O diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da
Cultura, padre José Tolentino Mendonça, considera que a “Lumen fidei”
(A luz da fé), primeira encíclica do papa Francisco, acentua a
pertinência pública da fé.
«O papa Francisco corrobora algo de essencial,
que é dizer assim: é preciso colocar a fé cristã no centro do debate
público. A Igreja tem atualidade não apenas pelo magnífico gesto de
Lampedusa, mas por isto que mulheres e homens transportam na história, a
fé, que não pode ser acantonada para um gueto, mas tem de ser a
questão primeira, a questão que se discute, algo que se privatiza»,
disse num encontro realizado esta terça-feira em Lisboa com o pensador
Eduardo Lourenço.
No debate organizado pelo Centro de Reflexão
Cristã, o vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa vincou que «a
fé discute, pensa-se e reflete-se»: «Esta urgência para que a fé e a
reflexão sobre ela reencontrem a sua natureza pública e de debate,
parece-me um contributo extraordinário da encíclica».
«Podemos pensar que uma encíclica sobre a fé
seria para o interior da Igreja; e, de certa forma, só interessa aos
crentes, aos suspeitos do costume. Mas este texto, com a força do
pensamento de um teólogo raro como era Bento XVI, e com a força
profética do papa Francisco, leva-nos a uma reflexão sobre a
pertinência pública da fé», afirmou.
No entender do padre Tolentino Mendonça, «o
futuro da fé passa por aquilo que é vivido pelos crentes, e não apenas
pela aceitação que a cultura contemporânea pode ter do que é a fé».
Por isso, «a vivacidade do debate que a encíclica
pode suscitar no interior das comunidades é essencial para que o
depósito da fé ganhe uma reverberação e uma impertinência que torne a
fé naquilo que ela é, isto é, sal e luz».
A centralidade que Francisco deu à fé torna-se
ainda mais acentuada perante o «grande risco» que existe ao analisar
mediaticamente o seu pontificado, que «faz a Igreja ganhar relevância
por coisas que ou se situam no magistério chamado social, ou então são
os pequenos detalhes, como o papa levar a sua mala para o avião, ou
quebrar os ritos do protocolo».
A «linha de continuidade» entre Francisco e Bento
XVI, que redigiram a encíclica, foi também realçada, não só pela
comunhão que representa, mas também pelas diferenças entre os dois
pontífices, com o papa argentino a «desconstruir a imagem do papado».
«Há uma imagem do que é um papa do Ocidente, que
conhecemos porque olhamos para o exemplo de todos os papas que a
História nos legou, e em pequenos gestos – a linguagem dos símbolos,
sendo imensa, faz-se de detalhes ínfimos – o que vemos é que ele nos dá
a ver o papa pela primeira vez. Provavelmente há dimensões do próprio
pontificado, deste homem que faz pontes, que estamos a descobrir no
papa Francisco», apontou Tolentino Mendonça.
«Num pontificado marcado pela originalidade do
temperamento e das relações – não podemos esquecer que o palácio
apostólico está vazio, porque ele mora noutra casa… são elementos
simbólicos de uma força extraordinária –, o acolhimento que o papa
Francisco faz, estabelecendo uma continuidade entre os dois
pontificados, é um gesto profético. Sendo ele, claramente, a nível
simbólico, uma figura de cultura, ele escolhe dar um sinal de
continuidade. Pode não ser, no imediato, uma força deste texto, mas
quando for olhado com a distância histórica, entendendo todo o seu
alcance, vamos perceber que é um grande dom o papa ter assinado uma
reflexão proposta pelo seu predecessor», acrescentou.
O alargamento dos horizontes culturais
manifestado na “Lumen fidei” foi também enaltecido pelo sacerdote no
debate intitulado “A luz da fé e os desafios das periferias”.
«Talvez pela primeira vez numa encíclica não se
citam apenas os filósofos da modernidade. Nós lembramos a grande
novidade que foi a primeira encíclica de Bento XVI, “Deus é amor”,
porque cita autores inesperados, como Juliano, o Apóstata, ou
Nietzsche. Nesta nova encíclica volta a citar-se Nietzsche, mas cita-se
também Wittgenstein, Rosseau, mas não só… citam-se os poetas, como
Dante, Eliot, grandes narradores, como Dostoiévski; e citam-se não
apenas os teólogos antigos, da Patrística, como é normal citar nas
encíclicas, mas também autores contemporâneos de relevo, e muito
distintos entre si, como o cardeal Newman, Romano Guardini e Martin
Buber», destacou.
O recurso a uma maior variedade de autores
«mostra bem como a rede de pensamento se vai alargando, isto é, a
reflexão sobre a fé não é apenas monocórdica, mas procura-se uma
polifonia que dá a este texto uma densidade e, ao mesmo tempo, uma
grandeza muito significativa».
Depois de lembrar José Saramago, quando ele se
referia à violência causada por motivos religiosos, o diretor da
Pastoral da Cultura disse que «uma das tentações de quem procura o
convívio com a verdade é tornar-se totalitário e dono dessa verdade».
No seu entender, a encíclica desarmadilha as
«tentações de violência, fundamentalismo e obscurantismo no interior da
religião, bem como na imagem pública que muitos setores têm do
fenómeno religioso», e salienta o contributo da fé para a vincar a
dignidade humana, promover o perdão e desenvolver uma atitude de
respeito pela natureza.
Para o padre Tolentino Mendonça, «nenhuma
encíclica é um texto completo», e a “Lumen fidei” não foge a essa
regra, como se comprova, por exemplo, com a ausência da questão da fé
enquanto problema político.
À semelhança de qualquer texto, a “Lumen fidei”
exige dos seus leitores uma disposição ativa, que a complete e
enriqueça: «O que é acolher uma encíclica dentro da Igreja? Penso que é
acolhê-la no debate, e por vezes também no dissenso. Não é apenas um
acolhimento devoto ou beato, mas fazer dela um texto que é alimento e,
simultaneamente, suscitador de uma energia reflexiva e crítica dentro
da comunidade».
---------------------------
Reportagem por Rui Jorge Martins
Nenhum comentário:
Postar um comentário