Ao completar 80 anos de vida, Armindo Trevisan fala, com sólida erudição, sobre os aspectos religiosos, eróticos e sociais de sua poesia.
Zero
Hora – Seu primeiro livro, A Surpresa de Ser, começa com um poema que
humaniza os objetos. Qual a origem dessa “surpresa de ser” transmitida
ao mundo inanimado?
Armindo Trevisan – Minha formação é teológica, o mesmo curso que os sacerdotes fazem, embora mais tarde tenha me laicizado. Depois, fiz doutorado em Filosofia. E como para mim a poesia não é senão a aplicação da linguagem simbólica à realidade, sempre tive medo de me afastar das coisas concretas. Por isso, coloquei na minha cabeça desde o início que seria um poeta da realidade concreta. Eu deixaria para a minha inclinação filosófica fazer perguntas de outra ordem, mas na poesia eu ficaria apegado às coisas, e principalmente, como até hoje, ao corpo.
ZH – O senhor tem uma série de poemas sobre a nudez em A Surpresa de Ser. E, no livro seguinte, A Imploração do Nada, fala em uma “tristeza essencial do corpo”. Na sua poesia o corpo é um instrumento de ascese?
Trevisan – Exatamente. Porque na realidade nós nos preparamos para um fato dramático, porque a morte é inevitável, e ela, para mim, é a nudez completa. Vi a morte de meu pai, de minha mãe, e no fim a gente fica totalmente frágil, entregue a essa nudez pré-metafísica, que acho que nos prepara para outra realidade que não é a deste mundo. Claro, para uma pessoa agnóstica ou que não tem fé, esse conceito não é facilmente inteligível, porque a ressurreição não é a continuação desta vida, é uma outra vida, fora do espaço e do tempo. Mas que poderá ser em outra realidade e em outro tempo, porque acredito que também a ressurreição será do mundo, como pensam os cristãos orientais.
ZH – Algumas críticas qualificam sua vertente religiosa como “pietismo”. Dado que longe vão os tempos da poesia religiosa de Jorge de Lima ou Murilo Mendes, o senhor acha que essa religiosidade de algum modo prejudica a recepção da obra?
Trevisan – Em certo sentido eu me sinto às vezes solitário nessa busca. Eu li há pouco um livro chamado O Rumor dos Cortejos, uma coletânea organizada por um jovem do Rio de Janeiro, de nome Pablo Simpson, e ele fez uma antologia em português dos poetas cristãos da França: (Charles) Peguy, Patrice de La Tour du Pin, Paul Claudel, Francis Jammes. Todos autores meus conhecidos, e eu li aquilo e não me senti tão próximo como eu imaginava, porque eles ficam em uma espécie de cerebralismo, um tipo de poesia que eu chamo de pseudoteológica, e que no fim me faz perguntar sobre o que eles estão falando. Nesse sentido, me sinto 10 vezes mais próximo de Jorge de Lima, de Murilo Mendes, que eram pessoas concretas, abordavam as coisas concretas. Então, a minha luta hoje é ser fiel ao Cristianismo e ser fiel ao nosso tempo, que levantou muitas questões, muitos problemas, muitos desafios que o Cristianismo ainda não conseguiu responder. E o poeta de certa maneira pressente essa realidade e as exprime de uma forma primária, imediata, como é a sensorialidade, como é a emoção.
ZH – Dos poemas eróticos do início da sua carreira em Corpo a Corpo, passando por uma fase intermediária em A Dança do Fogo até este último livro, Adega Imaginária, parece que o senhor caminhou para uma representação mais direta e aberta do erotismo e do corpo, menos metafísica.
Trevisan – Isso mesmo. Até porque o conceito de erotismo eu estudei bastante, não apenas nos livros tradicionais, polêmicos, como O Erotismo, de Bataille, mas em muitos de ordem filosófica, como os de Levinas. E acho que deveríamos compreender que genitalidade e erotismo são dois conceitos distintos. A genitalidade se refere ao prazer que se obtém de dois corpos no ato sexual direto. E o Eros, no termo grego mesmo, era todo tipo de prazer sensorial, portanto, no conceito grego, não só havia Eros no encontro sexual, mas em uma conversa, em um perfume, em um bom um jantar, em estar em contato com a natureza. Curiosamente, eu diria que Marcuse foi um dos poucos que na época recente se deu conta disso.
