A MULHER À SOMBRA DA CRUZ
Reflexões sobre a obra
Reflexões sobre a obra
“A Feiticeira” (La Sorcière),
de Jules Michelet (1798-1874)
"É
certo que não havia bruxas, mas as terríveis consequências da fé nas
bruxas foram as mesmas que se verificariam
se tivesse havido bruxas."
- NIETZSCHE, Humano, Demasiado Humano – Um Livro Para Espíritos Livres, Vol. II.
I. "A CARNE É IMPURA!" - RETRATO DA NEUROSE PURITANA E SEUS MALEFÍCIOS
Quanto
mais nos informamos sobre como as mulheres foram tratadas através da
História pelas grandes religiões institucionalizadas, mais se torna
impossível falar sobre o assunto “sem que a pena gema de indignação”,
como diz Michelet (pg. 92). O grande historiador francês tenta realizar
em A Feiticeira, uma de suas obras-primas, uma análise sobre a
condição feminina na Cristandade medieval, em especial a situação
daqueles que eram chamadas de bruxas ou feiticeiras, para em seguida
serem encerradas em conventos, enterradas vivas em claustros ou
queimadas vivas nas fogueiras acendidas pela superstição brutal.
“Por
uma perversão de idéias monstruosa, a Idade Média via a carne como
impura”, escreve Michelet em sua análise da Cristandade nos séculos
ditos “das trevas” (pg. 109). Que o cristianismo tenha lançado o anátema
sobre o corpo ajuda a explicar o porquê de terem entrado para a
História aqueles séculos medievais como sombrios, tenebrosos,
des-iluminados. A Humanidade, por um milênio afundada no breu dos
dogmas, sob o jugo pesado de monarquias teocráticas e papados tirânicos,
só voltaria a ensaiar auroras no Renascimento e no Iluminismo!
Nietzsche, dentre muitos outros, mostrou muito bem os males do fanatismo religioso quando este parte ao ataque contra o corpo: não se ataca o corpo sem atacar a vida, eis o ponto! Pois o corpo, único possível hospedeiro da vida, é a condição sine qua non
da vitalidade. Não há vida senão corpórea. E a carne vivente, que
carrega em seu seio o fogo vital do desejo, apta a todas as deleitosas
sensações provindas das conexões e dos acarinhamentos entre os corpos,
foi rotulada por fanáticos espiritualistas como pecaminosa, impura,
condenável. A moralidade puritana e o ideal ascético, na análise de
Nietzsche, baseiam-se na ilusão de que um espírito imortal nos
habitaria, e motivados por este delírio perpetram atentados que causam o
declínio e a ruína dos corpos vivos; tornam as pulsões naturais e os
instintos eróticos inatos algo que merece a vergonha, a pudicícia e a
repressão; dão veneno a Eros e Afrodite e só recomendam o amor a Deus e
aos espíritos...
Os
teólogos criaram raciocínios enfadonhos de tão mirabolantes para nos
provar que devíamos massacrar nossa própria carne, reduzi-la ao
silêncio, deixa-la passar fome em suas vontades: “Mas a grande revolução
que as feiticeiras fizeram, o maior passo às avessas contra o espírito
da Idade Média”, escreve Michelet, “é o que podemos chamar de a
reabilitação do ventre e das funções digestivas” (p. 108). Ou seja,
justamente as mulheres que quiseram reabilitar o corpo, retirá-lo do opróbrio em que a Cristandade o tinha lançado, foram taxadas de bruxas ou feiticeiras!
As
feiticeiras representam, para Michelet, mulheres que superaram o pavor
pelo mundo físico que era disseminado pelos pregadores cristãos e
“professavam, com ousadia: ‘Nada é impuro e nada é imundo’. O estudo da
matéria tornou-se a partir de então ilimitado, franqueado. A medicina
tornou-se possível. (...) Tudo que é físico é puro; nada pode ser
afastado do olhar e do estudo, proibido por um vão espiritualismo, menos
ainda por um nojo tolo.” (pg. 109)
Que
diferença marcante há entre a atitude materialista/fisicalista destas
mulheres e o que dava o tom na Cristandade da Idade Média! Pois o
cristianismo era uma doutrina radicalmente anti-corporal ou anti-física,
no sentido de que “segundo ele, não só o espírito é nobre e o corpo
não-nobre, como há partes do corpo que são nobres e outras, ao que
parece, plebeias.” (p. 109) Este privilégio que se oferece a um suposto
espírito incorpóreo não se efetiva senão sob a condição de oprimir a
carne. A tirania do incorpóreo sobre o corpo é uma das marcas destes
séculos durante os quais, nos países cristãos, as mulheres eram
obrigadas a se adequar a um modelo de feminilidade baseado na Virgem
Maria: deviam considerar tudo aquilo relacionado com a carne, todos os
anseios sexuais, todos os deleites sensoriais, o domínio inteiro da
sensualidade, como impuro, imundo e pecaminoso, tornando-se “humildes
mártires do pudor” (p. 109).
