Ferreira Gullar*
O filósfo tem necessidade de explicar o fato que o espantou, enquanto o poeta, não: ele só quer
registrar o inexplicável
Quando pela primeira vez me dei conta de que meus poemas nasciam de um
estado mental imprevisível, e o defini como um espanto, estava usando
uma expressão de Platão. Ele afirmara que o conhecimento nasce do
espanto.
Recentemente, tentei encontrar o texto em que o filósofo fazia tal
afirmação e descobri que era no "Teeteto", quando atribui essa afirmação
a Sócrates. Descobri também que a palavra grega que usa para espanto é
"thaumázein", que significa também assombro, perplexidade, admiração.
Sim, é a mesma coisa que sinto quando me encontro na condição de
escrever o poema. Espanto é realmente a palavra que define esse estado
mental em que, de repente, a realidade se mostra inexplicada.
Isso pode ser provocado por qualquer fato, do mais raro ao mais banal,
corriqueiro. E é o que mais me espanta: o meu fêmur que se choca com
minha bacia, o ilíaco, e me faz, perplexo: "tenho dentro de mim um
enorme osso, de que não me havia dado conta até este momento, em que
senti chocarem-se, dentro de mim, um contra o outro. E a pergunta que
surge é: eu sou esse osso? Esse osso sou eu? Formula essa pergunta, mas e
osso, ele pergunta?".
Possivelmente, nem mesmo Platão seria capaz de responder a essas
indagações, ou as responderia, mas depois de surpreender-se com essa
espantosa descoberta: eu não sou apenas consciência, ideias, a pessoa
que fala e pensa; sou também um enorme osso que bate no outro do mesmo
modo que uma pedra se choca com outra pedra. E isso sou eu? Até onde o
meu fêmur participa dessa minha indagação? Osso pergunta? Não, não
pergunta.
Então devo concluir que sou uma consciência que pergunta e um osso que
nada tem a ver com isso, é só matéria burra, como um mineral qualquer?
Sou um ser consciente apoiado em osso que não tem nada a ver comigo? Mas
como, se o sinto, se ele dói quando algo o atinge, e posso até morrer
se quebra e infecciona? Ao que tudo indica, eu sou esse osso. Eu sou
minha imaginação, meus desejos, minha reflexões, meus afetos e
lembranças --e esse osso também.
Mas vamos retomar a questão principal que me fez escrever esta crônica:
se o espanto é a origem tanto do conhecimento quanto do poema, significa
que a filosofia e a poesia são a mesma coisa? Essa é uma pergunta
difícil de responder, mas me atrevo a dizer, antes de qualquer
especulação, que não, que filosofia não é a mesma coisa que poesia. Sim,
não é; não obstante, não apenas ambas nascem do espanto, como ambas
implicam em reflexão.
Certamente, nem toda poesia implica reflexão em nível equivalente ao da
filosofia. Há poemas que nascem quase que magicamente das próprias
palavras, fazendo-nos pensar que alguém, que não o poeta, é que os
inventou. E há também poemas de encantamento, que se alimentam mais da
fantasia e da paixão do que desse espanto que gera reflexão.
Voltando à relação dos dois espantos --o do filósofo e o do poeta--
vamos tentar deslindar o que os distingue e o que os aproxima. Até onde
posso vislumbrar uma explicação para tal problema, diria que, no
espanto, não há diferença entre o filósofo e o poeta, já que ambos são
tomados, inesperadamente, da constatação de que não há explicação para o
que acabam de perceber: osso pensa? Osso pergunta?
A diferença, então, estaria depois dessa constatação, que é diferente no
filósofo e no poeta. Salvo, melhor juízo, acho que o filósofo tem
necessidade de explicar o fato que o espantou, e o poeta não; o poeta
quer apenas dizer que se espantou, que aquilo não tem mesmo explicação; o
que ele deseja, em suma, é registrar o inexplicável, afirmar o
insondável mistério da existência.
É nisso, creio eu, que os dois diferem, uma vez que seja próprio da
filosofia explicar a existência. O filósofo não se conforma com
inexplicabilidade do fenômeno que o espantou e, por essa razão, tem que
explicá-lo, inseri-lo no sistema de pensamento que ele, filósofo,
elabora na tentativa de tornar o mundo inteligível.
Admitir que não há explicação para a existência seria o fracasso da
filosofia que, neste particular, situa-se no polo oposto ao da poesia.
Sim, porque, para o poeta "só o que não se sabe é poesia".
E um beijo agradecido ao Caetano Veloso.
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* Poeta. Colunista da Folha.
Fonte: Folha on line, 08/09/2013
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