ZH – Adega Imaginária alude ao vinho já no título. Em A Imploração do Nada o senhor já falava em uma “ânfora que é rompida e recomposta e novamente rompida para que o vinho por ela se derrame”. Um poeta cristão com formação teológica não consegue escapar da imagem do vinho?
Trevisan – Não, dessa não (risos). Um teólogo chamado Gianfranco Ravasi, hoje um cardeal da Igreja, dedicou um livro ao Cântico dos Cânticos, e é impressionante, porque ele faz um relato das origens mesopotâmicas e egípcias até Israel, e aponta o vinho sempre como a imagem primordial do amor. De tal maneira, ele diz, que se pode dizer que, para a Bíblia, vinho e amor são duas imagens essencialmente entrelaçadas. E o vinho vem da terra, da videira, é esmagado, purificado, tem álcool, que nos inflama os sentidos, tem cor, e eu encontrei todos esses aspectos na poesia arábico-andaluza, que me influenciou muito, porque vivi um tempo na Andaluzia com uma bolsa de estudos. Lá, assimilei os grandes especialistas do arabismo islâmico. Para mim, um dos poemas mais lindos da literatura mundial tem muitas influências arábico-andaluzas, que é o Romance da Casada Infiel, de García Lorca.
ZH – O senhor começa sua carreira em uma época em que ainda ecoava com força o Concretismo, com sua tentativa de ampliar os limites da forma. Mas sua poesia sempre assumiu feição clássica e dicção por vezes castiça. O senhor chegou à conclusão que sua poesia passava por uma negação dessa vanguarda formal?
Trevisan – Sim, durante muito tempo assisti do lado de fora, digamos assim, a toda essa revolução liderada em grande parte pelo eixo Rio-São Paulo, sobretudo pelos irmãos Campos, com os quais tive até conversas, especialmente com o Haroldo de Campos, contestando que ele próprio fosse fiel aos seus cânones. Houve uma vez em que ele veio a Porto Alegre para lançar um livro e eu disse para ele: “Escute, meu caro Haroldo, me desculpe, mas a tua poesia é tão discursiva quanto a minha”. E ele me respondeu: “Mas já faz 20 anos que eu deixei o Concretismo, mas todo mundo continua me cobrando”. Então se vê que havia também da parte deles uma espécie de senso lúdico da coisa. Eu, na realidade, nasci clássico, me assumi clássico e morrerei clássico. Não que eu seja um clássico, mas o meu ideal é o classicismo. O que eu entendo por classicismo? É uma dicção límpida, profundamente inspirada pela língua, pela origem simbólica da poesia, pelo fato de que a poesia foi a base da linguagem.
ZH – Mas assim como Borges aponta que Pierre Menard não pode ser o autor do mesmo Quixote de Cervantes devido ao inescapável contexto, é possível ser clássico hoje?
Trevisan – Acho que sim. Porque também não podemos nos abstrair da cultura. Meu último livro, Adega Imaginária, sobretudo na última parte, só pode ser compreendido no contexto da cultura internacional. O classicismo consistiria, no meu entender, em dar o máximo de clareza, de musicalidade, de finesse, de compreensibilidade metafísica ou cosmovisional às pessoas. Na realidade, existem muitos clássicos modernos. Eu diria que eu sou um filhote daqueles quatro grandes homens da renovação poética moderna: Baudelaire, Verlaine, Mallarmé e Walt Whitman, com a criação do verso livre. Então, a partir dessa revolução que foi aparentemente anticlássica, pode-se pensar em um novo classicismo, como o do próprio Borges ou o daqueles americanos maravilhosos como Wallace Stevens, William Carlos Williams, Robert Lowell. Ou modernos como Czeslaw Milosz, por exemplo. Notas que eu estou contrapondo o clássico ao conceito do transtorno total da linguagem comunicacional. Acho que a renovação lírica, das imagens e das metáforas, pode ser feita sem violentar a sintaxe e as outras bases da comunicação.
