–
Aprendi de tudo, principalmente na área de assistência e manutenção em
hidráulica, elétrica. Por isso, sempre que um setor está em apuro, faço
questão de acompanhar. Aprendi com a faculdade da vida. Como vivia no
mundo, não cheguei a concluir o primeiro colegial (ensino médio), mas
nunca fiquei sem emprego porque aprendi fazendo. Desde que o auditório
da FCM foi inaugurado, faço plantão em eventos, caso ocorra um
imprevisto. Seja durante o expediente, seja à noite ou fim de semana.
Por isso me aproximei muito do pessoal da área de Relações Públicas.
Tenho cursos na área de relações humanas, segurança do trabalho, básico
em computação e em eletrotécnica, cabeamento em telecomunicações. Vários
pela FCM e alguns antes de entrar na Unicamp.
Tentou fugir do circo, mas este veio atrás dele em Campinas.
–
Certa vez, chegou um circo a Campinas, e eu fiz alguns trabalhos para
eles. Quiseram me levar, mas minha irmã perguntou se não estava na hora
de fixar endereço. Então, não fui.
A imaginação fértil do contador
de história se estendia para as brincadeiras com amigos da Guarda
Noturna de Campinas, em 1983, em sua primeira passagem pela Unicamp. Na
época, a associação responsável pela segurança da Unicamp, e Humberto
zelava pelo Instituto de Biologia (IB) no período noturno.
Como
forma de conter o próprio medo, no deserto da quase-floresta que
circundava o antigo prédio da Biologia, um dos primeiros do campus de
Barão Geraldo, adquiriu o “mau” hábito de assustar os colegas. Quem já
se perdeu no labirinto da Biologia, como a patrulheira mirim
recém-chegada em 1984, ou a zeladora contratada em 1986, pode imaginar
como seria circular por aqueles corredores confusos do primeiro
instituto da Unicamp.
– Carregava um lençol branco. Naquela época,
as pessoas ainda tinham medo de assombração. Mas há quem relate que já
viu. Você já ouviu falar? Eu em sempre falei brincando, mas certo dia,
uma diretora desceu desesperada do banheiro do auditório por ter visto
algo lá.
A julgar pela peripécia, dá para imaginar quem fazia as
pessoas acreditar. Até porque, abandonado de vez pelo circo, precisava
se alimentar do bom humor enquanto trabalhava, mas sem prejudicar as
pessoas.
– Onde entro, brinco mesmo. E as pessoas aceitam porque só faço brincadeira sadia. Jamais faria algo que prejudicasse o próximo.
Mas enfatiza o gosto das pessoas pelo trágico. Principalmente quando esteve à beira da morte.
A
convivência alegre com os colegas da guarda foi interrompida pela
quebra do contrato entre a Unicamp e a empresa de segurança. O
rompimento fez com que retomasse o projeto de viajar, mas dessa vez com
destino, na poltrona, confortavelmente, porém, sem a delícia de fugir na
carroceria do caminhão de circo. O projeto de conhecer o mundo o levou
ao Canadá.
– Fui indicado para permanecer na Unicamp depois do
vencimento do contrato com a Guarda, mas ainda tinha aquele gostinho de
conhecer outros lugares. Trabalhei em várias empresas, viajei muito,
cheguei a ir para o Canadá como pintor industrial de uma empresa de
máquinas de celulose. Viajei o Brasil todo, mas no exterior “só” conheci
o Canadá.
Nem o vínculo com as multinacionais fez com que
Humberto abrisse mão do bom humor diário. As diversas histórias, algumas
até trágicas – como sofrer atentado –, faziam parte da rotina dos
amigos, mas a brincadeira não era seu privilégio, pois encontrou mais
dois contadores de causos engraçados. Como não podia deixar de ser, o
lado empreendedor voltou a ser estimulado, e os três foram fazer free
lance em festas e eventos institucionais.
– Ganhamos uma boa grana com isso. Deu para complementar a renda.
A
experiência com manutenção foi adquirida na estrada, ou no ar, e foi
trazida para a Unicamp em sua volta, em 1995, como funcionário da FCM,
mas prestando atividades no Escritório de Tecnologia (Estec). Em 2002,
assumiu o setor de manutenção da faculdade sem dificuldades, garante,
pela qualidade do trabalho dos colegas de equipe.
Hoje, para quem
optou por viver só, Humberto vive rodeado de amigos, dentro e fora da
Unicamp. Afinal, se seguisse, de fato, isolado, iria ter de falar
sozinho. Até porque, pelo andar da entrevista, o silêncio não é o que
mais o apetece. A não ser quando chega a sua casa, ao fim do dia, e dá
voz à música clássica.
– Agora que tenho 52 anos, estou mais
sossegado. Porque nunca fui de parar em casa. Nunca consegui ficar
parado. Escolhi me criar no “mundo”, e não me arrependo de nada. No
mundo, passei algumas dificuldades, mas menores do que a que passávamos
lá em Belém, na Paraíba. Em alguns momentos, me vi sem alguém para me
apoiar, mas nunca fui de olhar para trás. Quando quero algo vou até o
fim; não sou de ficar em cima do muro. Comecei a vender balas no circo e
não precisava mais para viver. Nunca fui de comprar muita roupa.
Aprendi muito. Cheguei onde queria. Nunca me envolvi com álcool, droga.
Nunca deixei de trabalhar. Há quem duvide de minhas histórias, mas elas
aconteceram.
E então, quem arrisca: realidade ou ficção?
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Texto: MARIA ALICE DA CRUZ
Fotos: Antonio Scarpinetti
Edição de Imagens: Diana Melo
Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/
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