Paulo Ghiraldelli Jr*
Aproximei-me da cachorrinha do vizinho,
um bebê ainda. A carinha não negava, era daquela conhecida raça
pastor-tombalata-alemão. Claro que não agüentei e quis afagar aquela
cabecinha, sentir na mão aquele bigodinho com cheirinho de cachorro
bebê. Mas me surpreendi quando vi que ela, ao invés de continuar se
aproximando, abaixou o corpo e a cabecinha ao perceber minha mão se
erguer. Apitou dentro de mim, bem no peito, aquele sinal maldito.
O filósofo alemão Theodor Adorno
escreveu certar vez algo como “a burrice é uma cicatriz”. Não tenho
dúvidas disso. Mas eu complementaria: trata-se de um tipo de cicatriz em
quem exerce a burrice mas pode se tornar uma cicatriz em quem está ao
redor. A bebezinha peluda ali na minha frente havia recebido a cicatriz
da burrice alheia. Nada tinha na pele, era uma cicatriz na alma. Bebê
ainda, e já sabia que o ignorante, o estúpido, o que exerce a burrice, o
faz de um só modo, como violência. Pequenina, mas já sabia que aquele
de quem tanto ela e os outros de sua espécie amam, não evoluíram mais ou
menos iguais. Alguns dos bípedes-sem-penas não conseguem não festejar
suas cicatrizes, suas burrices.
Os cachorros amam os homens. Há uma
longa história nisso tudo. Começou nas cavernas. O lobo e o homem se
refugiaram na mesma caverna e um ensinou o outro o que sabia. O homem ou
aquilo que depois de muitos anos seria o homem, não tinha os
sentimentos que hoje possui. Ele não ligava muito para a família, não
era monogâmico, nem estava acostumado a caçar, uma vez que até pouco
tempo ficava em árvores. Aprendeu a monogamia, a caçar em matilha, a
resolver as coisas em assembléia e, enfim, a trocar mamadeiras entre
parceiros quando o leite de casa acabava – tudo isso aprendeu com os
lobos. O protohomem foi educado pelo lobo que, enfim, se transformou
anos depois no cachorro. Não foi o homem que domesticou o cão, mas foi o
protocão que ensinou muita coisa ao homem.
Eles formaram então, homem e cão, uma
dupla amorosa. Mas, quando o homem adquiriu a linguagem e passou a
exercer o pensamento conceitual, deixando o cão ficar dono exclusivo do
amor, os laços das cavernas se romperam. Uma vez com linguagem, o homem
logo se autodenominou como um superior. Como o que aprendeu com o cão
ocorreu antes da linguagem, nada ficou em sua memória. Então, imaginou
que o seu relacionamento precoce com o cão deveria ter vindo de
domesticação. Apostou nisso. Mas errou.
Creio que foi o cão que adotou o homem,
ainda quando ambos não eram nem cão e nem homem. No entanto, quando na
imaginação do homem, já pronto, tudo se inverteu, o cão nunca entendeu
bem, mas continuou a manter laços de amor. Ficou então à mercê do homem,
agora se autointitulado dono e senhor da terra e dos animais – como
ficou na Bíblia.
A cachorrinha, pequenina mesmo, já sabe
que o homem acredita que se educa o cão como se educa pessoas, ou seja,
na pancada. Mas, ela não julga o homem por isso. Ela simplesmente não
julga. Seu desejo é o de ser uma bolinha de amor. A força deste a faz se
aproximar de mim, mesmo que receosa. Entendemo-nos fácil. Eu tenho a
linguagem e ela não, mas, nesse caso, a comunicação se faz pelo amor, e
então, ah, como nos entendemos mesmo – para sempre.
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* Paulo Ghiraldelli Jr, 56, filósofo, escritor, ensaísta e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/o-cachorro-ama-o-homem/
Imagem da Internet
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