ZH – Seu livro Funilaria no Ar, lançado em 1973, volta-se para a poesia social. O senhor fala ali de fome, indústria, mercado de capitais. Esse impulso da poesia engajada vem da situação política do período?
Trevisan – Sim. Eu recebi um impulso fortíssimo de Vinicius, com o Operário em Construção, e de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto, que eu considero o grande poema de aceitação popular. O poeta que mais admiro no Brasil é João Cabral. Claro, há outros grandes, como Murilo Mendes, que foi meu mestre, Jorge de Lima, Drummond, Cecília Meirelles, Vinícius, e eu amo todos eles, mas se tivesse que escolher um ícone, ainda escolheria João Cabral, pelas exigências que ele faz ao poeta.
ZH – Funilaria no Ar vai buscar imagens no universo industrial. O senhor fala dos “ferramenteiros” em Em Pele e Osso, e mesmo ao voltar à poesia cristã, evoca um Ferreiro Harmonioso. Qual a origem dessa imagética? É influência marxista?
Trevisan – Essa minha obsessão ainda continua, embora tenha se tornado humor em Adeus às Andorinhas. Naquele momento, contudo, nos anos 1970, era uma expressão dura, foi um processo da minha revolta, influenciado por toda a situação aqui no Brasil, por Thiago de Mello, que se tornou mais tarde ainda mais meu amigo, quando nos encontramos na Europa. Mas também é influência de alguns autores portugueses, como Herberto Helder, Alexandre O’Neill, fui realmente bem influenciado por eles. E havia, sim, influência marxista. Eu dava aulas de Marx na universidade em Caxias do Sul. O nosso governador, Tarso Genro, ia naquela época discutir Marx comigo, ele era totalmente marxista e eu tentava contrapor a isso o existencialismo, porque para mim Marx, apenas, não era a chave, era preciso pôr na equação Camus, Merleau-Ponty, Teilhard de Chardin, (Karl) Jaspers, Heidegger, toda essa gente que vinha da minha formação filosófica e que me influenciou muito. Hoje, porém, estou meio descrente nos movimentos populares puramente anárquicos. É necessário uma batalha mais longa, mais dura e mais cerebral, para tentar mudar as estruturas. Perdi um pouco minha ingenuidade entusiástica e me tornei mais crítico, na linha de autores como Wislawa Szymborska.
ZH – Em Abajur de Píndaro & A Fabricação do Real, o senhor se abre ao que se chamaria de “cultura pop”, indo de Dylan Thomas a Bob Dylan. Como se dá essa contaminação, por assim dizer?
Trevisan – Como eu vivia em um meio bastante “subversivo”, que era o da Faculdade da Arquitetura e, um pouco menos, o do Instituto de Artes, assimilei no contato com aqueles rapazes muitos desses elementos. Via os valores deles, a coragem que tinham de afrontar os poderes constituídos, uma coragem que na época eu tinha bem menos. Hoje vejo que poderia ter dado mais apoio àquela luta direta contra a opressão. Tive de defender algumas vezes alguns alunos, fui chamado a testemunhar a favor deles. Essa assimilação não foi suficientemente profunda, infelizmente. Foi mais estética e literária, mas, em caráter existencial, poderia ter sido mais profunda. Depois disso é que passei por uma fase em que li muitos dos poetas beats, sob a influência de alunos, como o Jorge Furtado, que se tornou meu grande amigo. Fui de professor em discípulo.
ZH – Em O Ferreiro Harmonioso, de 1978, o senhor fala em um Salomão que, “com todo o seu esplendor”, aparece “com o macacão de garagista” e “vai morrer crucificado em vosso relógio-ponto”. Dada sua formação sacerdotal, essa imagética que aproxima o sagrado do operariado é de algum modo influência da Teologia da Libertação?