Este pesado jugo que a Cristandade impõe às mulheres, porém, não se realiza sem rebeldia e resistência de
uma fração de suas vítimas: justamente estas mulheres que foram
condenadas a serem queimadas vivas nas fogueiras da Inquisição, por
exemplo, e que “faziam tudo às avessas, ao contrário do mundo sagrado”
(pg. 110).
Ora,
se a moralidade judaico-cristã, devido a este anátema lançado contra o
corpo e as realidades terrenas, representa um ataque ao próprio
prosperar fisiológico da humanidade, não é de se questionar até que
ponto o cristianismo é “necessário” e até que ponto é danoso? E não é a
filosofia de Nietzsche um esforço no sentido de averiguar as consequências de termos sido cristãos por dois milênios? Será o cristianismo tão imprescindível quanto
querem nos fazer crer seus padres, teólogos e pastores? Ou será que a
efetivação de potencialidades humanas ainda inexploradas depende da superação do cristianismo? Não será preciso deixa-lo para trás como
algo que caducou na História e lançar nossos navios para outros mares,
em que a opressão e o genocídio das minorias discordantes não seja
tamanha, e em que a carne seja menos oprimida, proibida, reprimida e
escorraçada?
Ao menos a História registra amplos movimentos contrários à imposição de uma moralidade puritana e condenatória do corpo, sendo
Nietzsche um de seus representantes mais eloquentes na filosofia. Como
nos lembra Michelet sobre a história da Idade Média, o fato do
cristianismo ser “dominante” nas instituições políticas, reinando sobre
as populações em seu poderio teocrático-monárquico, não impediu que
irrompessem do próprio seio das massas “imensas festas populares”, os sabás, que
tornam-se historicamente significativos a partir do século XIV (um
estudo histórico pormenorizado do Sabá através da História pode ser
encontrado no livro do historiador Carlo Ginzburg, História Noturna).
Nestas
ocasiões “sabáticas”, para descansarem do cansaço que é estar sob a
sombra do Crucificado, as pessoas deixavam Dionísio à solta, invocavam
Baco e outros deuses da embriaguez, cometiam as mais impudicas das
buscas orgiásticas por êxtases da carne... E haviam mulheres numerosas na Idade Média que se mostravam desejosas de participar deste processo, ajudar em
sua realização, não só participando das festas, das danças, das orgias,
mas inclusive preparando os ancestrais do chá de ayahuasca e do LSD.
Pois desde tempos remotos da história humana, ansiava-se por substâncias
inebriantes e geradoras de estranhas comunhões com o mundo físico que
nos circunda e nos contêm.
* * * * *
II. POÇÕES MÁGICAS E OUTROS ABENÇOADOS E PERIGOSOS PHÁRMAKOS
A mulher rotulada pelas autoridades da Cristandade como feiticeira é,
para muita gente do povo, vista como dotada de imenso poder, venerada
por suas capacidades de criar remédios abençoados, de soníferos a
estupefacientes, de filtros-do-amor (afrodisíacos) a cogumelos
mágicos... A mulher rotulada “feiticeira”, suspeita de ter relações
ilícitas com os poderes satânicos e as forças das trevas, é sabida em
“poções mágicas”. Não só os doentes, os necessitados, mas aqueles que se
sentem com vocações xamânicas procuram a elas, feiticeiras, a fim de
degustarem de seus sedutores e perigosos fármacos. Um jovenzinho
apaixonado desta época, caso tivesse sido flechado por Cupido ou tentado
por Eros, “pagaria qualquer preço pela beberagem ardente capaz de
perturbar o coração de uma grande dama, fazê-la esquecer as distâncias e
lançar os olhos sobre ele...” (pg. 114).
Muitos sabiam que a Igreja, interditando os amores físicos,
lançando sobre o amor físico o anátema, só permitindo-o para fins de
procriação de outros cristãos, acabava por cometer um atentado contra o
amor em geral, o amor ele-mesmo. Alguns sentiam que não havia amor que
não fosse físico, e que mesmo o amor à mente ou ao caráter do outro era sempre o amor a algo que está indissoluvelmente conectado ao corpo do outro. E
que portanto só há amor de corpos amando corpos. O mais platônico dos
amores ancora-se também no corpo; é sempre um corpo que fantasia sobre o
"espírito" do outro...
