Fabrício Marques*
Foto de Pierre Verger: folia mascarada
Tese denuncia o racismo embutido no mito da preguiça baiana
Certos baianos, quando são
chamados de preguiçosos, tomam até como elogio. Dorival Caymmi e
Gilberto Gil, por exemplo, assumiram com galhardia a malemolência que
lhes é atribuída. A proverbial preguiça, argumentam, é um traço de
identidade cultural da Bahia, expressão de um modo de vida em que o
trabalho não precisa opor-se ao lazer. Segundo a tese O mito da preguiça baiana,
defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 1998 pela antropóloga
Elisete Zanlorenzi, a origem desse estereótipo nada tem de benigno. Foi
engendrado pela elite da Bahia com o objetivo de depreciar os negros, a
maioria esmagadora da população local. Isso remonta aos tempos da
escravidão e ganhou fôlego em reação à Lei Áurea. Defendida em 1998, a
tese teve repercussão dentro e fora do ambiente acadêmico, mas só agora
será publicada na forma de livro, com lançamento programado para o final
do ano (2004).
A obra sustenta que a vida tranqüila e a famosa aversão ao trabalho
atribuídas aos baianos não têm base na realidade. Elisete foi pesquisar,
por exemplo, a relação entre o calendário de festas na Bahia e o
comparecimento ao trabalho. Fez descobertas curiosas. Uma empresa com
sede no Pólo Petroquímico de Camaçari, a 41 quilômetros de Salvador,
registrou menos faltas de funcionários durante o Carnaval de 1994 do que
sua filial de São Paulo. Outro dado eloqüente: no final dos anos 1980,
entre as pessoas ocupadas na Região Metropolitana de Salvador, 50,4%
trabalhavam mais de 48 horas semanais e 35,8% de 38 a 47 horas por
semana. Não trabalham mais provavelmente porque não há mais trabalho.
Entre as seis maiores regiões metropolitanas do país, Salvador é
recordista em desemprego e em trabalho informal, fenômeno que atinge,
com vigor especial, os 80% da população que são afro-descendentes.
De acordo com a antropóloga, a ladeira da Preguiça, no centro de Salvador, é símbolo do preconceito. Nos tempos da escravidão, e também depois dela, quem reclamava da íngreme travessia, carregando nas costas as mercadorias desembarcadas no porto, eram os negros – “preguiçosos” na visão desdenhosa dos brancos que, das janelas de seus sobrados, gritavam: “Sobe, preguiça!”. A intensa imigração nordestina nos últimos 50 anos fez o racismo vicejar no Sul e no Sudeste. Fora da Bahia, o termo “baiano”, segundo o Dicionário Houaiss, significa tolo, negro, mulato, ignorante e fanfarrão. E se refere a trabalhadores desqualificados oriundos de todos os estados do Nordeste. Como a estrada que conduziu o êxodo foi a Rio-Bahia, os imigrantes nordestinos foram em São Paulo e na região Sul indistintamente chamados de “baianos” – assim como muitos norte-americanos, desinteressados sobre o que acontece ao sul do Equador, confundem a capital do Brasil com Buenos Aires. “Depreciar os imigrantes nordestinos como preguiçosos era uma forma de excluí-los”, diz Elisete. Ela aponta dois grandes motores do preconceito: o descaso do governo com a capacitação dessa força de trabalho e a intolerância dos imigrantes europeus, que não queriam ser equiparados aos brasileiros pobres com quem disputavam o mercado de trabalho e o espaço urbano.
A tese de Elisete Zanlorenzi, professora da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, é mais festejada do que conhecida – daí a
importância de sua publicação. Ela repercutiu bastante no final dos anos
1990. Até hoje resumos circulam em correntes na internet, propagadas
provavelmente por baianos briosos. Os textos de alguns e-mails foram
reforçados com dados que nem sequer constam da tese, numa curiosa
anônima colaboração com a pesquisa. “Há dados e até declarações entre
aspas que não são minhas”, diz Elisete. “Todos os meses recebo e-mails
de pesquisadores interessados em estudar o tema, por isso decidi cuidar
da publicação”, diz. O sociólogo Octavio Ianni (1925-2004) – que
participou da banca examinadora em 1998 – apontou, à época, a principal
contribuição do trabalho: sugerir a atribuição de preguiça como uma
forma sutil e escamoteada – porque risível e folclorizada – de racismo.