Trevisan – Sim. A minha única objeção fundamental à Teologia da Libertação era ela não ser capaz de manter fidelidade a alguns dogmas que são mistérios, como a encarnação de Cristo, por exemplo. Não concordava com essa necessidade que eles viam de levar o humanismo à igreja de modo que recusasse até o lado sobrenatural. Mas eu adoro o trabalho do fundador da teologia, Gustavo Gutiérrez, e o respeito muito. A Teologia da Libertação lamentavelmente não foi compreendida pela Igreja, assim como os líderes da Teologia não compreenderam a Igreja, o que gerou uma oposição que acabou por neutralizar as duas forças. E com isso a gente perdeu uma contribuição fundamental dessa teologia, especialmente na América Latina, que é o testemunho da presença do Cristianismo nas classes mais perseguidas.
ZH – Em A Serpente na Grama, o senhor volta à questão social, mas há um tom de memória de algum modo diluído nos livros anteriores como Funilaria no Ar e Em Pele e Osso. Como se a sua aproximação com a questão social também fosse primeiramente estética, e só depois pessoal. O senhor concorda?
Trevisan – Sim, eu não tive as experiências duríssimas que as gerações mais novas tiveram. O meu trabalho de pesquisador nas Artes Plásticas foi uma espécie de complemento disso, de levar o processo da arte ao grande público. Meu engajamento social se deu mais no campo estético, quando comecei a notar que as pessoas estavam perdendo a chave de interpretação da literatura e da arte. Como iriam entender a arte moderna, por exemplo? Por isso escrevi um livrinho pequeno analisando a arte abstrata chamado A Dança do Sozinho. Eu me dediquei ao que chamo de socialização da cultura e da estética, por meio desses livros que andei escrevendo.
ZH – Seus livros parecem seguir uma trajetória pendular. O senhor estreia com dois livros de lírica metafísica, passa para a questão social, concentra-se no erotismo, volta à questão social, passa para a reflexão sobre a fé e repete outras vezes o percurso. Isso foi parte de um plano?
Trevisan – Não, mas é verdade, eu noto também isso. Acho que isso corresponde também a realidades existenciais. Escrevo a poesia erótica de Corpo a Corpo na época em que me casei. E à medida que meus filhos foram crescendo, namorando, casando, foram vindo os netos... Uma neta tem 18 anos e mora conosco desde os três, então acompanhei toda a adolescência dela. Essa alternância foi efeito da vida, cheia de eventos recorrentes. Eu reajo de acordo com esses fatos conjunturais. Mesmo um dos livros mais recentes, Adeus às Andorinhas, tem um erotismo diferente, com mais ironia, que é um olhar sobre o amor que só não chega a ser cínico porque eu sou religioso, sobre o amor, as relações, as separações. Eu mesmo tenho uma filha que casou, se separou e casou de novo, então tudo isso me leva a uma reflexão.
ZH – O crítico Paulo Franchetti, em um prefácio publicado em Estudos de Literatura Brasileira, comenta que o senhor sofre “do mal de ser (...) um poeta quase confinado ao seu torrão, publicado o mais das vezes por editoras de distribuição regional”. O que senhor pensa dessa afirmação?
Trevisan – Eu gosto do Rio Grande do Sul. Sempre admirei o Erico Verissimo, que me dizia que provinciano é quem sai daqui, não quem vive aqui. Tu podes hoje ser universal em qualquer lugar, e uma coisa que me favoreceu hoje neste ponto é a internet. De repente, uma senhora de São Paulo telefona para uma amiga minha, dona de um sebo, e pede meu livro Cartas à Minha Neta. E essa minha amiga quis fazer uma propaganda e dizer que tinha outros dos meus livros. Mas a leitora já tinha praticamente todos, e os havia obtido pela internet, pela Estante Virtual. Eu mantive um blog durante cinco anos em que publiquei ensaios, que vão sair coletados em livro agora em novembro. E por aí notei que a internet difunde a gente em todos os lugares. Devido a esse blog, dei uma entrevista a brasileiros que viviam em Moscou e que me escreveram perguntando o que eu podia dizer sobre literatura russa. Eu acho que hoje o poeta tem meios de se tornar conhecido fora do seu espaço através da internet.