O casamento, segundo a dogmática católica, deveria ser um laço sagrado que une “até que a morte os separe”, quase uma condenação a uma co-presença vitalícia, algo
que, como lembra Michelet, não agradava a muitos homens e mulheres. Na
Idade Média, “feiticeiras” são as mulheres incapazes de se conformarem
ao ideal de feminilidade que lhes era imposto. Mandavam-nas ser
“castas”, “puras”, “humildes”, “pacientes”, que agissem como vassalas
respeitosas e obedientes de seus maridos, honrando o senhor da casa cá
embaixo e o Senhor dos céus lá em cima... E quem destoasse deste coro
dos contentes, era apedrejada como a Geni do Chico, ou torpedeada com
torpes designações como “bruxa” ou “vadia” ...
Através de toda a Cristandade, descrita com tintas sinistras por Michelet, a mulher aparece reduzida a um animal doméstico que o homem possui até a morte: não está aí inscrita a possibilidade de uma opressão tão extrema que mereça o nome de escravidão? Seja
como for, circulou pela Idade Média a tese de que “não há amor possível
entre esposos” – e os sabás foram amplamente frequentados, quiçá numa
proporção bem maior da população do que aquela que frequenta, hoje,
festas rave, orgias sexuais, ritos psicodélicos...
Os
reis e o clero, sentados em seus tronos ornados a ouro, dentro de seus
castelos-fortaleza, tendo sob seu comando exércitos com alto potencial
mortífero, eram o topo da pirâmide social. De lá faziam descer,
pirâmide abaixo, a doutrina que exigia dos súditos a “obediência ao
Senhor” - aqueles que supostamente habita nos céus - mas igualmente a
seus auto-proclamados representantes na Terra. Já os pobres camponeses,
desprovidos de terra própria, obrigados a acatar a tirania dos
latifundiários, “raspavam os pratos que os personagens de cima, sentados
junto ao fogo, lhes enviavam muitas vezes vazios.” (p. 115)
Há,
portanto, o equivalente a uma “luta de classes” neste quadro pintado
por Michelet sobre a história medieval: de um lado, uma elite cujo poder
se baseia numa teocracia latifundiária e que diz ser a servidora de
Deus na Terra; de outro, uma massa de camponeses reduzidos à servidão e à
miséria, mas com ânsias de melhorarem de vida e em revolta contra “a
injustiça da sorte”. Em uma estrutura social radicalmente tão
hierarquizada e nada igualitária, há uma fração das mulheres que se engaja num estilo de vida em que fazem tudo “às avessas do sagrado”.
Se
a Igreja diz que sagrado é ser casto e mortificar todos os tesões, a
feiticeira irá preparar beberagens afrodisíacas que tornam irresistíveis
os chamados eróticos. Se a Igreja rotula como sagrado apenas o amor
espiritual, a prática taciturna dos deveres e a contemplação dos ideais,
a feiticeira será profundamente conhecedora do corpo, exploradora dos potenciais da carne, tornando-se
íntima do mundo físico que a Igreja desdenha como profano. Enquanto a
Igreja só permitia a embriaguez se fosse na contemplação da ideia de
Deus, as feiticeiras faziam experiências amplas com a phýsis e
criavam uma farmacopeia de excitantes, estimulantes e inebriantes. Num
tempo sem drogarias, eram farmácias ambulantes, sabedoras de receitas,
capazes de aconselhar sobre ingredientes, médicas xamânicas,
proto-cientistas e dealers psicodélicas.
* * * * *
III. TUDO ÀS AVESSAS DO SAGRADO
No
século de Dante, pois, explodem como fenômeno histórico os sabás e as
missas negras, estes carnavais dos servos onde com frequência nascia uma
revolta. Nestes sabás as pessoas davam livre curso aos ritos proibidos
na Cristandade e veneravam, por exemplo, a Lua, tida como influência
determinante nos destinos humanos. Velhas danças pagãs eram exercitadas
até o frenesi. Servos unidos num sabá francês compunham canções precursoras da Marselhesa, como esta registrada por Michelet:
“Nous sommes hommes comme ils sont!
Tout aussi grand coeur nous avons!
Tout autant souffrir nous pouvons!”
Tout aussi grand coeur nous avons!
Tout autant souffrir nous pouvons!”
(“Somos tão homens quanto eles!
Temos o mesmo grande coração!
Tanto quanto eles podemos sofrer!”).
Temos o mesmo grande coração!
Tanto quanto eles podemos sofrer!”).
Se
os sabás e missas negras eram tão mau-vistos e tão perseguidos pelos
cleros e pelos reis, era pois ali germinavam as sementes da discórdia e
os planos de revolução: “o povo, educado pelo próprio clero na crença e
na fé do milagre, bem longe de imaginar a fixidez das leis de Deus,
durante séculos havia esperado um milagre, e ele nunca viera. Em vão
clamava por ele no dia desesperado de sua necessidade suprema. A partir
de então, o céu lhe pareceu como que o aliado de seus carrascos ferozes,
ele mesmo um feroz carrasco. Por isso a Missa Negra e a Jacquerie” (pg.