Cena de rua, de Emil Bauch (1858):
só os "preguiçosos" escravos trabalhavam pesado
Descendente de italianos e alemães, a paulista Elisete mudou-se para o Nordeste no final dos anos 1970 e viveu em Salvador entre os anos de 1980 e 1984. Na capital baiana desenvolveu sua dissertação de mestrado, sobre o movimento popular do bairro do Calabar, uma antiga invasão de 8 mil habitantes que a especulação imobiliária tentava, em vão, banir de uma região nobre da cidade. Foi nessa época que o preconceito embutido na questão da preguiça lhe chamou a atenção pela primeira vez. Numa tarde de domingo, ficou impressionada com o que viu numa festa freqüentada por gente da elite de Salvador, políticos, advogados e empresários. “Eles começaram a reclamar da preguiça dos empregados negros, enquanto eram servidos por eles. Os negros eram os únicos que estavam trabalhando ali”, lembra.
Candomblé
Ela foi levantar as razões históricas do fenômeno. “Nem a Abolição da escravatura nem a industrialização foram capazes de inserir grandes contingentes afro-descendentes de Salvador no mercado de trabalho formal”, diz a antropóloga. Até recentemente, os negros permaneceram alijados dos melhores empregos e das atividades mais bem remuneradas da Bahia. Trabalhavam, em sua maioria, no mercado informal, a exemplo do pequeno comércio, da prestação de serviços, de atividades desqualificadas. “Salvador vivia mergulhada em relações tradicionais e muitos de seus bairros tinham vida quase independente”, afirma. Isso só começou a mudar a partir dos anos 1960, com a instalação do Centro Industrial de Aratu e, mais acentuadamente, nos anos 1970 com a instalação do Pólo Petroquímico de Camaçari, que absorveu a mão-de-obra local, ajudando a forjar uma pioneira classe média afro-brasileira. “Mas a visão capitalista sobre o valor do tempo e o significado do trabalho, estampada na imagem do tempo é dinheiro, não conseguiu modificar as relações cotidianas nem retirar dos espaços das relações de trabalho uma dosagem de afetividade”, afirma a antropóloga.
Paralelamente, tomou corpo a face simpática da preguiça. Ary Barroso e
Dorival Caymmi, ao descreverem uma Salvador das primeiras décadas do
século 20, ajudaram a construir uma imagem exótica e paradisíaca, que
ganhou o mundo no filme Você já foi à Bahia? (1945), de Walt
Disney. Não era uma imagem inventada. O valor que o tempo e o trabalho
têm para os baianos, diz a tese, é fortemente influenciado pelo
candomblé. “As obrigações, na filosofia do candomblé, são algo que se
escolhe, que não se faz forçado”, afirma Elisete. “No fundo, vem da
tradição africana o conceito de que o trabalho não é o foco principal da
vida, que trabalho e lazer não se opõem. O que não significa que as
pessoas não trabalhem. Ao contrário, trabalham muito, mas sem colocarem o
trabalho como objetivo central da existência e cuidando muito das
relações que ocorrem fora da esfera do trabalho”, comenta.