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Armindo Trevisan – Minha formação é teológica, o mesmo curso que os sacerdotes fazem, embora mais tarde tenha me laicizado. Depois, fiz doutorado em Filosofia. E como para mim a poesia não é senão a aplicação da linguagem simbólica à realidade, sempre tive medo de me afastar das coisas concretas. Por isso, coloquei na minha cabeça desde o início que seria um poeta da realidade concreta. Eu deixaria para a minha inclinação filosófica fazer perguntas de outra ordem, mas na poesia eu ficaria apegado às coisas, e principalmente, como até hoje, ao corpo.
ZH – O senhor tem uma série de poemas sobre a nudez em A Surpresa de Ser. E, no livro seguinte, A Imploração do Nada, fala em uma “tristeza essencial do corpo”. Na sua poesia o corpo é um instrumento de ascese?
Trevisan – Exatamente. Porque na realidade nós nos preparamos para um fato dramático, porque a morte é inevitável, e ela, para mim, é a nudez completa. Vi a morte de meu pai, de minha mãe, e no fim a gente fica totalmente frágil, entregue a essa nudez pré-metafísica, que acho que nos prepara para outra realidade que não é a deste mundo. Claro, para uma pessoa agnóstica ou que não tem fé, esse conceito não é facilmente inteligível, porque a ressurreição não é a continuação desta vida, é uma outra vida, fora do espaço e do tempo. Mas que poderá ser em outra realidade e em outro tempo, porque acredito que também a ressurreição será do mundo, como pensam os cristãos orientais.
ZH – Algumas críticas qualificam sua vertente religiosa como “pietismo”. Dado que longe vão os tempos da poesia religiosa de Jorge de Lima ou Murilo Mendes, o senhor acha que essa religiosidade de algum modo prejudica a recepção da obra?
Trevisan – Em certo sentido eu me sinto às vezes solitário nessa busca. Eu li há pouco um livro chamado O Rumor dos Cortejos, uma coletânea organizada por um jovem do Rio de Janeiro, de nome Pablo Simpson, e ele fez uma antologia em português dos poetas cristãos da França: (Charles) Peguy, Patrice de La Tour du Pin, Paul Claudel, Francis Jammes. Todos autores meus conhecidos, e eu li aquilo e não me senti tão próximo como eu imaginava, porque eles ficam em uma espécie de cerebralismo, um tipo de poesia que eu chamo de pseudoteológica, e que no fim me faz perguntar sobre o que eles estão falando. Nesse sentido, me sinto 10 vezes mais próximo de Jorge de Lima, de Murilo Mendes, que eram pessoas concretas, abordavam as coisas concretas. Então, a minha luta hoje é ser fiel ao Cristianismo e ser fiel ao nosso tempo, que levantou muitas questões, muitos problemas, muitos desafios que o Cristianismo ainda não conseguiu responder. E o poeta de certa maneira pressente essa realidade e as exprime de uma forma primária, imediata, como é a sensorialidade, como é a emoção.
ZH – Dos poemas eróticos do início da sua carreira em Corpo a Corpo, passando por uma fase intermediária em A Dança do Fogo até este último livro, Adega Imaginária, parece que o senhor caminhou para uma representação mais direta e aberta do erotismo e do corpo, menos metafísica.
Trevisan – Isso mesmo. Até porque o conceito de erotismo eu estudei bastante, não apenas nos livros tradicionais, polêmicos, como O Erotismo, de Bataille, mas em muitos de ordem filosófica, como os de Levinas. E acho que deveríamos compreender que genitalidade e erotismo são dois conceitos distintos. A genitalidade se refere ao prazer que se obtém de dois corpos no ato sexual direto. E o Eros, no termo grego mesmo, era todo tipo de prazer sensorial, portanto, no conceito grego, não só havia Eros no encontro sexual, mas em uma conversa, em um perfume, em um bom um jantar, em estar em contato com a natureza. Curiosamente, eu diria que Marcuse foi um dos poucos que na época recente se deu conta disso.