123).
Aqueles
que, neste sociedade, estão reduzidos à servidão e portanto à miséria,
estes pobres camponeses cujas existências parecem “um inferno em vida”
(pg. 14), são também aqueles que lotam os sabás - que chegavam a reunir
de 5 mil a 12 mil pessoas, dependendo do povoado. Nestas “imensas
assembleias” se tornava explícito a fraqueza dos dogmas propagados pela
Igreja: “Grande e terrível revelação da pouca influência moral que tinha
a Igreja, que acreditava que com seu latim, sua metafísica bizantina,
que ela mesma mal entendia, estava cristianizando o povo; no único
momento em que ele se libertava, em que podia mostrar o que era,
mostrava-se mais que pagão.” (p. 17)
Os
sabás e as missas negras seriam, pois, como algo que emerge
espontaneamente no seio do povo, que sentia necessidade de escapar da
tirania teocrática e cultuar dionisiacamente, “pagãmente”, deuses
malquistos pelos monoteístas. Cultos proscritos e condenados -
xamanismos, dionisismos, cultos à natureza, celebrações orgíacas e
extáticas da existência... - recebiam então direito de cidadania. O
carnavalesco sabá é uma festa de libertação provisória em relação à
asfixiante dogmática ascética, condenatória dos prazeres e da
sensibilidade, que então imperava na Cristandade.
Um
exemplo indignante destes tempos, fétido costume e imundo direito, é
exposto em detalhes por Michelet: na Cristandade europeia da Idade
Média, por volta do século XII, numa sociedade cindida entre uma massa
de servos empobrecidos e uma nobreza tirânica e teocêntrica, que se
isolava em seus castelos, considerava-se as mulheres camponesas (que
constituíam, afinal de contas, a massa!) como “servas de corpo” . Ou
seja, as moças, quando se casavam, não tinham o direito de uma noite de
núpcias com o novo esposo, mas eram obrigadas a fazer o dom de sua
virgindade ao senhor. Os senhores da terra impunham, com seu poder
terreno, o privilégio de desvirginamento das camponesas sob seu jugo.
Lembremos
que, nesta época, o teológico e o político estão intimamente
conectados: o senhor é, com frequência, ao mesmo tempo um eclesiástico e
um leigo; nele se reúne a autoridade religiosa e a política. Estes
homens, que se auto-proclamam os representantes de Deus na Terra, na
realidade não conseguem viver em devoto retiro espiritual: acabam
criando e conservando instituições e costumes falocráticos de opressão.
Por exemplo: Michelet conta a história de um certo pároco de Bourges
que, “sendo o senhor, exigia expressamente as primícias da esposa, mas
de fato o que queria era vender ao marido, por dinheiro, a virgindade de
sua mulher.” (pg. 70)
Revoltante
dízimo exigido por um padre que, desejoso de riqueza, suborna um pobre
camponês miserável! No geral, porém, o “preço” que estes
párocos-senhores cobravam para não fazer uso de seu privilégio de
desvirginamento eram tão exorbitantes que o pagamento beirava o
impossível: de modo que a pobre mulher camponesa da Cristandade medieval
era coagida, no dia de seu casamento, a deixar-se estuprar por aqueles
que estavam mais alto na hierarquia social. “Todos os costumes feudais
impõem à mulher subir ao castelo, levar até lá o ‘prato de
casamento’...” (pg. 70)
* * * * *
IV. A NOÇÃO FALOCÊNTRICA DE DEUS
A expressão “Deus-Pai” já diz muito: a divindade da tradição judaico-cristã é claramente masculina e
não é incomum que seja representada como um velhinho de barbas brancas
sentado sobre as nuvens, de tendências fortemente homófivas, que às
vezes se enfurece com a sodomia e o homossexualismo e os pune com
bolas-de-fogo genocidas.
Ora,
não é de se suspeitar que um deus caralhudo, viril e cheio de
hombridade como o velho Jeová tenha sido inventado por gente caralhada,
viril e cheia de hombridade? Deixo no ar a provocação, para que os
teólogos (se ainda existirem...) se virem com ela, ou me condenem às
fogueiras (que, ainda bem, não mais existem!). O que me parece evidente
neste personagem literário que encontramos nos escritos ditos “sagrados”
do judaísmo e do cristianismo é que se trata de um deus macho-man – e
que grande parte da desgraça e da opressão que despencou sobre as
mulheres na história vem da idolatria de uma tal deidade pintuda,
misógina, machistóide.