A tese se debruça sobre o conceito de tempo na Bahia. Afirma que, embora
as relações formais sejam pautadas pelo relógio, ou seja, respondam à
lógica capitalista do tempo, as relações informais seguem um tempo
maleável. “Muitas pessoas em Salvador não usam relógio”, observa
Elisete. “Esse fato poderia ser justificado pelo baixo poder aquisitivo
da população, mas a questão vai além desse aspecto, porque não é um bem
que custe caro. Se fosse imprescindível, o relógio certamente seria mais
usado.” Entre um encontro e outro, observa a tese, pode ocorrer um
terceiro, e as pessoas que marcaram o encontro sabem que a rigidez dos
horários está exposta ao imprevisto. “O que a mentalidade utilitária e
rígida concebe como atraso, na visão afro-descendente baiana aparece
como uma possibilidade de ocorrência”, afirma a antropóloga
A cigarra e a formiga
O estudo é pontilhado por entrevistas com personagens da Bahia, como
João Jorge, diretor do grupo Olodum, Vovô, diretor do Ilê-Ayê, Normando,
diretor do Centro de Cultura Popular, e Júlio Braga, antropólogo da
Universidade Federal da Bahia. “Todos afirmaram que o trabalho é uma
esfera importante da vida, mas que a vida não se resume ao trabalho, já
que o lazer, a família e os amigos são importantes”, lembra Elisete.
“Normando disse que a fábula da cigarra e da formiga é uma invenção da
mentalidade ocidental, sem nenhum vínculo com a matriz africana.
Como ninguém, o compositor Dorival Caymmi encarnou a imagem do baiano
malemolente. Não há dúvidas de que seu temperamento tranqüilo e maroto
condiz com a imagem – daí a chamá-lo de preguiçoso vai uma distância
imensa. “Ele sempre acordou cedo e, mesmo quando trabalhava à noite,
fazia questão de sentar-se à mesa do café da manhã com os filhos”, diz a
biógrafa e neta do compositor, Stella Caymmi. Forjou mais de uma
centena de canções, foi um batalhador pela legislação dos direitos
autorais, mas gostava de cultivar a fama de preguiçoso. Para recusar
compromissos que não tinha tempo para prestigiar, respondia simplesmente
que não podia ir porque era preguiçoso. Numa das primeiras propagandas
de que fez, de um rum, em 1957, Caymmi já aparecia tocando violão
aboletado numa rede. Nada mais falso. Caymmi, conta a neta Stella, nunca
gostou de redes. Apreciava, isso sim, cadeiras de balanço.
Especiaria
Os tropicalistas Gal Costa, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto
Gil incorporariam, mais tarde, a imagem da preguiça baiana. “Era um
jeito de dizer que eram diferentes, que não pertenciam àquele mundo
urbano aonde estavam chegando”, diz Elisete. Entrevistado pela
pesquisadora, Gilberto Gil explicou: “A preguiça é uma especiaria que a
Bahia oferece ao Brasil. A preguiça produz de forma inusitada, ela
produz benefícios inimagináveis. Ela vence os obstáculos pela capacidade
de contorná-los e não de atravessá-los diretamente… é a água, é o
feminino, é o obscuro. Eu sou adepto dessa visão, porque isso é a
salvação do mundo”. Gilberto Gil, diga-se, nunca teve vida mansa. Quando
se mudou para São Paulo, no início dos anos 1960, trabalhava numa
empresa de dia e cantava à noite. Hoje, aos 62 anos [nota da redação: em
2004], concilia os compromissos de ministro com a agenda de shows
A indústria do turismo aprendeu a explorar esse filão para atrair
multidões de estressados de todos os cantos do país. Quer descansar, vá à
Bahia, a terra onde a festa nunca termina e ninguém se preocupa com o
relógio. Isso começou nos anos 1960. Foi nessa época que a capital
baiana passou por uma grande cirurgia urbana, com o objetivo de
incrementar o turismo – e se descobriu que o mito da preguiça tinha
apelo delicioso para os forasteiros. Desde então os baianos trabalham
duro para criar uma ilusão capaz de entreter milhares de incautos. A
ilusão de que, naquelas paragens, ninguém gosta de trabalhar.
(*) Publicado originalmente na revista Revista Fapesp nº 103, setembro de 2004, sob o título "A invenção da indolência"
Fonte: http://www.vermelho.org.br/06/09/2013
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