Ariel Dorfman*
“No dia seguinte, nessa terça-feira desbordante de terror em Santiago, muitas coisas mudaram para sempre, mudanças políticas e econômicas que alteraram o Chile
e, se poderia aventurar, também o mundo. Mas quando contemplamos o
passado, o que precisamos recordar é que, em última instância, a
história é feita e sofrida por seres humanos reais, homens e mulheres
que ficam penosamente afetados. A história consiste em muitos Claudios e muitos Jimenos de nossa espécie”,
escreve o escritor chileno Ariel Dorfman, em artigo publicado no jornal argentino Página/12, 11-09-2013. A tradução é de André Langer.
Continua bem viva na minha memória a imagem de quando me despedi dele
sem saber que se tratava de uma despedida definitiva, sem saber que em
pouco tempo ele estaria morto e eu iria sobreviver, nenhum dos dois
antecipando que os militares matariam a ele em vez de me maltratar.
Nos conhecemos em 1960, quando os dois cursávamos o primeiro ano de estudos na Universidade do Chile. Dentes sobressalentes e uma barba preta ouriçada mereceram-lhe um apelido, Coelho, que ostentaria até o dia da sua morte. Estava noivo de Chabela Chadwick, uma estudante de química, e quando eu comecei a sair com Angélica,
minha futura mulher, os quatro participávamos, junto com outros
entusiastas condiscípulos, de uma série de atividades: festas e passeios
à praia e, sobretudo, de manifestações de protesto. Porque o que em
última instância mais nos unia, mais do que compartilhar confidências e
esperanças, era uma feroz necessidade de lutar por justiça social em um
continente de extrema pobreza e desenvolvimento frustrado. Como milhões
de outros chilenos, Claudio e eu éramos fervorosos seguidores do socialista Salvador Allende, que proclamava – em uma época em que a guerrilha se levantava com fúria em toda a América Latina
– que era possível uma revolução em nosso país sem recorrer à
violência, que podíamos criar uma sociedade mais justa e soberana por
meios democráticos e pacíficos. Nossos sonhos se tornaram realidade
quando, 10 anos mais tarde, Allende venceu as eleições presidenciais de 1970.
Os sonhos e a realidade, no entanto, nem sempre andam juntos.
Já em meados de 1973, o governo de Allende estava
assediado por seus inimigos internos e externos e pela crescente ameaça
de um pronunciamento militar. De maneira que quando Fernando Flores,
o secretário geral de Governo do Presidente, me pediu que fosse seu
assessor de imprensa e cultura, não tive a menor dúvida. Uma das minhas
responsabilidades mais urgentes era que devia fazer guarda uma vez a
cada quatro noites no Palácio La Moneda, para que pudesse me comunicar com Allende em caso de alguma emergência. Nas outras noites, os três outros assessores faziam um rodízio entre si, um dos quais era Claudio Jimeno.
De maneira que quando me dei conta de que cabia a mim dormir no La Moneda
na noite da segunda-feira, 10 de setembro, nada mais natural, então,
que trocar esse turno com meu velho amigo, pedir-lhe se era possível
trocar comigo para o domingo, 09 de setembro. Me convinha esse domingo
porque era a única oportunidade que eu tinha para mostrar a Rodrigo, meu filho de seis anos, a galeria de retratos dos primeiros presidentes do Chile
e para que experimentasse, antes que sua mãe viesse pegá-lo, esse
momento mágico em que as luzes do Palácio se acendiam ao crepúsculo.
Claudio assentiu sem titubear. Nesses tempos
malogrados, passar, ainda que fosse uma hora extra com o filho que não
tínhamos certeza de ver no dia seguinte, constituía um presente
insubstituível. De fato, ele me agradeceu a troca, já que lhe permitia
gozar de um domingo tranquilo com a Chabela e seus dois filhos.
E então quis a boa e a má sorte que fosse Claudio Jimeno quem atendesse ao telefone na madrugada de 11 de setembro de 1973, recebendo a notícia de que o golpe, liderado pelo general Augusto Pinochet, havia começado. E foi Claudio quem chamou Allende e Claudio quem lutou ao seu lado no La Moneda e Claudio
quem acabou sendo preso e depois torturado e finalmente morto,
convertendo-se em um dos primeiros chilenos desaparecidos. Ao passo que
eu acordei ao lado do amor da minha vida, de Angélica, e tratei de chegar ao La Moneda
e não consegui e eis-me aqui, 40 anos mais tarde, homenageando o meu
amigo e comemorando o que se perdeu e o que se aprendeu, e recordando,
porque Claudio não pôde fazê-lo, como mantivemos viva a esperança em meio à obscuridade. Eis-me aqui, ainda sem poder visitar o túmulo de Claudio, porque os militares que o mataram ainda não revelaram o local onde jogaram o seu corpo humilhado.