O
que pensar de um deus que age usando como meios de punição os dilúvios e
as bolas de fogo? De um deus que criou um imenso campo-de-torturas
chamado Inferno para desgraçar eternamente seus desafetos? De um deus
que tem seus acessos de fúria e vingança de uma agressividade tamanha
que nos leva a pensar num tirano com direitos absolutos? Um deus com
muitos colhões, esse que ordena que um anjo destrua Sodoma e Gomorra!
Se a explicação tradicional para este massacre genocida, ordenado por
um deus que dizem bom e generoso, é que as cidades mereceram tal
hecatombe, por estarem repletas de pecadores, resta-nos frisar que há
uma explicação bem mais plausível: homens profundamente homofóbicos e
cheios de pudicícia neurótica inventaram uma mitologia que se adequava a
eles como uma luva... Ou seja, fabricaram a noção de uma divindade que
pune os “sodomitas”, os “libertinos”, as “feiticeiras”...
A
desgraça é que estes homens, criadores destas sórdidas mitologias, não
deixaram ao deus que idolatravam que cuidasse Ele de realizar o serviço:
como “servidores de Deus na Terra”, decidiram dar aos que taxaram de
pecadores um antegosto das punições que prometiam a eles para o inferno.
Quantos milhares e milhares de pessoas não foram concretamente punidos, vítimas de danos materiais, nesta Terra e nesta vida, quantos não foram assados vivos ou afogados, por
homens-de-fé, megalomaníacos e cruéis, puritanos com fobia da
diferença, cruéis de batina movidos por uma vontade de extermínio de
toda e qualquer alteridade que desvie dos dogmas!
"Decerto
que os cristãos idolatram também a Virgem Maria,
mas também aí, neste
ideal feminino, manifesta-se um preconceito milenar:
a mulher valorosa é
casta, pudica, dócil, assexuada.
Isso não impedia, como nos lembra
Michelet, em suas preleções sobre a Cristandade na Idade Média, que os
conventos femininos frequentemente estivessem repletos de grávidas (p.
68)
– obra dos monges e outros homens-de-fé,
que idolatravam em teoria e
no imaginário a virgindade de Maria,
enquanto na realidade não
resistiam ao estupro das freiras."
Este procedimento teológico falocêntrico
se torna ainda mais explícito quando atentamos para os outros dois
integrantes do “triângulo sagrado” da Cristandade, o tal do Filho e o
tal do Espírito Santo. Que religião diferente não teria surgido com uma
tríade mais feminil e primaveril, com uma Deusa-Mãe, uma Filha e uma
Espírita Santa! Que cultura e que civilização imensamente outras não
nascem quando o culto dominante é de Ísis, Deméter ou Gaia!
Mas,
infelizmente, como se sabe, a História registra uma predominância
opressiva dos homens nas hierarquias das instituições religiosas. E os
próprios dogmas, em sua maioria inventados e escritos por sujeitos
machistas e misóginos, revelam a opressão de gênero: na mitologia
bíblica, Deus-Pai cria Adão à sua imagem e semelhança; já Eva, não passa
de um mero subproduto, nascida de uma reles costela, e acaba depois,
por sua incapacidade feminil de resistir à tentação do fruto proibido,
desgraçando-nos e lançando-nos fora do Éden. A Bíblia, em suma, faz de
Eva um subproduto secundário e pecador, um ser indigno de confiança e
merecedor de punição...
Decerto
que os cristãos idolatram também a Virgem Maria, mas também aí, neste
ideal feminino, manifesta-se um preconceito milenar: a mulher valorosa é
casta, pudica, dócil, assexuada. Isso não impedia, como nos lembra
Michelet, em suas preleções sobre a Cristandade na Idade Média, que os
conventos femininos frequentemente estivessem repletos de grávidas (p.
68) – obra dos monges e outros homens-de-fé, que idolatravam em teoria e
no imaginário a virgindade de Maria, enquanto na realidade não
resistiam ao estupro das freiras.