ZH – Adega Imaginária alude ao vinho já no título. Em A Imploração do Nada o senhor já falava em uma “ânfora que é rompida e recomposta e novamente rompida para que o vinho por ela se derrame”. Um poeta cristão com formação teológica não consegue escapar da imagem do vinho?
Trevisan – Não, dessa não (risos). Um teólogo chamado Gianfranco Ravasi, hoje um cardeal da Igreja, dedicou um livro ao Cântico dos Cânticos, e é impressionante, porque ele faz um relato das origens mesopotâmicas e egípcias até Israel, e aponta o vinho sempre como a imagem primordial do amor. De tal maneira, ele diz, que se pode dizer que, para a Bíblia, vinho e amor são duas imagens essencialmente entrelaçadas. E o vinho vem da terra, da videira, é esmagado, purificado, tem álcool, que nos inflama os sentidos, tem cor, e eu encontrei todos esses aspectos na poesia arábico-andaluza, que me influenciou muito, porque vivi um tempo na Andaluzia com uma bolsa de estudos. Lá, assimilei os grandes especialistas do arabismo islâmico. Para mim, um dos poemas mais lindos da literatura mundial tem muitas influências arábico-andaluzas, que é o Romance da Casada Infiel, de García Lorca.
ZH – O senhor começa sua carreira em uma época em que ainda ecoava com força o Concretismo, com sua tentativa de ampliar os limites da forma. Mas sua poesia sempre assumiu feição clássica e dicção por vezes castiça. O senhor chegou à conclusão que sua poesia passava por uma negação dessa vanguarda formal?
Trevisan – Sim, durante muito tempo assisti do lado de fora, digamos assim, a toda essa revolução liderada em grande parte pelo eixo Rio-São Paulo, sobretudo pelos irmãos Campos, com os quais tive até conversas, especialmente com o Haroldo de Campos, contestando que ele próprio fosse fiel aos seus cânones. Houve uma vez em que ele veio a Porto Alegre para lançar um livro e eu disse para ele: “Escute, meu caro Haroldo, me desculpe, mas a tua poesia é tão discursiva quanto a minha”. E ele me respondeu: “Mas já faz 20 anos que eu deixei o Concretismo, mas todo mundo continua me cobrando”. Então se vê que havia também da parte deles uma espécie de senso lúdico da coisa. Eu, na realidade, nasci clássico, me assumi clássico e morrerei clássico. Não que eu seja um clássico, mas o meu ideal é o classicismo. O que eu entendo por classicismo? É uma dicção límpida, profundamente inspirada pela língua, pela origem simbólica da poesia, pelo fato de que a poesia foi a base da linguagem.
ZH – Mas assim como Borges aponta que Pierre Menard não pode ser o autor do mesmo Quixote de Cervantes devido ao inescapável contexto, é possível ser clássico hoje?
Trevisan – Acho que sim. Porque também não podemos nos abstrair da cultura. Meu último livro, Adega Imaginária, sobretudo na última parte, só pode ser compreendido no contexto da cultura internacional. O classicismo consistiria, no meu entender, em dar o máximo de clareza, de musicalidade, de finesse, de compreensibilidade metafísica ou cosmovisional às pessoas. Na realidade, existem muitos clássicos modernos. Eu diria que eu sou um filhote daqueles quatro grandes homens da renovação poética moderna: Baudelaire, Verlaine, Mallarmé e Walt Whitman, com a criação do verso livre. Então, a partir dessa revolução que foi aparentemente anticlássica, pode-se pensar em um novo classicismo, como o do próprio Borges ou o daqueles americanos maravilhosos como Wallace Stevens, William Carlos Williams, Robert Lowell. Ou modernos como Czeslaw Milosz, por exemplo. Notas que eu estou contrapondo o clássico ao conceito do transtorno total da linguagem comunicacional. Acho que a renovação lírica, das imagens e das metáforas, pode ser feita sem violentar a sintaxe e as outras bases da comunicação.
ZH – Seu livro Funilaria no Ar, lançado em 1973, volta-se para a poesia social. O senhor fala ali de fome, indústria, mercado de capitais. Esse impulso da poesia engajada vem da situação política do período?
