Em 2007, Amilcar Bettega, de 49 anos, passou um mês em Istambul. A
viagem à Turquia fez parte de um projeto que levou vários escritores
brasileiros a outros países com o intuito de que produzissem a partir da
experiência de deslocamento. No caso do vencedor do Prêmio Portugal
Telecom de 2005 com "Os Lados do Círculo", o resultado daquele contato
com uma cultura e um idioma totalmente desconhecidos - exigência do
próprio escritor para aceitar o convite - chega agora às livrarias.
"Barreira" (Companhia das Letras) é a história de dois homens, um
turco-brasileiro e um francês, que vagam por Istambul em busca não só de
pessoas, mas de algo tão abstrato como o passado e o futuro. Os
obstáculos criados pela dificuldade de comunicação, diferença cultural e
de geração levam os personagens a uma sucessão de desencontros e
questionamentos sobre si mesmos.
De malas prontas para a China, sua próxima casa, o gaúcho passou pelo
Brasil, no início do mês, para divulgar seu livro. Antes, ainda em
Lisboa, onde atualmente mora, conversou com o Valor. Leia a entrevista.
Valor: Desde 2004, quando saiu o premiado "Os Lados do Círculo", são quase dez anos sem publicar. Por quê?
Amilcar Bettega: Não sou muito prolixo. Escrevo
pouco, muito pouco, quase a conta-gotas. Sou muito lento para escrever,
primeiro porque não tenho a disciplina de sentar todo dia para escrever.
Só vou escrever quando é impossível não o fazer. Só escrevo quando
sinto vontade e não é todo dia que isso acontece.
Valor: "Barreira" é seu primeiro romance. Havia uma certa resistência sua, um contista, em entrar nesse gênero?
Bettega: Havia, sim, uma resistência quase
militante, meio boba, da minha parte. Tem a ver com o fato de o romance
ser o queridinho do mercado. Quando você escreve conto e tenta publicar,
o que mais ouve dos editores é: quando tiver um romance, fala comigo.
Consegui publicar três livros de contos e me agarrei a isso, e dei mesmo
as costas à possibilidade de escrever um romance. Também por isso foi
duro a escrita desse livro, eu estava habituado a uma maneira de pensar
em uma história a partir de características próprias do conto.
Valor: "Barreira" parece ter sido escrito por
alguém que se preocupa muito com a forma, talvez até mais do que com a
história. Há muitas voltas, saltos e pontes. É um livro bem armado...
Bettega: O cuidado com a forma é um dos meus nortes.
Não que a questão da história seja secundária. Funciona tudo junto.
Para mim a literatura é fundamentalmente linguagem e forma. O que não
posso concordar é com a afirmação de que uma história bem contada é o
melhor que pode haver. Como se fosse só isso. Não é. Isso eu posso
afirmar, não me interessa a história bem contada. Porque o que está por
trás disso é a ideia da coisa mastigada, encadeada, de preferência
sequencial: começo, meio e fim, e se possível com uma boa moral no
final. E é contra isso que me insurjo. É mesmo um princípio. Eu quero
justamente a história mal contada, aquela em que você tropeça, tem que
voltar, que deixa dúvidas.
Valor: E foi complicado montar esses labirintos no romance?
Bettega: Quando começo um livro, eu saio fazendo,
não sei o que vai acontecer. Essas ligações vão surgindo depois. Claro
que isso implica voltar muitas vezes, refazer, reescrever para poder
fazer essas ligações. Tenho a impressão de que as pessoas, ao ler meus
livros, pensam que sou um escritor cerebral, que imagina tudo o que vai
acontecer, que traça planos, mas não é assim. Sou superintuitivo. Vou
escrevendo e depois vou achando essas ligações.
Valor: O livro arranca com um enorme parágrafo
sem ponto final, o que faz que a primeira parte pareça acelerada,
atropelada. Por que optou por essa forma?
Bettega: Toda a primeira parte é composta por
capítulos que são blocos de textos sem ponto final. Foi um risco que
decidi correr. Ou o leitor entra e se deixa levar, embarca, ou vai
largar o livro. E acho até que muita gente pode largar. Isso não foi
premeditado. Comecei a escrever, escrevi um parágrafo longo, e vi que
aquilo ganhava um certo ritmo, senti melhor a voz daquele personagem e
decidi continuar porque fazia sentido. É um personagem que erra, que
erra atrás da filha numa cidade que é a dele, mas ele não conhece mais.
Achei que esse fluxo casava bem com isso, que poderia traduzir certo
estado de espírito do personagem. Mas tenho consciência de que não
facilito muito para o leitor, não apenas na primeira parte, e que posso
até estar rechaçando leitores. Ao mesmo tempo, se não fizesse assim eu
ia me sentir falso comigo mesmo. Acho que esse livro exige certa
parceria do leitor, não sei se tenho direito de pedir isso a priori, mas
é como se eu dissesse: vem comigo, vamos. Avança mesmo que algumas
coisas fiquem incompreensíveis. Estamos no escuro, mas vamos caminhando
de mão dada. Até porque eu, quando escrevia, também caminhei no escuro.
Valor: Novamente volta aos seus textos um ar pessimista, fatalista. Pode-se dizer que é uma marca da sua escrita?
Bettega: Isso aparece nos meus escritos sim. "Deixe o
Quarto Como Está" é meio cinzento também, meio sem saída. Acho que faz
parte do meu universo, da minha visão de mundo.
Valor: É um livro de alguém que chegou ao meio do caminho da vida e começa a fazer balanços?
Bettega: Não cheguei a pensar dessa maneira. O que
tem são dois personagens, que funcionam um pouco como um duplo, com
várias semelhanças: perderam os filhos, estão um pouco à mercê das
coisas, do que acontece à volta deles. Não têm a vida nas mãos, não têm o
controle. E, se você se deixa levar, tem uma hora que paga por agir
assim. Eu tenho essa característica de deixar as coisas acontecerem e
isso é algo que me inquieta. E nem tenho do que me queixar, porque tem
me acontecido bem, mas às vezes sinto o perigo disso.
Valor: O livro levanta também a questão da
impossibilidade de traduzir sentimento em palavras. Quase como um
reconhecimento do fracasso de escrever. É uma batalha perdida?
Bettega: Isso é um dos pilares do livro. Uma das
coisas em que bato. Sim, a literatura, ou melhor, a escrita é uma
batalha perdida. Você sabe que não vai conseguir fazer o que tem na
cabeça. É perdida desde o início, porque é tentar traduzir uma coisa que
pode ser tudo - um pensamento, uma imagem -, menos palavra, em palavra.
Então você já perdeu. Não vai chegar. Está fadado ao fracasso. Digo
isso desde a epígrafe, tirada de um texto de Beckett, que diz que no
outro dia tudo o que restava do sonho era um ressaibo de fracasso. Vai
querer dizer algo, mas não vai conseguir dizer exatamente o que você
quer. É o que acontece a todo tempo. Agora, por exemplo, estou tentando
explicar coisas e tenho certeza de que não vou conseguir fazer da
maneira como eu gostaria. Isso acontece a todo tempo nas relações que
você tem com as pessoas.
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