* * * * *
V. O ÚNICO MÉDICO DO POVO, POR MIL ANOS, FOI A FEITICEIRA
“Ao
ler as belíssimas obras escritas em nossos dias sobre a história das
ciências, uma coisa me espanta: parecem acreditar que tudo foi
descoberto pelos doutores, aqueles semi-escolásticos, que a cada
instante ficavam enredados em suas togas e dogmas, nos deploráveis
hábitos de espírito que a Escola lhes incutia. E aquelas que andavam
livres dessas cadeias, as feiticeiras, não teriam descoberto nada? Seria
inverossímil. No pouco que se conhece das receitas das feiticeiras, há
um bom senso singular...” – JULES MICHELET, A Feiticeira, pg. 15
Muitas
mulheres, através da História, foram vítimas de uma morte pavorosa após
terem sido condenadas como “feiticeiras”. Normalmente, aqueles que as
condenaram eram homens unidos em gangues – ainda que eles prefiram
colocar isso em outros termos: são “sacerdotes trajando batinas” e
fazendo o trabalho que Deus mandou... São todas masculinas as faces dos
juízes que condenam Joana D’Arc, como se vê na clássica adaptação
cinematográfica de Carl Theodor Dreyer. Dentre os muitos méritos da obra
de Michelet dedicada à esta “classe infortunada” das mulheres ditas feiticeiras, está uma reconsideração do valor histórico destas, por exemplo quanto ao papel que desempenharam na evolução das ciências. Não
seria crível pensar que estas mulheres, que experimentavam novas
receitas, que buscavam criar novos filtros, em seu intenso intercâmbio
com os vegetais e com a Natureza circundante, tenham contribuído - e
muito! - no desenvolvimento da medicina e da farmacologia?
Na
Idade Média assolada pelas epidemias – por volta de 1350, a peste negra
devasta o globo conhecido e “mata um terço do mundo” (p. 14) – estas
mulheres, que viveram em tempos onde não existiam hospitais nem
farmácias, ousaram praticar medicinas – ou ao menos tentativas de cura – que
muitas vezes levaram à sua condenação. Os homens que as condenaram,
porém, nem sempre eram sábios ou peritos em ciência, muito menos médicos
confiáveis: conta Agrippa em De Occulta Philosophia sobre algumas “tolas receitas dos grandes doutores do século XIV”, convencidos dos “efeitos maravilhosos da urina de mula” (!).
Ora,
as terríveis epidemias daqueles tempos ceifavam dezenas de milhares de
vida: do século XIII ao XV, os flagelos horrorosos se sucedem – a lepra,
a epilepsia, a sífilis. O que a Cristandade tinha a oferecer como
antídoto? “Salvo o médico árabe ou judeu, pago a peso de ouro pelos
reis, a medicina se exercia apenas na porta das igrejas, junto à pia de
água benta.” (pg. 102) Pior que isso: as autoridades teológico-políticas
da época não incentivavam de modo algum a pesquisa científica, a busca
racional e empírica por remédios eficazes para combater estes tão
grandes males.
Um
terrível dogma cristão ordenava que se considerasse todo doente como um
pecador: se ele tinha adoecido, devia receber sua doença como um
“castigo de Deus”; as próprias epidemias eram vistas como uma resposta
da fúria divina que caía sobre os homens por sua pouca obediência ou sua
escassa fé. A Igreja só sabia recomendar a reza, o remorso e a
resignação. A Igreja, ao invés de se engajar na busca por remédios,
convidava os doentes a aceitarem sua sina, arrependerem-se de seus
pecados e assim ingressarem na Vida Eterna com alma purgada. Por
séculos, tais dogmas foram uma imensa trava que impediu o progresso da
ciência e da medicina e manteve um nível estratosférico de mortandade.
Mas
ainda bem que nem todos são tão obedientes a sim aos “mandamentos de
Deus”! A medicina era praticada por alguns judeus e árabes – e o próprio
Avicena, árabe do século XIII, relata o uso intenso de “especiarias
picantes trazidas do Oriente” e “bebidas fermentadas” que eram
utilizadas – muitos séculos antes do Viagra! – como “estimulantes com
que então se buscava despertar e reanimar as incapacidades do amor.”
(pg. 104) Mas a autêntica medicina popular era praticada de fato
pelas mulheres, pelas “sibilas”, aquelas que as autoridades se
deleitavam em rotular “feiticeiras”. Numa época de calamidade, de grave
crise de saúde pública, quando eclesiásticos imbecis pregavam o dogma
pernicioso da doença como “castigo de Deus” , “transgrediram-se as
proibições; desertou-se a velha medicina sagrada e a inútil pia de água
benta. Buscou-se a feiticeira.” (p. 104)
Estas
mulheres, maravilhosamente transgressoras, iam buscar no seio da
Natureza os elementos para seus remédios: “empregavam muito, para os
mais diversos usos – para acalmar, para estimular -, uma grande família
de plantas equívocas, muito perigosas, que prestaram grandes serviços.