Trevisan – Sim. Eu recebi um impulso fortíssimo de Vinicius, com o Operário em Construção, e de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto, que eu considero o grande poema de aceitação popular. O poeta que mais admiro no Brasil é João Cabral. Claro, há outros grandes, como Murilo Mendes, que foi meu mestre, Jorge de Lima, Drummond, Cecília Meirelles, Vinícius, e eu amo todos eles, mas se tivesse que escolher um ícone, ainda escolheria João Cabral, pelas exigências que ele faz ao poeta.
ZH – Funilaria no Ar vai buscar imagens no universo industrial. O senhor fala dos “ferramenteiros” em Em Pele e Osso, e mesmo ao voltar à poesia cristã, evoca um Ferreiro Harmonioso. Qual a origem dessa imagética? É influência marxista?
Trevisan – Essa minha obsessão ainda continua, embora tenha se tornado humor em Adeus às Andorinhas. Naquele momento, contudo, nos anos 1970, era uma expressão dura, foi um processo da minha revolta, influenciado por toda a situação aqui no Brasil, por Thiago de Mello, que se tornou mais tarde ainda mais meu amigo, quando nos encontramos na Europa. Mas também é influência de alguns autores portugueses, como Herberto Helder, Alexandre O’Neill, fui realmente bem influenciado por eles. E havia, sim, influência marxista. Eu dava aulas de Marx na universidade em Caxias do Sul. O nosso governador, Tarso Genro, ia naquela época discutir Marx comigo, ele era totalmente marxista e eu tentava contrapor a isso o existencialismo, porque para mim Marx, apenas, não era a chave, era preciso pôr na equação Camus, Merleau-Ponty, Teilhard de Chardin, (Karl) Jaspers, Heidegger, toda essa gente que vinha da minha formação filosófica e que me influenciou muito. Hoje, porém, estou meio descrente nos movimentos populares puramente anárquicos. É necessário uma batalha mais longa, mais dura e mais cerebral, para tentar mudar as estruturas. Perdi um pouco minha ingenuidade entusiástica e me tornei mais crítico, na linha de autores como Wislawa Szymborska.
ZH – Em Abajur de Píndaro & A Fabricação do Real, o senhor se abre ao que se chamaria de “cultura pop”, indo de Dylan Thomas a Bob Dylan. Como se dá essa contaminação, por assim dizer?
Trevisan – Como eu vivia em um meio bastante “subversivo”, que era o da Faculdade da Arquitetura e, um pouco menos, o do Instituto de Artes, assimilei no contato com aqueles rapazes muitos desses elementos. Via os valores deles, a coragem que tinham de afrontar os poderes constituídos, uma coragem que na época eu tinha bem menos. Hoje vejo que poderia ter dado mais apoio àquela luta direta contra a opressão. Tive de defender algumas vezes alguns alunos, fui chamado a testemunhar a favor deles. Essa assimilação não foi suficientemente profunda, infelizmente. Foi mais estética e literária, mas, em caráter existencial, poderia ter sido mais profunda. Depois disso é que passei por uma fase em que li muitos dos poetas beats, sob a influência de alunos, como o Jorge Furtado, que se tornou meu grande amigo. Fui de professor em discípulo.
ZH – Em O Ferreiro Harmonioso, de 1978, o senhor fala em um Salomão que, “com todo o seu esplendor”, aparece “com o macacão de garagista” e “vai morrer crucificado em vosso relógio-ponto”. Dada sua formação sacerdotal, essa imagética que aproxima o sagrado do operariado é de algum modo influência da Teologia da Libertação?
Trevisan – Sim. A minha única objeção fundamental à Teologia da Libertação era ela não ser capaz de manter fidelidade a alguns dogmas que são mistérios, como a encarnação de Cristo, por exemplo. Não concordava com essa necessidade que eles viam de levar o humanismo à igreja de modo que recusasse até o lado sobrenatural. Mas eu adoro o trabalho do fundador da teologia, Gustavo Gutiérrez, e o respeito muito. A Teologia da Libertação lamentavelmente não foi compreendida pela Igreja, assim como os líderes da Teologia não compreenderam a Igreja, o que gerou uma oposição que acabou por neutralizar as duas forças. E com isso a gente perdeu uma contribuição fundamental dessa teologia, especialmente na América Latina, que é o testemunho da presença do Cristianismo nas classes mais perseguidas.