O destino de Claudio prefigurou o destino do seu país.
Aguardavam-nos décadas de repressão e pavor, de pesadelos e combates.
Mesmo quando terminamos derrotando a ditadura, nossa democracia
restaurada se viu severamente restringida. A sinistra Constituição de Pinochet,
aprovada em um referendo fraudulento em 1980, segue sendo até hoje a
lei suprema da república, obstaculizando tantas reformas imprescindíveis
que o país reclama.
Se bem que aquele 11 de setembro de 1973 foi trágico para tantos
chilenos, também teve consequências que ultrapassam as nossas margens
remotas. O naufrágio da revolução chilena repercutiu de forma
significativa na Europa, onde levou a uma fundamental reorientação da esquerda em vários países (especialmente na Espanha, França e Itália):
a certeza de que não bastava uma maioria eleitoral exígua para levar a
cabo transformações substanciais na sociedade, mas que se necessitava de
um consenso amplo e profundo. Nos Estados Unidos, a intervenção da CIA na queda de Allende
foi um dos vários fatores que conduziram a investigações no Congresso,
estabelecendo leis que limitam as intromissões do Poder Executivo
norte-americano em assuntos internos de outras repúblicas, abrindo uma
discussão que é neste momento mais peremptória que nunca, em vista de
que os presidentes norte-americanos seguem adjudicando-se o direito de
se imiscuir ilegalmente em qualquer canto da Terra onde seus interesses
poderiam estar em perigo, ou seja, matar e espionar em todo o mundo.
O legado mais crucial, no entanto, do 11 de setembro chileno, foram as estratégias econômicas implementadas por Pinochet.
Meu país converteu-se, com efeito, em um laboratório para um selvagem
experimento neoliberal, uma terra onde a avareza desmedida, a extrema
desnacionalização dos recursos públicos e a supressão dos direitos dos
trabalhadores foram impostas com virulência a um povo desamparado.
Muitas destas políticas foram adotadas mais tarde por Margaret Thatcher e Ronald Reagan
(assim como por líderes no resto do mundo), acarretando uma disparidade
escandalosa na distribuição da renda e da riqueza e, se poderia alegar,
criando as condições para as últimas crises financeiras que sacudiram o
mundo. Certamente, este modelo chileno de um livre mercado exorbitante e
sem freios não perdeu hoje seu atrativo. A drástica e desastrosa
privatização do sistema previdenciário sofrida no Chile
é enaltecida por direitistas de todas as cores como uma “solução” para o
“problema” das pensões dos aposentados. E, recentemente, The Wall Street Journal, em um editorial, sugeria que “oxalá, os egípcios tivessem a boa sorte de que seus novos generais reinantes fossem como Augusto Pinochet do Chile”.
Felizmente, o Chile não exportou apenas as piores
experiências surgidas da rebelião militar. Também serviu como um modelo
de como um povo desarmado pode, através da não violência e de uma árdua
campanha de desobediência civil, superar o medo e liquidar uma ditadura.
Os alentadores movimentos de resistência e a favor da democracia que
brotaram em todos os continentes durante estes últimos anos provam que o
futuro não precisa ser impiedoso, que o 11 de setembro chileno não
marcou o fim da busca da liberdade e da justiça social pela qual morreu Claudio Jimeno, que talvez seu sacrifício não tenha sido inteiramente em vão.
No dia seguinte, nessa terça-feira desbordante de terror em Santiago, muitas coisas mudaram para sempre, mudanças políticas e econômicas que alteraram o Chile
e, se poderia aventurar, também o mundo. Mas quando contemplamos o
passado, o que precisamos recordar é que, em última instância, a
história é feita e sofrida por seres humanos reais, homens e mulheres
que ficam penosamente afetados. A história consiste em muitos Claudios e muitos Jimenos de nossa espécie.
Essa é a história irreparável, que dói e nos condói: Claudio não pode acordar, como eu o faço cada manhã, ao canto interminável dos pássaros.
Claudio Jimeno, o amigo que morreu em meu lugar 40 anos atrás, nunca verá seus netos crescer, nunca poderá sorrir quando o chamarem de Avô Coelho.
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Fonte: http://bit.ly/15j4TIv |
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