Chamam-nas, com razão de as consoladoras.” (p.106) Além de
excelentes parteiras, estas mulheres tinham a audácia de misturar
ingredientes no fabrico de poções. Através de um insistente processo de
tentativa-e-erro, e por transmissão oral dos conhecimentos adquiridos,
puderam chegar a precisar as doses: certas poções são venenos se tomadas
em excesso, mas bálsamos se ingeridos na dose ótima. Estas médicas e
enfermeiras, vivendo em um mundo entrevado nas densas trevas da
Cristandade medieval, eram muito mau-vistas por muitos que temiam seus
poderes: “Uma multidão cega, cruel na medida de seu medo, podia, uma
manhã, ataca-la a pedradas ou submetê-la à prova da água, o afogamento.
Ou enfim, coisa mais terrível, podia arrastá-la, uma corda amarrada no
pescoço, até o pátio da igreja, que disso teria feito uma festa piedosa,
lançando-a à fogueira para a edificação do povo.” (pg. 107)
Não
terão sido estas mulheres essenciais, com seus experimentos químicos,
com os encantamentos que visavam produzir nas cozinhas farmacológicas
ancestrais, no sentido de descobrir substâncias benéficas para os
humanos? E, no entanto, quanta perseguição sobre elas por parte de
homens doutos, carregados de togas e dogmas! No filme de Alejandro
Amenábar, Ágora (lançado no Brasil sob com o título Alexandria), acompanhamos
a recriação de um episódio histórico bem simbólico disto: a astróloga e
cientista Hypathia, que chegou a uma cosmovisão heliocêntrica mais
de um milênio antes de Galileu e Copérnico, vê suas descobertas e obras
destroçarem sob o impacto do fanatismo religioso que levou aqueles
homens – de novo, do sexo masculino, em sua maioria! – a reduzirem a
cinzas a majestosa Biblioteca de Alexandria.
Michelet
é pródigo em exemplos para ilustrar o quanto a mulher foi oprimida
durante a Idade Média cristã: “Na Idade Média, a mulher é esmagada de
três lados. A Igreja a mantém no nível mais baixo (ela é Eva e o próprio
pecado); em casa, é surrada; no sabá, imolada. (...) Mas é perigoso
tornar tão desgraçada uma criatura. Sob essa saraivada de dores, o que
não é dor, o que é doçura e ternura, pode transformar-se em frenesi. Eis
o horror da Idade Média.” (pg. 18) Os homens-de-fé, doutos com o nariz
afundado nos livros, deleitavam-se em inventar argumentos machistas,
denigridores das mulheres, e tentam justificar que se devem queimar as
Joanas D’Arc deste mundo e que isto não só agrada ao Senhor como foi
ordenado por Ele! Sprenger exemplifica uma das ideologias de que
sacerdotes e monges apreciavam ser os partidários: “Fe-mina vem de fé e minus; a
mulher tem menos fé que o homem.” Diante de ideias semelhantes,
Michelet não pode conter seu asco: “Que fecundidade de burrices!” (pg.
19)
Para
reabilitar estas mulheres ousadas, tão cruciais no desenvolvimento da
medicina, Michelet escreve: “O único médico do povo, durante mil anos,
foi a feiticeira. (...) A sua planta favorita, a beladona, foi um
antídoto dos grandes flagelos da Idade Média. (...) O grande médico do
Renascimento, Paracelso, em 1527 queimou toda as obras de medicina
(Galeno, Avicena e Rhazès) e declarou saber apenas o que aprendera das
feiticeiras.” (p. 31)
* * * * *
VI. FUROR MISÓGINO E VIOLÊNCIA SAGRADA
A
acusação de feitiçaria recai quase sempre sobre as mulheres culpáveis
de idolatrar falsos deuses, ou seja, entrarem em relações com demônios. A
mulher mais devota, se acreditasse em duendes e fadas, estava madura
para a perdição. “Que mulher seria inocente? Ao se deitar, antes de sua
oração à Virgem, deixava leite para seu duende. A moça, a boa mulher,
acendia de noite um foguinho para consolo das fadas e oferecia de dia um
buquê para a santa.” (p. 22) Por estes “crimes”, estas mulheres são
condenadas pelos homens de batinas negras a serem queimadas vivas nas
fogueiras dos inquisidores; ou então emparedadas e lacradas em
minúsculas celas onde deitam-se sobre os próprios excrementos; ou são
enfiadas em ossuários e se deitam sobre os ossos dos mortos; ou têm a
testa marcada com uma cruz escarlate e tornam-se objeto de zombaria
geral, tendo que dirigir-se todos os domingos à missa para se deixarem
açoitar por um homem-de-Deus... Na Idade Média cristã, a mulher rotulada
de feiticeira (e eram tantas!) “é caçada como um animal selvagem,
perseguida nas encruzilhadas, aviltada, empurrada, apedrejada, forçada a
sentar-se sobre carvões em brasa!... O clero não tem fogueiras, o povo
não tem injúrias, a criança não tem pedras que bastem contra a
desgraçada... À palavra feiticeira, vemos as velhas hediondas de Macbeth. Mas os processos revelam o contrário. Muitas morreram precisamente por serem jovens e belas.” (p. 30)
Este
furor anti-feminino se explica, segundo Michelet, pois estas mulheres
tem “por ajudante e irmã a natureza” e “nela começa a suprema perícia
que cura e refaz o homem” (p. 30). Ao invés de confiar no poder da reza,
muitas mulheres preferiam confiar nas flores do campo; diante da
impotência do terço ou do rogo diante de doenças e epidemias, achavam
mais sensato procurar na mata, na imensa diversidade das plantas, das
folhas, dos frutos, dos cogumelos, aquilo que pudesse servir para curar.