ZH – Em A Serpente na Grama, o senhor volta à questão social, mas há um tom de memória de algum modo diluído nos livros anteriores como Funilaria no Ar e Em Pele e Osso. Como se a sua aproximação com a questão social também fosse primeiramente estética, e só depois pessoal. O senhor concorda?
Trevisan – Sim, eu não tive as experiências duríssimas que as gerações mais novas tiveram. O meu trabalho de pesquisador nas Artes Plásticas foi uma espécie de complemento disso, de levar o processo da arte ao grande público. Meu engajamento social se deu mais no campo estético, quando comecei a notar que as pessoas estavam perdendo a chave de interpretação da literatura e da arte. Como iriam entender a arte moderna, por exemplo? Por isso escrevi um livrinho pequeno analisando a arte abstrata chamado A Dança do Sozinho. Eu me dediquei ao que chamo de socialização da cultura e da estética, por meio desses livros que andei escrevendo.
ZH – Seus livros parecem seguir uma trajetória pendular. O senhor estreia com dois livros de lírica metafísica, passa para a questão social, concentra-se no erotismo, volta à questão social, passa para a reflexão sobre a fé e repete outras vezes o percurso. Isso foi parte de um plano?
Trevisan – Não, mas é verdade, eu noto também isso. Acho que isso corresponde também a realidades existenciais. Escrevo a poesia erótica de Corpo a Corpo na época em que me casei. E à medida que meus filhos foram crescendo, namorando, casando, foram vindo os netos... Uma neta tem 18 anos e mora conosco desde os três, então acompanhei toda a adolescência dela. Essa alternância foi efeito da vida, cheia de eventos recorrentes. Eu reajo de acordo com esses fatos conjunturais. Mesmo um dos livros mais recentes, Adeus às Andorinhas, tem um erotismo diferente, com mais ironia, que é um olhar sobre o amor que só não chega a ser cínico porque eu sou religioso, sobre o amor, as relações, as separações. Eu mesmo tenho uma filha que casou, se separou e casou de novo, então tudo isso me leva a uma reflexão.
ZH – O crítico Paulo Franchetti, em um prefácio publicado em Estudos de Literatura Brasileira, comenta que o senhor sofre “do mal de ser (...) um poeta quase confinado ao seu torrão, publicado o mais das vezes por editoras de distribuição regional”. O que senhor pensa dessa afirmação?
Trevisan – Eu gosto do Rio Grande do Sul. Sempre admirei o Erico Verissimo, que me dizia que provinciano é quem sai daqui, não quem vive aqui. Tu podes hoje ser universal em qualquer lugar, e uma coisa que me favoreceu hoje neste ponto é a internet. De repente, uma senhora de São Paulo telefona para uma amiga minha, dona de um sebo, e pede meu livro Cartas à Minha Neta. E essa minha amiga quis fazer uma propaganda e dizer que tinha outros dos meus livros. Mas a leitora já tinha praticamente todos, e os havia obtido pela internet, pela Estante Virtual. Eu mantive um blog durante cinco anos em que publiquei ensaios, que vão sair coletados em livro agora em novembro. E por aí notei que a internet difunde a gente em todos os lugares. Devido a esse blog, dei uma entrevista a brasileiros que viviam em Moscou e que me escreveram perguntando o que eu podia dizer sobre literatura russa. Eu acho que hoje o poeta tem meios de se tornar conhecido fora do seu espaço através da internet.
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REPORTAGEM POR CARLOS ANDRÉ MOREIRA
Fonte: ZH on line, 28/09/2013
FOTO: Armindo
Trevisan em seu gabinete de trabalho: quase meio século de uma poesia
que oscilou entre engajamento, sensualidade e espiritualidade cristã
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