O
conflito com a Igreja, instituição exclusiva para homens e impregnada
de misoginia, deve-se também aos dogmas nutridos por estes monges
cretinos e inquisidores brutais: “a Igreja rejeitou a natureza, como
impura e suspeita... A Igreja, que vê na vida apenas uma provação, evita
prolonga-la. Sua medicina é a resignação, a espera e a esperança da
morte.” (pg. 36) A realidade terrena, que a Igreja recobre com suas
injúrias, acaba se tornando, sob a perspectiva dos beatos, no palco de
Satã, que não à toa é cognominado de “Príncipe do Mundo”.
Todo
gozo, todo riso e toda razão livre recebem o anátema dos asseclas do
Deus-dos-Céus – “era dar de mão beijada a Satã um papel esplêndido, o
monopólio do riso, e proclamá-lo divertido. Digamos mais: necessário. Pois
o riso é uma função essencial de nossa natureza. Como suportar a vida
se não podemos pelo menos rir, em meio às nossas dores?” (pg. 36) Tema
nietzschiano! Pois também Zaratustra faz a apologia do riso – e da
dança! – e recusa, em seu dionisismo, as lamúrias infindáveis daqueles
que, na trilha do Crucificado, querem acreditar que o mundo não passa de
um Vale de Lágrimas que merece ser negado por inteiro.
Proscritas
e condenadas por praticarem os rudimentos do que se tornaria a ciência
médica e farmacológica, estas mulheres ousadas descobriram um novo mundo
ao transgredirem os dogmas da Igreja. Quando criavam remédios novos a
partir de misturas impudicas de elementos naturais, ou quando levavam um
corpo do cemitério para analisá-lo por dentro, foram salutares mãos
atrevidas que se tornaram predecessoras da cirurgia e da anatomia – que
tantos milhões de vidas ajudariam a salvar! Porém, o status quo eclesiástico as enxerga com péssimos olhos e “declara, no século XIV, que se a mulher ousar tratar, sem ter estudado, é
feiticeira e morrerá.” (p. 38) Ora, todos os acessos às escolas estavam
vedados às mulheres médicas, proscritas dos espaços onde os
doutos-com-falos se faziam de eruditos. A medicina feminina, por mais
eficaz que se mostrasse, era associada a transações suspeitas com Satã –
e “a feiticeira urrando e assando, que alegria para a gentil juventude
dos fradinhos e capuchinhos!” (p. 38)
Para
recuperar a frase de Nietzsche citada na epígrafe, lembremos: nunca
existiram de fato as bruxas, mas as consequências da fé nas bruxas foram
absolutamente terríveis, como foram também as consequências da fé no
Capeta e no Inferno. Deixar de crer nestas fantasias criadas pelos
fanáticos - Bruxas, Satanás, Inferno... - já é dar passos largos na
superação da Superstição, esta força das trevas que tantos oceanos de
sangue, através da História, fez derramar.
A
Cristandade, ao crer no Diabo, realizou atos de um diabolismo e de uma
brutalidade que deveriam chocar a Deus, se Ele existisse. Mas o que
seria do cristianismo sem a fé em Satã, sem o formidável auxílio que ele
traz no sentido de explicar o Mal que se encontra espalhado por toda a
Criação? Que Satã exista é algo salutar para um cristão desejoso de
livrar seu Deus de toda culpa! Donde esta provocação de Michelet, com a
qual terminamos este passeio tenebroso pela medievalidade:
“Não
seria Satã um ator necessário, uma peça indispensável da grande máquina
religiosa, hoje um tanto avariada? (...) O Diabo é nada menos que um
dogma, que se liga a todos os outros. Tocar no eterno vencido não será
tocar no vencedor? Duvidar dos atos do primeiro leva a duvidar dos atos
do segundo, dos milagres que fez precisamente para combater o Diabo. As
colunas do Céu têm os pés no abismo. O desatinado que abala essa base
infernal pode provocar rachaduras no Paraíso...” (p. 38)
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Fonte: http://acasadevidro.com/2013/09/08/
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